(Nas fotos, o poeta Manoel de Barros & suas invenções de comportamento: alguns dos seus livros de poesia & a inscrição “Só dez por cento é mentira”, título do documentário de Pedro Cezar sobre o poeta.)
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vão dizer que o poeta não existe propriamente “dito”: o que existe propriamente “dito” são os versos, o que existe propriamente “dito” é a poesia. afinal, o corpo, a carne, da poesia constitui-se de palavras, a poesia constitui-se de matéria verbal, constitui-se daquilo que é propriamente “dito”.
(o poeta se faz da poesia. é a poesia quem justifica a existência do poeta. um alguém só se diz poeta caso pouse nele a poesia.)
vão dizer que o poeta é um ente de sílabas, um ente formado por fonemas, um ente formado por verbos, um ente de carne, osso & palavras.
vão dizer que o poeta tem vocação para “ninguém”. o pai do poeta costumava alertá-lo: “quem acha bonito & pode passar a vida a ouvir o som das palavras, ou é ninguém ou zoró.”
(zoró: povo indígena habitante da região noroeste do mato grosso do sul & da região sul de rondônia.)
o poeta & sua vocação para “ninguém”: ele não serve para mais nada que não seja achar bonito & passar a vida a ouvir o som das palavras. um alienado do mundo, um vagabundo existencial.
o poeta & sua vocação para “ninguém”: tendo vocação para “ninguém”, o poeta pode transfigurar-se no que desejar, no que bem entender — o que, no fundo, é uma exigência da poesia.
o poeta teria treze anos. de tarde, foi olhar a cordilheira dos andes, que se perdia nos longes da bolívia, e veio uma iluminura nele.
foi a sua primeira iluminura, a sua primeira arte de ornar uma página.
daí, botou o seu primeiro verso.
mostrou a obra para sua mãe. a mãe falou: “agora você vai ter que assumir as suas irresponsabilidades.”
o poeta assumiu: entrou no mundo das imagens.
o poeta é um irresponsável da linguagem porque a poesia não possui responsabilidades. a poesia não tem que. a poesia simplesmente é. sem maiores pretensões, obrigações & expectativas. a poesia pode justamente tudo porque não deve absolutamente nada. para com a poesia não existem formalidades. não se trata de memorando, requerimento ou carta de intenção: não existe um propósito, um objetivo.
a poesia mora no mundo das imagens, das metáforas, dos jogos sintáticos, dos deslocamentos da linguagem.
o poeta não quer saber como as coisas se comportam. o poeta quer inventar comportamento para as coisas.
segundo o poeta, a tarefa mais lídima, mais genuína, mais autêntica, da poesia é a de equivocar, é a de confundir, é a de deslocar, o sentido das palavras, não havendo nenhum “descomportamento”, não havendo nenhuma falta de comportamento adequado, não havendo nenhum “desvio de conduta”, senão que alguma experiência lingüística.
é apenas um descomportamento semântico, apenas um descomportamento para com os sentidos (convencionais) das palavras.
se o poeta se desvirtua a pássaros, se o poeta se desvirtua em árvores, se o poeta se desvirtua para pedras, essa mudança de comportamento “gental” (referente à gente, a pessoas) para comportamento animal, vegetal ou pedral, é apenas um descomportamento semântico, um descomportamento ligado ao sentido convencional dessas palavras.
o poeta apenas faz, apenas cria, apenas produz, o desvio do sentido das palavras & das finalidades das coisas: se ele diz que “grota” é uma palavra apropriada para ventar nas pedras ou que os passarinhos faziam paisagens na sua infância, isso é apenas um desvio das tarefas da grota (que não é a de ventar nas pedras) & dos passarinhos (que não é a de fazer paisagens).
isso — de gerar o desvio do sentido das palavras & das finalidades das coisas — é apenas um descomportamento lingüístico que não ofende, que não fere, que não prejudica, que não viola, que não contraria, a natureza dos passarinhos nem das grotas.
se o poeta diz ainda que é mais feliz quem descobre o que não presta do que quem descobre ouro, o poeta pensa que, ainda assim, não será atingido pela bobagem, pela tolice, pela asneira. ele apenas não tem sabedoria demais, conhecimentos aprofundados: o poeta apenas não tem polimentos de ancião.
(o poeta: um inventor de comportamentos: uma sempre criança do verbo, um sempre aprendiz da palavra.)
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Poesia completa. autor: Manoel de Barros. editora: Leya.)
O POETA
Vão dizer que não existo propriamente dito.
Que sou um ente de sílabas.
Vão dizer que eu tenho vocação pra ninguém.
Meu pai costumava me alertar:
Quem acha bonito e pode passar a vida a ouvir o som
das palavras
Ou é ninguém ou zoró.
Eu teria treze anos.
De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes que
se perdia nos longes da Bolívia
E veio uma iluminura em mim.
Foi a primeira iluminura.
Daí botei meu primeiro verso:
Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.
Mostrei a obra pra minha mãe.
A mãe falou:
Agora você vai ter que assumir as suas
irresponsabilidades.
Eu assumi: entrei no mundo das imagens.
COMPORTAMENTO
Não quero saber como as coisas se comportam.
Quero inventar comportamento para as coisas.
Li uma vez que a tarefa mais lídima da poesia é a
de equivocar o sentido das palavras
Não havendo nenhum descomportamento nisso
senão que alguma experiência linguística.
Noto que às vezes sou desvirtuado a pássaros, que
sou desvirtuado em árvores, que sou desvirtuado
para pedras.
Mas que essa mudança de comportamento gental
para animal vegetal ou pedral
É apenas um descomportamento semântico.
Se eu digo que grota é uma palavra apropriada para
ventar nas pedras,
Apenas faço o desvio da finalidade da grota que
não é a de ventar nas pedras.
Se digo que os passarinhos faziam paisagens na
minha infância,
É apenas um desvio das tarefas dos passarinhos que
não é a de fazer paisagens.
Mas isso é apenas um descomportamento linguístico que
não ofende a natureza dos passarinhos nem das grotas.
Mudo apenas os verbos e às vezes nem mudo.
Mudo os substantivos e às vezes nem mudo.
Se digo ainda que é mais feliz quem descobre o que não
presta do que quem descobre ouro —
Penso que ainda assim não serei atingido pela bobagem.
Apenas eu não tenho polimentos de ancião.
Impossível não gostar de tão saborosa poética. A vivemos!
Que bom que vivenciamos o sabor da poesia! Salve!
Grande abraço!