_____________________________________________________________
o poema — digamos — “livresco”, o poema exclusivamente encontrado em livros, eu conheci & tomei gosto a partir da canção popular.
foi a partir de maria bethânia, que não só grava os grandes poetas-compositores (caetano, gil, chico, gonzaguinha, roque ferreira) como também interpreta poemas de grandes poetas, que tive o meu primeiro contato com a poesia (no sentido amplo da palavra), ainda bem menino.
portanto, a primeira estrela a luzir no céu poético que me comporta, distraidamente, foi a estrela da canção popular.
e, até hoje, sou louco, alucinado, morro de amores, pela canção popular.
quem acompanha o meu trabalho, sabe que não faço distinção de tipos, cores & sabores: neste espaço, a poesia livresca convive muitíssimo bem com os versos do poema-canção.
chico buarque, gilberto gil, alceu valença, djavan, adriana calcanhotto, péricles cavalcanti, lenine, caetano veloso, são alguns nomes do nosso cancioneiro popular que convivem, muitíssimo bem, aqui neste espaço, com carlos drummond de andrade, armando freitas filho, antonio carlos secchin, nelson ascher, josé almino, eucanaã ferraz, e tantos outros — sem contar, por exemplo, aqueles que transitam entre o poema-canção & o poema-livresco: vinicius de moraes, waly salomão, antonio cicero, arnaldo antunes, alice ruiz s, francisco bosco, paulo césar pinheiro.
a canção popular foi a primeira estrela a luzir no meu céu poético, distraidamente, porque eu amei a canção popular ouvindo-a despretensiosamente, ao lado da minha mãe, a minha cabocla jurema, a grande responsável, pessoa apaixonada — desde que me entendo por gente — pela tradição do cancioneiro popular.
a canção popular, na minha existência, foi a estrela entre as estrelas.
foi a partir dela que me brotou, que vi nascer, o desejo agudo de conhecer mais & mais tanto o poema-livresco quanto o poema-canção.
a canção popular: a estrela entre as estrelas.
meus pais nunca tiveram biblioteca em casa. quase não tínhamos livros em casa & o bairro onde cresci não tinha livraria.
mas os livros que, já na infância, em minha vida entraram (lembro-me do “círculo do livro” batendo à porta de casa) são como a radiação de um corpo negro apontando para a expansão do universo.
a radiação de um corpo negro apontando para a expansão do universo: sabe-se que a teoria mais difundida sobre a criação do universo (big bang) declara que este nasceu a partir da explosão, num tempo passado finito, de uma matéria altamente condensada, a uma temperatura elevadíssima. a radiação produzida pela explosão foi tão absurdamente & absolutamente forte que tal energia ainda desdobra-se espaço afora, produzindo a contínua expansão do universo. o corpo negro — espaço onde cabe o nosso mundo & mais — aponta para a expansão do universo, dilatando-se & lançando, com a sua expansão, novos sistemas, novas galáxias, novos corpos celestes.
os livros que em minha vida entraram são como a radiação de um corpo negro apontando para a expansão do universo: porque a frase, o conceito, o enredo, o verso (e, sem dúvida, sobretudo o verso), é o que pode lançar mundos no mundo.
a força contida na condensação inteligente de poucas palavras — que é o que forma um verso — é tamanha, que o verso, assim como a matéria altamente condensada que formou o universo & que continua em expansão no corpo negro espacial, é o que pode lançar mundos no mundo.
ao me referir ao verso como aquele que, sobretudo, pode lançar mundos no mundo (tal & qual a radiação de um corpo negro), refiro-me tanto ao verso-livresco quanto ao verso-canção, sem distinção de tipos, cores & sabores.
a canção popular, estrela primeira a reluzir forte, intensa, no meu céu poético, tropeçava nos astros — revistas livros enciclopédias filmes — desastrada, lúdica, onírica, sem saber que a aventura da ventura (da boa fortuna, da boa sorte) & da desventura (da má fortuna, da má sorte) dessa estrada que vai do nada ao nada (a estrada que vai do nada ao nada: a existência, a vida: não sabemos exatamente de onde viemos & muito menos para onde iremos) são livros & o luar contra a cultura.
(os livros são responsáveis por boa parte do conhecimento adquirido nessa estrada que é a vida & que vai do nada ao nada, sem teoria ou ponderação que a justifique claramente. sobretudo aqueles que põem à prova, que questionam, que discutem, o status quo do meio social, sobretudo aqueles que nos fazem pensar os valores culturais que nos são incutidos através das normas & convenções sociais.)
os livros são objetos transcendentes, os livros são objetos que ultrapassam a natureza física das coisas (é justamente essa característica que possibilita que o verso, sobretudo, possa lançar mundos no mundo), mas podemos amá-los do amor tátil (amor sem valor transcendental, amor ligado ao tato, ao que é palpável) que votamos, por exemplo, aos maços de cigarro.
amando os livros — que são objetos transcendentes, objetos cujo valor não é tangível, não é palpável, valor que possibilita o verso lançar mundos no mundo — com o amor tátil que votamos aos maços de cigarro (amor ligado ao tato, ao que pode ser materialmente aferido, apalpado), acabamos por domá-los, por domesticá-los, amando os livros com o amor tátil que votamos aos maços de cigarro, acabamos por cultivá-los em aquários, em estantes, em gaiolas, acabamos por aprisioná-los & deixá-los à mercê de uma visitação fria, distanciada, de quem os cultiva apenas por causa do amor tátil, apenas por causa do amor ao objeto-livro, ao objeto palpável, material — o que importa, nesse caso, não é o conteúdo que o livro abriga (que é o que confere ao livro o seu caráter transcendental) & sim o “objeto-livro”, o livro enquanto “material palpável”, enquanto mero “enfeite de casa”.
amando os livros — que são objetos transcendentes, objetos cujo valor não é tangível, não é palpável, valor que possibilita o verso lançar mundos no mundo — com o amor tátil que votamos aos maços de cigarro, além de domá-los, além de domesticá-los, podemos lançá-los — os livros — para fora das janelas, podemos jogá-los às traças, podemos mandá-los ao lixo, assim como quando amassamos um maço de cigarro que não nos serve mais.
lançando os livros para fora das janelas, tendo, pelos livros, apenas o amor tátil, isso, certamente, nos livra do exercício (difícil, complicado) de lançarmo-nos, destemidos, à existência. lançando os livros para fora das janelas, tendo, pelos livros, apenas o amor tátil, isso nos livra de lançarmo-nos ao mundo com as tantas descobertas & achados que nos trazem o conhecimento adquirido através dos livros (porque a frase, o conceito, o enredo, o verso — e, sem dúvida, sobretudo o verso, é o que pode lançar mundos no mundo), ou — o que é muito pior — por odiarmo-los, por odiarmos os livros (odiá-los amando-os do amor tátil, cultivando-os em estantes & gaiolas & fogueiras), podemos, simplesmente, escrever um: encher muitas páginas de vãs palavras, encher páginas & mais páginas de palavras que não acrescentam nada, para, assim, conseqüentemente, encher as prateleiras — das livrarias — de mais confusão, de papo furado, de conversa fiada, de livros que não dizem nada de relevante.
pois a grande questão com a leitura é que não devemos nos preocupar somente com a atitude de ler. acima de tudo, temos que nos preocupar com o tipo de literatura que procuramos ler.
o tempo todo, o ser humano gaba-se do fato de que cada ser é um, ímpar, único, singular, o tempo todo, o ser humano gaba-se do fato de que cada ser possui as suas especificidades, o tempo todo, o ser humano gaba-se do fato de que ninguém é igual a ninguém. e, no entanto, esse ser humano, que se gaba o tempo inteiro do fato de ser um, único, ímpar, singular, busca, em livros, fórmulas gerais — como se fossem receitas de bolo, bulas de remédio —de como alcançar a felicidade, de como obter sucesso no trabalho, 8 dicas para conseguir amigos, 15 passos rumo à felicidade conjugal, 10 maneiras infalíveis de conquistar a pessoa amada, conselhos para bem educar os filhos.
isso é, em si, uma enormíssima incoerência: fórmulas & tratados gerais, sobre como obter sucesso & felicidade, para seres únicos, ímpares, singulares, cheios de especificidades?
os livros devem lançar mundos no mundo: eles não trazem respostas prontas; eles incitam a buscas, a descobertas.
por amá-los (os livros) de um amor tátil, por domá-los em aquários, estantes, gaiolas & fogueiras, por lançá-los para fora das janelas, ou — o que é muito pior — por odiarmo-los, podemos simplesmente escrever um: encher de vãs palavras muitas páginas & de mais confusão as prateleiras…
apesar de todo amor & toda gratidão que possuo pelos livros, no meu céu poético a canção popular foi, é & será, sempre, a (grande) estrela entre as estrelas.
eu sou louco, alucinado, morro de amores, pela canção popular. foi ela que, distraída, desastrada, tropeçando nos astros, me abriu as portas da poesia (no sentido amplo da palavra).
eternamente grato & em dívida com os nossos poetas-compositores.
salve a canção popular!
salve a poesia!
salvem os livros!
beijo todos!
paulo sabino.
_____________________________________________________________
(do livro: Letra só. autor: Caetano Veloso. editora: Companhia das Letras.)
LIVROS
Tropeçavas nos astros desastrada
Quase não tínhamos livros em casa
E a cidade não tinha livraria
Mas os livros que em nossa vida entraram
São como a radiação de um corpo negro
Apontando pra expansão do Universo
Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso
(E, sem dúvida, sobretudo o verso)
É o que pode lançar mundos no mundo
Tropeçavas nos astros desastrada
Sem saber que a ventura e a desventura
Dessa estrada que vai do nada ao nada
São livros e o luar contra a cultura
Os livros são objetos transcendentes
Mas podemos amá-los do amor táctil
Que votamos aos maços de cigarro
Domá-los, cultivá-los em aquários
Em estantes, gaiolas, em fogueiras
Ou lançá-los pra fora das janelas
(Talvez isso nos livre de lançarmo-nos)
Ou — o que é muito pior — por odiarmo-los
Podemos simplesmente escrever um:
Encher de vãs palavras muitas páginas
E de mais confusão as prateleiras
Tropeçavas nos astros desastrada
Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas
_____________________________________________________________
(do site: Youtube. áudio extraído do álbum: Livro. artista & intérprete: Caetano Veloso. canção: Livros. autor da canção: Caetano Veloso. leitura em francês de um trecho do livro: O vermelho e o negro. autor do livro: Stendhal. gravadora: PolyGram.)
Deixe um comentário