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para César Guerra Chevrand
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sendo quem sou, em nada me pareço.
sou tão diferente do que esta carcaça apresenta, que deveria ter aparência mais próxima à estranheza que me forma.
a aparência do paulo sabino não corresponde — exatamente — ao paulo sabino.
o que pensa, o que faz, o que fala, quando só, só pertence ao paulo sabino.
sendo quem sou, em nada me pareço: pois, ao mundo, aos senhores, pareço uma coisa sendo tantas outras…
desloco-me no mundo, transito pelos lugares, como os senhores vêem, ando a passos, com pés no chão, como todos os senhores, e tenho gestos & olhos convenientes, gestos & olhos de acordo com o que socialmente se ambiciona, gestos & olhos propícios ao convívio social, gestos & olhos adequados à normatização da vida, gestos & olhos à aceitação & aprovação alheias, gestos & olhos no intuito de integrar determinadas rodas sociais.
vivenciando assim a vida, desloco-me no mundo, isto é, no mundo me faço, me sinto, deslocado, coloco-me fora do lugar, coloco-me em contexto inapropriado, desafinado com o que realmente sou (para as pessoas, para o mundo, ando a passos, como toda pessoa comum, e tenho gestos & olhos convenientes).
sendo quem sou, não seria melhor ser diferente (ser fora do padrão, ser estranho às pessoas), e ter olhos a mais (como um ser fantástico, um ser das lendas), olhos visíveis, úmidos?
sendo quem sou, não seria melhor ser diferente: digo: ser diferente do diferente, ser diferente do que é diferente de mim & que, no entanto, os senhores entendem como o paulo sabino?
não seria melhor ser diferente & ter olhos a mais, olhos que, diferentes destes que tenho (que mascaram, que dissimulam, que encobrem o paulo sabino), fossem visíveis, olhos úmidos ao invés de secos (olhos que não revelam, olhos desidratados, vazios, sedentos)?
não seria melhor ser, ao invés de um tipo convencional, de um tipo adequado às rodas sociais, um pouco de tudo, não seria melhor ser um pouco de anjo & de duende? (duende: entidade fantástica, das lendas, que geralmente usa seus poderes em travessuras para assustar os habitantes de uma casa.)
cansam-me estas coisas que digo aos senhores.
são cansativas — estas coisas que digo aos senhores — porque, em mim, as paisagens se multiplicam, em mim as paisagens aumentam em quantidade, em mim, as visões, os panoramas, se multiplicam, e, multiplicando-se paisagens visões panoramas, o sonho nasce & tece ardis tamanhos, o sonho nasce & tece grandes armadilhas, o sonho nasce & tece astúcias perigosas.
é sonhando, projetando, desejando, que as esperanças — sejam no que for — são renovadas.
cansam-me as esperanças renovadas porque, uma vez renovadas, as esperanças fazem o verso no meu peito repetir-se.
o verso, no meu peito, repetido: verso de paisagens que se multiplicam, verso de sonho que nasce & tece ardis tamanhos, verso com desejo de ser diferente — pois sendo quem sou, em nada me pareço.
cansam-me estas vontades variadas, cansa-me ser assim quem sou agora: múltiplo, diverso, de formas avessas: planície/monte; treva/transparência.
são tantos em mim (tantas as formas), e, no entanto, tantos encobertos, tantos (em mim) longe dos olhos que não os do próprio paulo sabino.
(aos senhores, ao mundo, tenho gestos & olhos convenientes. aos senhores, ao mundo, reservo uma sanidade forjada.)
(de perto ninguém é normal.)
cansa-me ser assim quem sou agora: muitos & antagônicos: planície, monte, treva, transparência.
e cansa-me também o amor porque é centelha (partícula ígnea, partícula de fogo, de um corpo em brasa), cansa-me o amor porque é faísca, e queima, e arde, e exige posse & pranto, sal (das lágrimas) & adeus.
ao amor, a sua rima: dor.
o amor que não dói, que não machuca, que não dilacera, não é amor.
cansa-me, por tanto, o amor.
em tudo — nas coisas que vos digo, nas esperanças renovadas, no verso repetido no meu peito, no ser que sou agora, no amor — sempre um cansaço.
ainda assim, ainda que o cansaço perpasse & permeie tudo (as coisas que vos digo, as esperanças renovadas, o verso repetido no meu peito, o ser que sou agora, o amor), os senhores querem, desejam, o verso que aos senhores posso dispor?
se os senhores querem, se desejam, então que assim seja.
mas entendam: viverão suas vidas nesses breus.
pois o verso que aos senhores posso dispor nada esclarece, nada clarifica, nada ilumina: sendo quem sou, em nada me pareço: são tantos em mim (tantas as formas), e, no entanto, tantos encobertos, tantos (em mim) longe dos olhos que não os do próprio paulo sabino…
o verso, aqui, não vivencia a luz: o verso versa sua vida nesses breus.
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Exercícios. autora: Hilda Hilst. organização: Alcir Pécora. editora: Globo.)
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Sendo quem sou, em nada me pareço.
Desloco-me no mundo, ando a passos
E tenho gestos e olhos convenientes.
Sendo quem sou
Não seria melhor ser diferente
E ter olhos a mais, visíveis, úmidos
Ser um pouco de anjo e de duende?
Cansam-me estas coisas que vos digo.
As paisagens em ti se multiplicam
E o sonho nasce e tece ardis tamanhos.
Cansam-me as esperanças renovadas
E o verso no meu peito repetido.
Cansa-me ser assim quem sou agora:
Planície, monte, treva, transparência.
Cansa-me o amor porque é centelha
E exige posse e pranto, sal e adeus.
Queres o verso ainda? Assim seja.
Mas viverás tua vida nesses breus.
Que coisa mais linda, preto! Você está cada vez melhor! Parabéns! Beeeijo.
Que bom que você gostou, my lovely boy!
Publicação inteirinha a você!
Beijo imenso, meu anjo, meu irmão!
Paulinho, seu texto me arrancou algumas lágrimas. A dor e a delícia de ser o que somos confundem-se com o que apenas parecemos ser. E aí vem a fraude, a fraude nossa de cada dia. Quem dera ser um peixe.
Flavinho, você, o César, os grandes homens da minha vida… Que bom que você apareceu, e, como sempre, com as mais lindas palavras…
Vamos que vamos, no amor & na fraude, até que a “indesejada” nos separe.
Beijo, meu outro anjo, te amo!
Show.
Valeu, Fernando!
Aquele abraço!
E lendo suas palavras, me reconheço em você! Tocante,
Que maravilha saber, Quézia!
Beijo enorme!