(Para aumentar a imagem, clicar com o mouse sobre ela. Na foto, a pintura Mulher com crisântemos.)
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o olhar observador, atento, parado em frente à tela acima, mulher com crisântemos, do artista francês da virada do século XIX para o século XX, edgar degas:
as flores transbordam do seu vaso na mesa, um pouco à esquerda da tela cujas beiras por pouco elas não ultrapassam, invadindo a moldura, tamanha exuberância. também o seu colorido, de tão vivo, tão intenso, tão bem cuidado, quase abandona a paleta da pintura, saltando do mundo das tintas para o mundo nosso, real, de concreto & cimento armado, tamanho realismo do colorido, mas apenas quase.
(é que o pintor, jovem mestre, ostenta sprezzatura, que é a capacidade que alguns artistas têm de fazer o difícil parecer fácil. é o mesmo que dizemos por cá: “fácil de entender, difícil de fazer”. assim como degas, chico buarque, dorival caymmi & vinicius de moraes são mestres que ostentam sprezzatura.)
o olhar passa por elas (pelas flores), pousa aqui, pousa ali, hesitante abelha, visita, à esquerda do vaso, um jarro d’água, nota um lenço largado sobre a toalha bordada da mesa, e ruma ao lado oposto da tela, para uma mulher cujos olhos ignoram-no, os olhos da mulher ignoram o olhar atento que agora a observa, atraídos, talvez, por algo que se acha fora não somente do quadro em que ela se encontra, mas também daquele quadro em que nos perceberia, se quisesse, se, num repente, resolvesse encarar o olhar que a encarava, se, num rompante, resolvesse fitar o olhar que a fitava, ávido. os olhos da mulher talvez estejam atraídos por algo que se acha fora tanto do quadro em que ela se encontra quanto de um outro, um no qual ela nos perceberia: talvez (os olhos) atraídos por algo que esteja apenas no seu pensamento, talvez por algo que esteja perdido nos seus olhos, que parecem distantes da própria pintura.
sem saber por que, o olhar não mais a quer largar. diga-se a verdade: essa mulher deixa a desejar: ela não se compara aos crisântemos (à sua beleza & exuberância) que lhe deram a fama a que mal faz jus, ela não se compara às flores que lhe deram a fama que, diga-se a verdade, não merece: afinal, ela se encontra à margem do quadro, e nem sequer inteira, só em parte. dela, está bem mais presente, ali no quadro, a ausência que a presença (a mulher nem sequer coloca-se inteira na tela & os seus olhos parecem distantes do cenário em que se encontram).
e, dado que a ausência é proteica, isto é, multiforme, multifacetada (pode-se estar ausente de diversas maneiras, sob diversos aspectos), dado também que a ausência é proteica porque, assim como proteína, alimenta a alma, os pensamentos, os olhos, de fantasias & delírios (a ausência do que atrai para si os olhos da mulher nos faz fantasiar, delirar, as mais sortidas razões), e “tudo nada” (pois tudo que forma a ausência é a falta, é o vazio, é o buraco, “tudo” que forma a ausência é o “nada”, a ausência é o “tudo” que é “nada”), e tudo nada, e tudo bóia, e tudo oscila, e tudo vacila, no quadro (não se pode saber com o que se distraem os olhos da mulher), o olhar atento à pintura mal mergulha na vertiginosa superfície da mulher (a mulher é feita de tinta & não de carne & osso, é superfície genuína porque não possui dentro, é toda exterioridade, e, no entanto, sendo apenas superfície, toda exterioridade, a mulher consegue levar o olhar de quem a observa à vertigem, à viagem interrogativa, curiosa, imaginativa) & flutua, bóia, nada, de volta às flores sobre o fundo castanho do papel de parede; depois, da capo (da capo é uma expressão que significa “desde o princípio” & que é colocada ao fim de um trecho de música, indicando que todo o trecho deve ser repetido), depois, portanto, o olhar é convidado a repetir toda a sua viagem, desde o princípio.
voltar o olhar atencioso inúmeras vezes a uma pintura como quem lê inúmeras vezes um poema: a fim de que a pintura, pura superfície assim como o poema, nos leve a sensações vertiginosas, nos leve a sensações que só sabem desempenhar as grandes obras de arte.
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Porventura. autor: Antonio Cicero. editora: Record.)
MULHER COM CRISÂNTEMOS
(sobre um quadro de Degas)
Para Carlos Mendes Sousa
As flores transbordam do seu vaso à mesa,
um pouco à esquerda da tela cujas beiras
por pouco não ultrapassam, invadindo
a moldura. Também o seu colorido
quase abandona a paleta da pintura
(é que o jovem mestre ostenta sprezzatura),
mas apenas quase. O olhar passa por elas,
pousa aqui, pousa ali, hesitante abelha,
visita, à esquerda do vaso, um jarro d’água,
nota um lenço largado sobre a toalha
bordada da mesa e ruma ao lado oposto
da tela, para uma mulher cujos olhos
ignoram-no, atraídos talvez por algo
que se acha fora não somente do quadro
em que ela se encontra, mas também daquele
em que nos perceberia, se quisesse.
Sem saber por que, o olhar não mais a quer
largar. Diga-se a verdade: essa mulher
deixa a desejar. Ela não se compara
aos crisântemos que lhe deram a fama
a que mal faz jus, já que se encontra à margem
do quadro, e nem sequer inteira, só em parte.
Dela está bem mais presente ali a ausência
que a presença. E, dado que a ausência é proteica
e tudo nada, o olhar mal mergulha em sua
vertiginosa superfície e flutua
de volta às flores sobre o fundo castanho
do papel de parede; depois, da capo.
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