CERIMONIAL: ALEGRIA SEM NOME

Ilhas Cagarras_Rio de Janeiro
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eu vou, no cerimonial da vida, no ritual que me cabe viver, colhendo, com unção, apanhando, com suavidade, com macieza, os dias, conforme tu, vida que me cabe viver, os confias à minha mão sempre disposta a alcançá-los: leves vestes, roupas confortáveis (os dias que tu, vida que me cabe viver, confias à minha mão), que enfio, que visto, quando o coração me despe, quando o coração me desnuda.

quando me despe o coração, quando me desnuda o coração, visto, enfio, os dias que me cabem como roupas leves, confortáveis: pois quando me desnuda o coração, o que resta de mim, nu, é o mais espontâneo & genuíno sentimento de carinho pela vida, pelas coisas que me cercam.

despido pelo coração e, justamente por isso, enfiado nas vestes leves que os dias me aprontam.

vestido das leves vestes que são os dias que tu, vida que me cabe viver, confias à minha mão, ouço-a chegar: é uma leve breve voz na superfície do dia.

ouvi-la lembra países, porque países lembram idiomas, e idiomas lembram vozes distantes, vozes que não nos são próximas, vozes desconhecidas, suspensas no ar: ei-la que vem nupcial, ei-la que vem carregada de amor, sobre o grande rumor do mar.

a leve breve voz não mancha o pensamento, a paisagem.

nada comove as águas paradas, as águas aquietadas, da manhã: silvos, caracóis, canas & vimes: nenhuma voz comove a tranqüilidade das águas matinais.

vejo-a morrer — a leve breve voz — nos pauis, nos pântanos (regiões ribeirinhas cobertas por águas paradas), onde inauguro gestos esquecidos: um arco desenhado pelo braço, um movimento feito com a cabeça, um jeito de corpo.

alegria sem nome lhe chamo. “alegria sem nome” chamo a voz nupcial que atravessou o pensamento, a paisagem, sem manchá-los, “alegria sem nome” lhe chamo & não conheço outro nome para ela.

“alegria sem nome” é o seu nome: uma leve breve voz desconhecida que vem sobre o grande rumor do mar, nupcial, carregada de amor, sabe-se lá por quê, sabe-se lá de onde, sabe-se lá para quem. nada disso importa.

importa é termos os olhos, os ouvidos & o coração abertos às tantas vozes leves & breves presentes na colheita que tu, vida que me cabe, confias à minha mão, ofertando-me, por conseguinte, alegrias que não precisam, que não devem, ser nomeadas.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Aquele grande rio Eufrates. autor: Ruy Belo. editora: 7Letras.)

 

 

CERIMONIAL

 

Eu vou colhendo com unção os dias
conforme tu os confias
à minha mão:
leves vestes que enfio
quando me despe o coração

 

 

ALEGRIA SEM NOME

 

É uma leve breve voz
à superfície do dia
Ouvi-la lembra países
Ei-la que vem nupcial
sobre o grande rumor do mar
Não mancha o pensamento a paisagem
Nada comove
as águas paradas da manhã:
silvos caracóis canas e vimes
Vejo-a morrer nos pauis
onde inauguro gestos esquecidos
Alegria sem nome lhe chamo
e não conheço para ela nenhum outro nome

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