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porque há desejo, porque há arbítrio, porque há querer, porque há vontade, porque há apetite, na poeta, é tudo cintilância, é tudo resplandecência, é tudo luz viva, é tudo clarão.
um dia, a poeta despertou.
antes, o cotidiano da poeta era um pensar alturas, o cotidiano da poeta, antes, era o pensamento na esfera celeste, buscando “aquele outro” decantado, procurando “aquele outro” enaltecido, elogiado, puro, o cotidiano da poeta era, antes, catando “aquele outro” surdo à sua humana ladradura, “aquele outro” mouco ao seu latido humano.
“aquele outro” decantado, enaltecido, elogiado, puro, “aquele outro” que, antes, a poeta buscava: deus, criador das criaturas, arquiteto do universo, senhor nas alturas.
um dia, a poeta despertou.
hoje, o amor da poeta, de carne & osso, de visgo & suor, amor terreno, amor de amante, laborioso, lascivo, toma o seu corpo.
um dia, a poeta despertou.
a poeta, antes, sonhava penhascos, sonhava escalar alturas (buscando “aquele outro” decantado), quando havia o jardim, florido, aqui ao lado, ao alcance dos seus pés. a poeta, antes, pensou subidas onde não havia rastros — afinal, por qual caminho, por qual penhasco, subir aos céus a fim de encontrar “aquele outro” decantado? que rastro levaria a poeta ao encontro daquele que é surdo à sua humana ladradura?
um dia, a poeta despertou.
hoje, extasiada do seu amor, a poeta fode com ele — visgo & suor, que nunca se faziam, hoje se fazem — ao invés de ganir diante do nada, ao invés de grunhir diante daquele que, supostamente, se encontra apenas nas alturas, por sobre subidas & penhascos, surdo à sua humana ladradura, deus mouco ao seu latido humano.
um dia, a poeta despertou.
hoje, dedica-se ao seu amor, terreno, amor de amante, de carne & osso, de visgo & suor: colada à boca do amado, a desordem da poeta, que é o seu vasto querer, querer que, de tão vasto, de tão amplo, de tão ancho, abriga a desordem, a indisciplina, a confusão, a incoerência, a alucinação, a loucura.
por causa do amado, por causa do amor que ama, o incompossível, o incompatível, o inconciliável (a desordem da poeta), se fazendo ordem.
colada à boca do amado está a poeta, mas descomedida, árdua, sôfrega (com o seu vasto querer, o seu amplo desejo), como se o amado fosse morrer colado à sua boca, querer afoito, desesperado, desembestado. como se, morrendo, o amado fizesse nascer a poeta de dentro de si. como se o amado fosse o dia magnânimo, o dia claro, o dia luminoso, o dia límpido, e a poeta, ao nascer, sorvesse extremada a luz do amante à luz do amanhecer, na luz que amanhece um novo dia.
colada à boca do amado está a poeta, e descomedida, árdua, sôfrega (com o seu vasto querer, o seu amplo desejo), examina o amado, construtor de ilusões: pois o amor do amado, tão intenso, tão imenso, deixa a impressão de que será eterno, quando, em verdade, como tudo na vida, um dia acabará, um dia morrerá, um dia extinguirá, queiram ou não queiram os amantes.
assim como o dia, o amado: um construtor de ilusões.
um dia, a poeta despertou.
esqueceu “aquele outro” decantado, enaltecido, elogiado, puro, aquele que não lhe dava ouvidos, e, hoje, dedica-se ao seu amor terreno, amor de amante, de carne & osso, de visgo & suor: colada à boca do amado, que é o dia magnânimo de onde nasce, de onde floresce, de onde desperta, a poeta está.
(a poeta fez do amor a sua casa, a sua morada.)
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Do desejo. autora: Hilda Hilst. editora: Globo.)
I
Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.
III
Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosse nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.
Bela leitura do poema da HH
Bom saber que você gostou, Dinaura!
Espero mais visitas suas à página.
Abraço grande!