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NASCER – CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
30 de dezembro de 2018

Erro
Este vídeo não existe

Gente poética, este poema, do mestre Carlos Drummond de Andrade, é dedicado a todos nós, irmãos de jornada, constituídos de carne, osso, coração e desejos. Desejo que saibamos o milagre de renascer na vida, de nos reinventar, de nos renovar, como acontece com cada ano que chega a fim de ocupar o lugar do outro. Que saibamos sempre solfejar a primeira sílaba da primeira canção, vinda na luz do dia que nos amanhece. Um lindo renascer para todos nós!

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NASCER (Carlos Drummomd de Andrade)

Nascer
outra e outra vez
indefinidamente
como a planta sempre nascendo
da primeira semente;
pensar o dia bom
até criar a claridade
e nela descobrir
a primeira sílaba
da primeira canção.

SOMOS TROPICÁLIA — 50 ANOS DO MOVIMENTO — 10° CICLO: CLARA GURJÃO, BRUNO COSENTINO E PAULO SABINO — FOTOS, TEXTO SOBRE O EVENTO E POEMA (PAULO SABINO)
21 de novembro de 2017

(Todas as fotos: Luciana Queiroz)

(Os participantes desta edição acompanhados de Gal Costa e Caetano Veloso: Paulo Sabino, Clara Gurjão e Bruno Cosentino)

(Os participantes acompanhados de Guilherme Araújo)

(Copos de leite compondo o ambiente — Foto: Paulo Sabino)
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*** Nesta edição, a cantora e compositora Clara Gurjão une-se ao também cantor e compositor Bruno Cosentino apresentarão músicas do repertório tropicalista misturadas às autorais, com intervenções do poeta Paulo Sabino ***
 
No dia 22 de novembro (quarta-feira), a partir das 20h, acontece a décima (10ª) etapa do ciclo de encontros “Somos Tropicália – 50 anos do movimento”, no Gabinete de Leitura Guilherme Araújo, em homenagem aos 50 anos da Tropicália: as surpreendentes e eletrificadas apresentações de Caetano Veloso e Gilberto Gil no Festival da TV Record em 1967 são consideradas o marco inicial do movimento na música, que se consolidou com a gravação de “Tropicália Ou Panis Et Circenses”, álbum-manifesto lançado no ano seguinte.
 
Para a nova edição, inédita, desta celebração poético-musical, os artistas foram convidados a montar um roteiro no qual interpretarão alguns clássicos da Tropicália, incluindo, também, obras autorais que se inspiram ou conversem com as influências do movimento. Junto às canções, poemas onde percebemos o legado constituído pelo Tropicalismo.
 
Para esta edição de novembro, o projeto traz a cantora e compositora Clara Gurjão, que considera a Tropicália uma das suas grandes fontes de inspiração e aprendizado. “A Tropicália foi provavelmente o movimento artístico que mais me ensinou e me formou enquanto pessoa e enquanto artista. De Zé Celso Martinez a Tom Zé, de Hélio Oiticica a Torquato Neto, em todas as áreas em que a Tropicália se manifestou eu sentia a presença de um fogo vital que me atraia de maneira inexplicável, e continua atraindo”, declara a artista. Clara é uma cantora que por isso é detentora de grande intimidade com a obra dos tropicalistas; em seu trabalho autoral, ela canta “Muito”, do Caetano Veloso, e possui uma versão toda sua de uma canção mais recente do baiano, “Abraçaço”, mas com o espírito tropicalista já no título. “Cresci ouvindo de tudo um pouco em casa: admirava Tom e a bossa-nova, os cantores do rádio e seus sambas-canções e boleros românticos, curtia o pagode e o pop radiofônico dos anos 1990, mas o que me instigava mesmo era a irreverência, a ousadia e a liberdade estética de Caetano, Gil, Gal e seus companheiros”, recorda-se a artista.
 
Junto com ela estará o cantor e compositor Bruno Cosentino, que, assim como a Clara, tem o movimento tropicalista como uma grande escola em termos estético, comportamental e musical. E Bruno, que também gravou Caetano no seu trabalho autoral, a canção “Tem que ser você”, acredita que precisamos continuar o legado e o aprendizado da Tropicália: “Um dos aspectos principais da Tropicália e negligenciado hoje em dia foi sua negatividade mordaz. Precisamos então negá-la para fazê-la recuperar o brilho intenso do seu centro. A nova canção brasileira deve vir a ser 50 anos depois a Retropicália”, dispara o artista.
 
Com eles, fazendo as intervenções poéticas, estará o poeta e jornalista Paulo Sabino, idealizador e produtor do Somos Tropicália com o jornalista Rafael Millon. Além de textos e poemas tropicalistas e que inspiraram o movimento, Sabino lerá alguns dos seus poemas, fazendo uma costura entre as músicas apresentadas e os textos e poemas escolhidos: “queria deixar no projeto, além da minha assinatura como produtor e idealizador, a minha assinatura como poeta e admirador de um movimento que me formou”.
 
 
Serviço:
Gabinete de Leitura Guilherme Araújo
SOMOS TROPICÁLIA – 50 anos do movimento
Novembro (10ª edição): com Clara Gurjão, Bruno Cosentino e Paulo Sabino/ Pocket-show e leitura de poesias
Dia 22/11 (4ª-feira)
A partir das 20h
Rua Redentor, 157 Ipanema
Classificação: livre
R$ 1,00
 
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Aos interessados, um modo qualquer de apreender a vida, de fazer valer a existência, em meio a tantas turbulências e tantos desafios; apesar de todas as pedras no meio do caminho. Um modo qualquer de encarar dores e dissabores a fim de deixá-los para trás, de não pesarem a bagagem de vivências que carregamos mundo afora, alma adentro. Um modo qualquer. Que, por qualquer, pode servir a alguém.
 
Beijo todos!
Paulo Sabino.
 
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(autor: Paulo Sabino.)
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A CERTEZA DE UMA INCERTEZA
27 de maio de 2014

Vandeco, comigo, nas Paineiras

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hoje, que a noite pulsa tranqüila dentro do meu quarto, busco a tranqüilidade de coisa nenhuma, de coisa nenhuma porque coisa inerte, coisa inanimada, tranqüilidade como a que observamos nas pedras: sua constituição maciça, inteiriça, inerte, inanimada, silenciosa, parada no tempo, pregada ao chão.

busco a tranqüilidade de coisa nenhuma, inerte, inanimada, por sentimentos de cores apagadas: apesar de sentimentos coloridos, o colorido é sem cor, como o colorido da tranqüilidade pétrea: pois que a tranqüilidade da rocha, um ente inanimado, só exterior, sua tranqüilidade parada no tempo, pregada ao chão, gera, nela mesma, sentimentos de cores apagadas.

(tranqüilidade de coisa nenhuma só pode gerar sentimentos de cores apagadas.)

este sol que mina, este sol que se espalha, em mim, sol frio (de sentimentos de cores apagadas), este sol que se propaga por todo o resto (por tudo o que enxergo como mundo), faz-me sentir a necessidade inútil ao mundo, à humanidade — sou incapaz de evitar catástrofes nem, ao menos, de dar por elas.

a necessidade inútil ao mundo, à humanidade: não possuo o poder de decisões importantes no tabuleiro político & econômico mundano, não posso salvar vidas efetivamente, não posso assinar decretos nem leis em prol da melhoria das condições existenciais do bicho homem.

mas posso, ao menos, escrever, posso, ao menos, apresentar estas linhas, aos senhores, como faço regularmente.

compreendo, mais do que nunca, que a vida é, e sempre será, uma parte do desconhecido, uma parte do inalcançável, do impenetrável (feito tranqüilidade de pedra), assentada (a tal parte do desconhecido de que se constitui a existência) em tudo que resta & rasteja.

a certeza de uma incerteza insolúvel, incerteza sem solução: a morte? a vida? deus? o universo?

a certeza de uma incerteza insolúvel, o ponto com nó, o ponto sempre embaraçado: a morte? a vida? deus? o universo?

portanto, almejar a viagem de poder debruçar à janela (já que a mim não me foi dado o poder de direção do mundo nem tampouco o poder de direção do universo), condutor-passageiro fervoroso do caminho a ser vislumbrado, condutor-passageiro fervoroso (que exala grande calor, que denota intensidade) do caminho que sigo trilhando, dia-a-dia, com mãos & pés.

em nome dela, da vida que se renova em cada cova, em cada fenda aberta (seja para o plantio da semente de algo que florescerá, seja para o sepultamento de algo que não nos serve mais), minha poesia de navio, de barco, minha poesia itinerante, errática, minha poesia destinada a navegar sempre; em nome dela, da vida que se renova em cada cova, em cada fenda aberta, minha poesia vela, cuida, zela.

em nome dela, da vida que se renova em cada cova, em cada fenda aberta (seja para o plantio da semente de algo que florescerá, seja para o sepultamento de algo que não nos serve mais), minha poesia de navio, de barco, minha poesia “vela”, minha poesia peça de tecido usada para a propulsão eólica da embarcação em que sigo singrando os mares da vida, eu, o antinavegador de moçambiques, goas, calecutes.

beijo todos!
paulo sabino.
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(Autor: Paulo Sabino.)

 

 

A CERTEZA DE UMA INCERTEZA

 

Hoje, que a noite pulsa tranqüila
Dentro do meu quarto,
Busco a tranqüilidade de coisa nenhuma, inerte, inanimada,
Por sentimentos de cores apagadas.
Este sol que mina em mim,
Propagando-se por todo o resto,
Faz-me sentir a necessidade inútil
Ao mundo, à humanidade —
Sou incapaz de evitar catástrofes
Nem, ao menos, de dar por elas.
Compreendo, mais do que nunca,
Que a vida é e sempre será
Uma parte do desconhecido,
Assentada em tudo que resta e rasteja.
A certeza de uma incerteza
Insolúvel, o ponto com nó.
Portanto, almejar a viagem
De poder debruçar à janela,
Condutor-passageiro fervoroso,
Do caminho a ser vislumbrado.

MUSA
6 de fevereiro de 2014

Casa branca & Mar azul

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não há nada, no mundo, que possa fazer eu deixar de cantar (o canto da poesia).

não há nada no mundo — nem nunca haverá.

musa, deusa responsável por ventar as palavras ao pé do meu ouvido, ensina-me o canto venerável (que se deve respeitar, digno de veneração) & antigo.

o canto venerável & antigo: o canto da poesia, no mundo desde priscas eras, no mundo desde tempos remotos, o canto para todos porque por todos entendido, o canto claro feito luz do dia.

musa, ensina-me o canto, este, o justo irmão das coisas, o canto que cante a vida (a planta, a pedra, a parede da casa primitiva, o murmúrio do mar que a cercava, a janela quadrada, o quarto branco, a manhã polida & seu brilho), canto incendiador da noite (momento intenso, em que a deusa musa venta, ao pé do meu ouvido, os seus desejos de linguagem), e canto secreto — impenetrável, que não se revela — na tarde (momento em que o canto não se revela porque em estado de maturação, em estado de sentidos, percepções, momento em que o canto ainda abstrato, a pré-linguagem).

musa, ensina-me o canto em que eu mesmo regresso, sem demora & sem pressa, no tempo certo/ideal, tornado planta ou pedra, ou tornado parede da casa primitiva, ou tornado o murmúrio do mar que cercava a casa primitiva: musa, ensina-me o canto profundo, o canto que canta muitas vozes (a voz da planta, da pedra, da parede da casa primitiva, do murmúrio do mar que a cercava, da janela quadrada, do quarto branco, da manhã polida & seu brilho), tendo, como instrumento para cantar, a minha (pouca) voz.

musa, ensina-me o canto onde o mar, fascínio maior da minha existência, respira, coberto de brilhos (brilhos que são o reflexo, na superfície marinha, tanto da luz solar quanto da luz lunar).

musa, ensina-me o canto da janela quadrada & do quarto branco — que eu possa dizer, com teu sopro inspirador, como a tarde, ali, no quarto branco, tocava na mesa & na porta, no espelho & no corpo, e como os rodeava.

que eu possa, musa, dizer o canto das coisas, pois o tempo me corta, o tempo me divide, o tempo me atravessa, e me separa, vivo, do chão & da parede da casa primitiva (o caráter da identidade se dá pelo caráter da alteridade: eu sei quem sou porque sei que não sou o chão nem a parede da casa primitiva; deles me destaco, deles me separo).

musa, ensina-me o canto venerável & antigo, o canto da poesia, para prender o brilho desta manhã polida, manhã luzidia, límpida em sua luminosidade, manhã que pousava docemente os seus dedos na duna & que caiava as paredes da casa limpa & branca.

musa, ensina-me o canto que me corta a garganta.

musa, ensina-me o canto que em tudo me encanta.

para que eu me torne, vidafora, musa, um instrumento do teu prazer & da tua glória.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Poemas escolhidos. seleção: Vilma Arêas. autora: Sophia de Mello Breyner Andresen. editora: Companhia das Letras.)

 

 

MUSA

 

Musa ensina-me o canto
Venerável e antigo
O canto para todos
Por todos entendido

Musa ensina-me o canto
O justo irmão das coisas
Incendiador da noite
E na tarde secreto

Musa ensina-me o canto
Em que eu mesma regresso
Sem demora e sem pressa
Tornada planta ou pedra

Ou tornada parede
Da casa primitiva
Ou tornada o murmúrio
Do mar que a cercava

(Eu me lembro do chão
De madeira lavada
E do seu perfume
Que atravessava)

Musa ensina-me o canto
Onde o mar respira
Coberto de brilhos
Musa ensina-me o canto
Da janela quadrada
E do quarto branco

Que eu possa dizer como
A tarde ali tocava
Na mesa e na porta
No espelho e no corpo
E como os rodeava

Pois o tempo me corta
O tempo me divide
O tempo me atravessa
E me separa viva
Do chão e da parede
Da casa primitiva

Musa ensina-me o canto
Venerável e antigo
Para prender o brilho
Dessa manhã polida
Que poisava na duna
Docemente os seus dedos
E caiava as paredes
Da casa limpa e branca

Musa ensina-me o canto
Que me corta a garganta

A POESIA É UM ATENTADO CELESTE
6 de novembro de 2013

Banco vazio com folhas secas

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senhores,

há pouco, passei por dois acidentes graves, em seqüência, cada qual com suas peculiaridades.

num acidente, eu vi a cara da morte, e ela estava viva: voltando de belo horizonte para o rio de janeiro, o ônibus em que viajava bateu na traseira de um caminhão parado no acostamento. uma pessoa morreu na hora, três outras ficaram presas nas ferragens, e não sei quantos mais feridos. por sorte, tive apenas um inchaço no polegar direito & dores nas costas devido à batida. nada mais.

no outro acidente, a dor de ser fisicamente freado pela vida: pedalando com o orlando (meu camelo azul da cor do mar), um ciclista, que vinha na direção oposta à minha, ao tentar ultrapassagem, invadiu a contramão (sem que eu tivesse tempo de desviar) & bateu de frente comigo. resultado: por causa do deslocamento de uma parte óssea (curiosamente chamada “capitulo”) & da fratura de um outro osso, tudo no cotovelo esquerdo, tive de operar, para colocar pinos & parafusos, e de imobilizar o braço. um mês imobilizado & depois — pelo menos — mais um mês de fisioterapia.

estou ótimo, graças. por sorte, não foi o braço direito o atingido, afinal sou destro!

no entanto, querendo ou não, a vida me parou, me pôs quieto no meu canto. com isso, tive de encará-la sem meias verdades.

tais acontecimentos mexem, mexeram, comigo. fichas caíram. prioridades subiram.

re-pensar, re-ver, re-fazer, re-tomar.

tenho que um monte de coisas pendentes, e importantíssimas.

momento de reflexão: dando um tempo para mim. ausente de mim mesmo.

eu estou ausente, porém, no fundo desta ausência, existe a espera de mim mesmo, e esta espera é um outro modo de presença (tenho que um monte de coisas pendentes, e importantíssimas).

à espera de meu retorno, eu estou em outros objetos. ando em viagem (interna) dando um pouco de minha vida a certos livros & a certos discos, objetos que me esperaram muitos anos.

eu não estou & estou: estou ausente & estou presente, mas presente “em estado de espera”.

eles (os objetos a quem dou um pouco de minha vida) queriam minha linguagem para expressar-se. e eu queria a — linguagem — deles para expressá-los: eis o atroz equívoco: o equívoco primordial: a tentativa de interpretação das coisas, herméticas nelas mesmas, sem explicações ou justificativas sobre o que são & desejam.

angustioso, lamentável (pelo atroz equívoco), vou-me adentrando nestes objetos — e deixando minhas roupas, perdendo as carnes: meu esqueleto vai-se revestindo do material que forma os objetos.

estou-me fazendo livros, discos, palavras, som…

(quantas vezes me converti em outras coisas…)

o processo de transformação, por me achar à espera de mim mesmo, é doloroso & cheio de ternura. podia dar um grito, fazer barulho, chamar a atenção às dores das mudanças.

mas para quê?

à transubstanciação (transformação de uma substância em outra) de nada adiantaria o grito.

com o grito, a transubstanciação se espantaria.

(a transubstanciação: a transformação de uma substância, o paulo sabino, em outra.)

há que guardar silêncio. a fim de pensar, refletir, concentrar.

esperar em silêncio.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Pescados vivos. autor: Vicente Huidobro. tradução: Waly Salomão. editora: Rocco.)

 

 

A POESIA É UM ATENTADO CELESTE

 

Eu estou ausente porém no fundo desta ausência
Existe a espera de mim mesmo
E esta espera é outro modo de presença
À espera de meu retorno
Eu estou em outros objetos
Ando em viagem dando um pouco de minha vida
A certas árvores e a certas pedras
Que me esperaram muitos anos

Cansaram-se de esperar-me e sentaram-se

Eu não estou e estou
Estou ausente e estou presente em estado de espera
Eles queriam minha linguagem para expressar-se
E eu queria a deles para expressá-los
Eis aqui o equívoco o atroz equívoco

Angustioso lamentável
Vou-me adentrando nestas plantas
Vou deixando minhas roupas
Vou perdendo as carnes
E meu esqueleto vai-se revestindo de cascas
Estou-me fazendo árvore  Quantas vezes me converti em
………………………………………………………….[outras coisas…
É doloroso e cheio de ternura
Podia dar um grito porém a transubstanciação se espantaria
Há que guardar silêncio  Esperar em silêncio

DESABAFO: ACORDA, BRASIL!
6 de dezembro de 2012

Décio Pignatari

(O poeta Décio Pignatari.)
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Escreveu (muitíssimo bem) o poeta Régis Bonvicino:

“A morte do poeta paulistano Décio Pignatari, ocorrida esta semana em São Paulo, aos 85 anos, produziu uma série de manifestações na imprensa, como seria de se esperar. O surpreendente foi o tom nostálgico que marcou a maioria delas, ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, também se acentuava certa modernidade essencial de Pignatari. Alguns afirmaram que seu ‘espírito inovador’ faz falta à poesia atual, outros, que Pignatari jamais foi reconhecido como deveria, não tendo, por exemplo, recebido prêmios literários.”
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Um DESABAFO de PAULO SABINO:

sinceramente, às vezes eu não entendo o Brasil. Quer dizer que, agora, depois de falecido, todas as loas & todos os reconhecimentos a Décio Pignatari? De um dia pra outro, todos os salves à obra do poeta?

Vem cá: e quando vivo? e quando entre nós, por que a falta de tantas homenagens & matérias de jornal?

Sabe o que acho? CARETICE, MEDO, INVEJA, por parte de quem compõe a elite literária, CARETICE, MEDO, INVEJA, dos que encabeçam os prêmios & críticas literários. Puxa vida, um poeta de tão altas capacidades… capacidades, aliás, reconhecidas por todos que, de algum modo, mexem com literatura (vide a comoção diante da morte do poeta).

E me pergunto: por que fingir menosprezo, por que fingir certa falta de importância, a uma obra tão cheia de requintes, como é a obra do Décio, enquanto Décio estava vivo, entre nós? Nem 1 prêmio literário com obra tão vasta & festejada? COISA BESTA, ABSURDO PEQUENO, ATITUDE MESQUINHA.

Agora que o bardo se foi, agora que não tem mais jeito (infelizmente o processo de ressurreição morreu com o Cristo na cruz), como vai ser? Um “pipocar”, uma enxurrada, de prêmios ao poeta morto?

Agora, poeta sete palmos abaixo da terra, todos os reconhecimentos à sua fantástica obra…

PAÍS DE MERDA!, que não sabe dar valor ao que tem, PAÍS DE MERDA!, que precisa de aval estrangeiro pra reconhecer o que é valoroso no seu território. TRISTE TRISTE TRISTE, HORROR HORROR HORROR…

Na boa: às vezes penso que o BRASIL, melhor: que alguns BRASILEIROS — falando bem diretamente ao meio literário — NÃO MERECEM alguns filhos deste solo, filhos da grandeza de DÉCIO PIGNATARI.

O que acontece agora com o Décio (MORTO) é recorrente no Brasil. E os senhores não fazem idéia da VERGONHA que sinto…

Agora podem me perguntar: se acho importante que finalmente Décio Pignatari seja reconhecido? que receba prêmios & loas? que seu nome, finalmente, ganhe o país?

Acho, acho super importante, e desejo!, e quero!, que isso aconteça.

Mas, porra!, é preciso que o homem morra sem o devido reconhecimento dos próprios pares (digo: jornalistas, críticos & poetas)?

Caralho!, ele fez pela língua portuguesa, Décio foi um poeta BRASILEIRO! Que medo é esse (o de admitir o grande valor & a grande contribuição literária)? que “protecionismo” babaca é esse?

Isso me REVOLTA! Porque sei que, no caso do Décio, assim como em muitos outros casos, tal fingida desconsideração pela sua obra ocorreu por conta de MEDINHOS & INVEJA de parte da classe literária.

A elite intelectual brasileira precisa CRESCER, precisa AMADURECER.

Jornalistas, críticos literários, poetas: UNI-VOS!

O que importa é a BOA poesia. Belezas nasceram para ser COMPLEMENTARES & não EXCLUDENTES!

 A existência é um grande barato pela variedade de belezas que apresenta: variedade de bichos, de plantas, de mares, de rios, de rochas, de cores, de sons, de cheiros, de pessoas. 
 
Não seria diferente na arte.
 
Pensem a respeito.
 
ACORDA, BRASIL!

A MINHA TERRA, A MINHA MÃO
22 de novembro de 2012

(Ofereço-vos, senhores, minha terra, chão primeiro que pisei & berço do que me tornei & tornarei, e minha mão, queimada pelo ardor das palavras & vestida com as roupas & as armas de Jorge.)

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terra, lugar de onde venho, terra, lugar cuja topografia também me forma & molda, terra: por mais distante, este errante navegante: quem jamais te esqueceria.
 
terra: de ti é que vêm essas portas de mim: as entradas & saídas por onde o paulo sabino é acessado, os caminhos por onde caminha o paulo sabino.
 
a terra onde nasci, chão primeiro que pisei, berço do que me tornei & tornarei, revela um bocado do que revelo em mim. a língua, os hábitos, o clima, a geografia: a terra onde nasci — chão primeiro que pisei, berço do que me tornei & tornarei — cabe toda em mim com as suas características.
 
terra: sendo de sol, sendo de luz & calor, a planície (da minha terra), os cômodos da casa onde me criei, o dorso que também foi meu, fecho-me, introspectivo, conectado apenas à terra de onde venho, porque em tudo te vejo, terra, como se fosses de água & derramasses teu corpo escurecido (teu corpo não claro, teu corpo nada fulgente, terra, aqui & agora, feita de ar & memória) na paisagem ao meu redor.
 
quis, para o canto que cantas através da minha garganta, terra, a mais viva palavra, a mais pulsante, a mais vibrante, a mais brilhante palavra: um só templo: o mais nítido templo-palavra sobre a colina, o mais limpo templo-palavra (a mais viva palavra, palavra que também seja templo, que também seja lugar erguido em homenagem a uma ou mais divindades) na luminosidade da hora.
 
meu rosto será aquele de todos os teus mortos, terra, isto é: rosto nenhum. meu rosto será aquele de todos os teus mortos quando me tiveres inteiro dentro de ti, terra: mais um rosto passado, anônimo, desconhecido: rosto nenhum.
 
e, no entanto, mesmo o meu rosto, no futuro, sendo aquele de todos os teus mortos (mais um rosto passado, anônimo, desconhecido: rosto nenhum), te amo como se eu mesmo fosse unicamente terra, te amo como se eu mesmo fosse tecido unicamente da tua matéria, terra, te amo como se eu mesmo fosse, ao mesmo tempo, teu pai (como se, de mim, saísses), teu filho (como se, de ti, saísse) & teu irmão na memória (porque em tudo te vejo, terra, como se fosses de água & derramasses teu corpo escurecido, teu corpo não claro, teu corpo nada fulgente, teu corpo, aqui & agora, feito de ar & memória), teu pai filho & irmão multíparos & claros, nascidos (o pai, o filho & o irmão que sou da minha terra) de uma só matriz, nascidos todos de uma única fonte, sofridos de uma só matéria: da matéria terra, terra de onde venho, terra onde nasci, terra que cabe em mim com as suas características.
 
terra: por mais distante este errante navegante: quem jamais te esqueceria.
 
e, sem heroísmo nem queixa, além de oferecer a minha terra, ofereço aos senhores esta minha mão que, neste instante, vos escreve.
 
sem heroísmo nem queixa, sem achar bom nem ruim, ofereço-vos minha mão aberta. agora a minha mão, senhores, vos pertence, queimada de uma luz tão viva, tão vibrante, tão pulsante, como se viva ardesse sob o sol.
 
olhai, senhores, se possível, a mão que se queimou de coisas limpas, olhai, se possível, a mão que se queimou de coisas isentas de qualquer sujidade, impureza ou mácula, mão chamuscada pelo calor & pela luz que saem das palavras desenhadas por ela.
 
e se souberdes, senhores, o que em vós é justiça, e se souberdes, senhores, o que em vós é mérito, é merecimento (afinal, ofereço-vos a mão que se queimou de coisas limpas, mão isenta de qualquer sujidade, impureza ou mácula), podereis refazê-la como a vossa mão. e, depois de igualada a minha mão à vossa, tornando-se, desse modo, a mão dos senhores, aproveitá-la (aproveitar minha mão aberta, mão que se queimou de coisas limpas, mão chamuscada pelo calor & pela luz que saem das palavras por ela desenhadas), a cada hora do vosso dia & para o vosso pão, para o vosso alimento.
 
(que assim seja.)
 
beijo todos!
paulo sabino.     
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(do livro: Exercícios. autora: Hilda Hilst. organização: Alcir Pécora. editora: Globo.)
 
 
 
4
 
 
Terra, de ti é que vêm essas portas de mim. E sendo 
                                                                                                [de sol
A planície de pedra, de sol o vestíbulo da casa, de sol
O dorso que  também foi meu, impaciente das aves,
                                                                                           [fecho-me 
Porque em tudo te vejo como se fosses de água, e
                                                                                     [derramasses
Teu corpo escurecido, na paisagem. Quis para teu canto
A mais viva palavra: um só templo:
Nítido sobre a colina, limpo na luminosidade da hora.
 
Meu rosto será aquele de todos os teus mortos. E no
                                                                                                [entanto
Te amei como se eu mesma fosse unicamente terra,
                                                                                          [mãe, filha
Irmã na memória, multíparas e claras, nascidas de
                                                                                    [de uma só matriz
Sofridas de uma só matéria.
 
 
 
6
 
 
Sem heroísmo nem queixa, ofereço-vos
Minha mão aberta. Agora vos pertence.
Queimada de uma luz tão viva
Como se ardesse viva sob o sol. Olhai se possível
A mão que se queimou de coisas limpas.
E se souberdes o que em vós é justiça
Podereis refazê-la como a vossa mão. E depois igualada
Aproveitá-la. A cada hora, a cada hora
E para o vosso pão.

INVERNO
26 de outubro de 2012

(Há algo que jamais se esclareceu: onde foi exatamente que larguei, naquele dia mesmo, o leão que sempre cavalguei?…)
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o mais feliz pela sua partida, o mais feliz por pensar que você ia embora.

no dia  em que fui mais feliz, eu vi um avião se espelhar no seu olhar até sumir.

você, espelhando, no olhar, um avião, e eu feliz por isso. você, espelhando a partida no olhar, você, espelhando a viagem no olhar, e eu feliz por isso.

de lá pra cá (desde o dia em que vi um avião se espelhar no seu olhar, passado algum tempo), não sei… não sei se tão feliz como antes…

de lá pra cá, não sei… caminho ao longo do canal; pensativo, faço longas cartas pra ninguém; e o inverno, no leblon, é quase glacial. inverno rigoroso, de ventos fortes & frios…

há algo que jamais, nesse meio tempo, se esclareceu:

onde foi (em que parte) exatamente que larguei, naquele dia mesmo (no dia em que fui mais feliz, vendo um avião se espelhar no seu olhar, até sumir), o leão que sempre cavalguei?

há algo que jamais se esclareceu:

em que parte daquele dia larguei o leão que sempre cavalguei?…

o leão que sempre cavalguei:

eu, capaz de domar uma fera, o rei dos animais, um leão. eu, capaz de cavalgar um leão, arisco, violento, solitário.

naquele dia mesmo (no dia em que vi um avião se espelhar no seu olhar, até sumir, no dia em que fui mais feliz), onde foi exatamente que larguei o leão que sempre cavalguei?…

(esse acontecimento, esse “algo”, a mim, jamais se esclareceu.)

lá mesmo (lá no dia em que fui mais feliz, lá no dia em que larguei, perdido, o leão que sempre cavalguei) também esqueci que o destino — destino que tracei por sobre o leão que cavalguei — sempre me quis só. sempre só, no deserto, num local ermo (somente eu & o leão, bicho arisco, intratável), sem saudades, sem remorsos, no deserto, só, sem amarras (sem cabos ou cordas ou correntes), barco embriagado ao mar, barco extasiado, barco embebedado, do mar, barco que deseja só viajar, sem amarras, barco que só almeja o mar & o livre navegar.

por isso, por ser um barco embriagado ao mar, não sei o que (ou quem), em mim, só quer me lembrar que, um dia, o céu reuniu-se à terra, um instante, por nós dois.

não sei o que (ou quem), em mim, só quer me lembrar que, um dia, o céu reuniu-se à terra por nós dois: o céu na terra: o paraíso ao alcance dos dedos: o dia que o céu reuniu-se à terra (um instante) por nós dois.

porque, afinal, no dia em que fui mais feliz eu vi, nos seus olhos, a sua viagem, a sua partida — sim, eu, cujo destino sempre quis só, no deserto, sem saudades, sem remorsos, só, sem amarras, barco embriagado ao mar.

por isso, não sei o que, em mim, só quer me lembrar que, um dia, o céu reuniu-se à terra, um instante, por nós dois, pouco antes do ocidente se assombrar, pouco antes do ocidente tornar-se sombreado, pouco antes do ocidente tornar-se menos luminoso, menos claro: um inverno quase glacial.

(no dia em que fui mais feliz… de lá pra cá, não sei… o leão que sempre cavalguei, cadê?…)

beijo todos!
paulo sabino.

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(do livro: Guardar. autor: Antonio Cicero. editora: Record.)

 

INVERNO                                                    (para Suzana Morais)

 

No dia em que fui mais feliz
eu vi um avião
se espelhar no seu olhar até sumir

de lá pra cá não sei
caminho ao longo do canal
faço longas cartas pra ninguém
e o inverno no Leblon é quase glacial.

Há algo que jamais se esclareceu:
onde foi exatamente que larguei
naquele dia mesmo o leão que sempre cavalguei?

Lá mesmo esqueci
que o destino
sempre me quis só
no deserto sem saudades, sem remorsos, só
sem amarras, barco embriagado ao mar

Não sei o que em mim
só quer me lembrar
que um dia o céu
reuniu-se à terra um instante por nós dois
pouco antes do ocidente se assombrar.

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(do site: Youtube. áudio extraído do cd: A fábrica do poema. artista & intérprete: Adriana Calcanhotto. canção: Inverno. versos: Antonio Cicero. música: Adriana Calcanhotto. gravadora: Epic Records.)

DE ONDE ME VEM, AMOR…
18 de novembro de 2011

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de onde,
 
de que lugar,
 
de que terreno,
 
de que país,
 
de que reino,
 
você me vem, amor?
 
por onde você me chega, amor?
 
de onde me vem, amor, ardendo em fogo brando, este querer, de onde vem, amor, esta vontade de tê-lo mais & mais em vida, e que mais queima, mais arde (a vontade de tê-lo mais & mais em vida), quando percebo seus pés em fuga, amor, afastando-se?
 
de onde é que aflora, tão fugaz (e tão “fullgás”), tão impressentida, essa lembrança que vou avivando de você, amor, e que, sem que eu descubra nem por que nem quando, me conhece, me decifra, me sabe, como se eu fosse o texto de uma página já lida, como se eu fosse já um caderno de linhas traçadas?… 
 
como é que você me sabe tão ao certo & em cheio, amor?…
 
como é que sei ir da nascente à úmida foz desse seu corpo, amor, onde navego sem bússola, se a luz tíbia, luz fraca, luz débil, que o prefigura, se a luz tíbia que o pressupõe, ainda que frouxa, ainda que rasa, consegue cegar-me a direção & as (minhas) mãos só conseguem tocá-lo sob a névoa dos lençóis?
 
e como, amor, apesar de todas as dificuldades (apesar de navegar sem bússola no seu mar, apesar da sua luz, ainda que a mais fraca, me cegar, apesar de tocá-lo apenas por sob névoas), como hei de esquivar-me da sua chama, se é nela, na sua chama, que me aqueço, se é nela, na chama do amor, que faço a minha própria cama?
 
(existiria, no mundo, alguma forma de esquivar-me da sua chama?…) 
 
(é bom lembrar: se longe o amor, o desejo de amar queima ainda mais.) 
 
eu não sei como, nem onde, nem quando, nem por quê, o amor. sei, apenas, que o quero a olhos vistos. 
 
(na chama do amor me aqueço. na chama do amor armo a minha cama.) 
 
alimento-me da sua luz.
 
(e que assim seja sempre.) 
 
beijo todos!
paulo sabino. 
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(do livro: Poesia reunida. autor: Ivan Junqueira. editora: A Girafa.)
 
 
 
DE ONDE ME VEM, AMOR…
 
   
De onde me vem, amor, ardendo em fogo brando,
este querer-te mais do que me é dado em vida
e que mais queima, aberto em lúbrica ferida,
sempre que vais, os pés em fuga, te afastando?
De onde é que aflora, tão fugaz e impressentida,
essa lembrança que de ti vou avivando
e que, sem que o descubra nem por que nem quando,
sabe-me ao texto de uma página já lida?
Como é que sei ir da nascente à úmida foz
desse teu corpo onde sem bússola navego,
se a tíbia luz que o prefigura me faz cego
e as mãos só o toquem sob a névoa dos lençóis?
E como, amor, hei de esquivar-me à tua chama,
se é nela que me aqueço e faço a própria cama? 
 

VIA DE MÃO DUPLA: O LEITOR & O POEMA
2 de setembro de 2011

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Um leitor médio lê um poema. Ao findar a leitura dos versos, na mente do leitor, idéias soltas, versos, a princípio, desconexos. O leitor médio, angustiado, embaralhado nos seus pensamentos, sentencia: “não entendi as linhas, este poema é ruim, não presta”. 
 
João Cabral de Mello Neto dizia que poesia precisa de conhecimento de causa.
 
A poesia trabalha com linguagem, em sua máxima potência.
 
Ora, se o instrumento de trabalho do poeta é a linguagem, um bom poeta precisa, se deseja um trabalho consistente & consciente, debruçar-se no estudo da linguagem, das suas possibilidades, da sua construção, das suas causas & dos seus efeitos. Isso demanda tempo, demanda muita elocubração. Nenhum grande poeta escapa. Basta ler as cartas trocadas entre João Cabral de Mello Neto, Carlos Drummond de Andrade & Manuel Bandeira, reunidas numa obra de Flora Süssekind, sobre a importância de instrumentalizar-se. Isso acaba por trazer um rigor & uma exigência acima da média, acima do uso comum da linguagem. 

E o que dizer da poesia concreta? De Augusto & Haroldo de Campos, de Décio Pignatari?

 Então se o leitor médio não “alcança” as obras poéticas concretas dos poetas aqui citados, se o leitor médio não as “penetra”, significa dizer que as obras desses poetas são “ruins”, que as obras desses poetas “não prestam”? 
 
Se o leitor médio não “alcança” um poema do Drummond, ou do João Cabral, ou do Caetano, ou do Waly Salomão, ou do Augusto de Campos, ou do Décio Pignatari, ou do Nelson Ascher, ou do Marcelo Diniz, ou do Francisco Bosco, ou da Claudia Roquette-Pinto, ou do Adriano Nunes, o poema deixa de ser bom?
 
E por que não um “esforcinho” do leitor médio em instrumentalizar-se para alcançar a obra? Será que a questão reside no poema ou em quem o lê?

O leitor deve tomar cuidado. Eu, por exemplo, se não “alcanço”, se não “penetro”, um poema, passo um bom tempo debruçado sobre ele, e muitas vezes, muitas & muitas & muitas vezes, as belezas & a sagacidade dos versos só se desnudam, aos meus olhos, depois de muitos exercícios & estudos & apreensões, dias afora, noites adentro.

 Senão, como assim? Quer trabalhar poesia, isto é: ler poesia, e não quer ter trabalho?
 
Não há como. Ler poesia é trabalhoso.
 
Afinal, nem todo mundo é gênio; na verdade, a imensa maioria não é. Não somos gênios nem pessoas dotadas de capacidades especiais, e justamente por isso, como leitores, devemos fazer a nossa parte.
 
Se recomendo a leitura de Rilke, João Cabral, Augusto de Campos, Drummond, Pessoa, caro leitor? Recomendo sempre, considero salutar, suponho de grande relevância. Leia, caro leitor, leia. Mas leia sabendo que não é fácil e que, muitas vezes, precisamos de instrumentos — outros livros, artigos de especialistas, outros autores — para “alcançar”, para “penetrar”, determinadas obras.
 
A captação, a apreensão, de algumas obras nos são mais imediatas; de outras, não. E eu não vejo problema que assim o seja.
 
Não absorvo poesia pelos poros. Desde sempre, desde que leio poesia, e isso tem bastante tempo, é muita humildade para reconhecer que não sou gênio de forma alguma e que preciso estudar MUITO, perder noites & mais noites para “alcançar” determinados textos poéticos.
 
Dedicação extrema: eis o caminho para o bom entendimento de leituras/poemas mais densos, mais árduos.
 
Se sabemos que a poesia trabalha a linguagem na sua máxima potência, e que isso demanda um trabalho árduo do poeta para com a linguagem, nada mais natural que a apreensão do leitor se dê com o trabalho também árduo da leitura. Assim como o bom poeta, o bom leitor deve estudar a linguagem & a poesia.
 
É uma via de mão dupla: o poeta & o leitor precisam de conhecimento rico para ambos trabalharem, em suas esferas, o poema.
 
Um bom poema precisa de um bom leitor. É uma via de mão dupla.
 
Beijo todos!
Paulo Sabino.
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(autor do poema: Adriano Nunes. autor da nota: Adriano Nunes**.)
 
 
 BOCAGE AO FIM 
 
-ALMA
 
-ove -aro -ermo
-enso -aio -ece
-ares -eias -eio
 
-iso -inha -aças
-ença -ensa -ando
-assos -itos -aços
 
-usta -ana -orte
-ava -anos -oube
-ados -ero -osos

-ira -ano -undo
-ama -ento -ulta
-ina -ores -uto

-iva -oza -eça
-ia -iste -ecem
-enas -onho -echa

-eixa -agem -enta
-ajem -eras -ende
-adas -inos -eres

-anto -eja -oso
-umes -ade -osas
-ena -una -ora

-eia -ada -ido
-ela -eno -iro
-ino -uro -igo

-elo -eito -ossas
-ite -oma -oiro
-oiros ante -osto

-alam -evos -ua
-oras -erna -ume
-ofre –ente -ude

-ARTE

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**Quando Bocage encontrava-se doente, perto da morte, ele escreveu muitos sonetos. Recentemente, estudei toda a sua obra e verifiquei que em seus últimos sonetos as rimas finais eram as que lhes apresento aqui em um poema que fiz. Espero que meu poema (deu um trabalho imenso!) traga-lhes luz! Coincidentemente, as terminações -ARTE e -ALMA eram rimas em finais de versos!

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(comentário de Paulo Sabino após a leitura do poema Bocage ao fim, de Adriano Nunes
 
Que LINDO! As possibilidades que as terminações nos dão são um grande barato! Fiquei HORAS (rs) olhando, lendo, vendo como formar as palavras, as possibilidades, enfim, VIAJEI (rs rs)!