queridos & queridas,
durante a leitura do primeiro livro da autora que segue, do primeiro livro lido por mim, e ao fim, o sentimento desenvolvido de filiação. senti pela poeta uma espécie de amor de um filho por sua mãe (quando estes se dão bem, evidentemente). pois em várias características ela, a escritora, lembrou-me a minha mãe.
e lembrou-me a minha cabocla por toda a sua poética, conectada à sua religiosidade, marca maior da sua prosa em poema. e, junto à sua religiosidade, um sentimento de amor & encantamento pelo mundo circundante. uma bondade, uma leveza, um entendimento bonito, muito comovente, das coisas. muito muito muito próxima, a autora, de dona jurema armond, a minha cabocla jurema (rs), a minha mais que amada & idolatrada — e ela fez por merecer toda esta extensão de sentimentos em mim — mãe.
por isso, por elas, pela poeta e pela mãe, exijo o cuidado extremo, o máximo respeito. senão quem os perde sou eu.
e a poeta, por suas qualidades artísticas, os merece sem sombras de dúvida.
seu primeiro livro, “bagagem”, que, coincidentemente, foi o primeiro livro seu que li, recebeu indicação para publicação do soberano vate carlos drummond de andrade.
“bagagem” foi lançado quando a escritora tinha os seus 40 anos de idade, isto é, quando já detentora de uma boa bagagem de histórias & memórias: quando mãe, esposa, quando com uma casa para cuidar e o seu quotidiano (aparentemente) simples, singelo, porém rico, valioso, em seus acontecimentos. acontecimentos trabalhados de modo a tornarem-se puros acontecimentos poéticos em suas mãos de bordadeira das palavras, mãos claras e límpidas de matriarca e senhora de si.
na seleção abaixo, deixo às vistas de quem quiser apreciá-lo, o campo, o prado por onde adélia caminha com seus versos.
o prado de adélia: nele, encontramos jonathan, que é, em suma, um tipo de “irmão imaginário” da poeta, a criança que a habita e perdura na sua existência. jonathan representa o menino que é bom conservarmos no peito, junto ao coração — que pode ser muito mais que um simples tambor —. jonathan é sua ficção maior, porque poética, porque jonathan passeia por sua alma, fazendo-a capaz de insensatez, de insanidade, de coisas próprias a uma criança.
no prado de adélia, o deus que enxerga, lúcida, em nada facilita, em nada descomplica: a poeta possui olhos para a complexidade da existência. avista, como boa artesã dos acometimentos da vida, as borboletinhas, os fios dágua com peixes, como também os computadores e os cabos telegráficos sob o mar. são muitas as criações divinas — partindo do princípio de que deus é o grande criador do universo —, e tão divergentes, tão díspares, que confessa a autora:
Descubro que nunca vi a vera face de Deus.
em sua pradaria, o medo da morte, de entregar-se à vida eterna, ao caminho do céu: a rua mais torta de nossas vivências.
acha-se adélia em diversas, em muitas outras, a começar pelos tantos nomes que se incrustaram no seu. notem que todos os derivados apresentados em “as palavras e os nomes” formam-se a partir da poeta, a partir de adélia.
são inúmeras.
tantas, que a mesma reconhece: por maior o esforço, a letra não sai redonda, não sai bem acabada, bem feita. e a impaciência, a vontade de ligar o “foda-se”, também tem o seu espaço.
é impossível viver sem dizer eu.
a paciência não tem começo nem fim. ela inicia-se e finda num ciclo ininterrupto. não se tem controle sobre isso, sobre tal ciclo.
tantas as adélias, tão vasto o seu prado, que nele ainda vemos espaço para a arte poética, a arte da produção — o trabalho e a engenhosidade do poeta cerebral, que afia na pedra calcinada das palavras o seu lápis-bisturi —.
o pelejador, aquele que luta com a língua, não entende: quer escrever as coisas com as palavras, com estas imperfeições da linguagem.
palavras: que se façam delas, “coisas”; coisas a serem moldadas e remodeladas, coisas sempre em ebulição, em estado de efervescência, como um sabão no tacho fervendo.
(ser o “oráculo do senhor”, visto que este senhor nada mais é do que a existência, a vida vivida. o desejo de posse deste fogo e da roupagem de forma ajustada, de talhe acertado.)
caminhem por sobre toda a terra fértil de adélia, esta espécie de aia, de criada da dama nobre que é: a poesia.
passeiem por este prado, deixando que sua beleza se estenda aos vastos prados de vocês.
beijo grande em todos.
um especial em minha cabocla. outro em adélia.
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: A faca no peito. autora: Adélia Prado. editora: Record.)
BIOGRAFIA DO POETA
Era uma casa com árvores de óleo,
duas árvores grandes…
Assim começa o meu amor por Jonathan,
com este belo relato.
Referia-se meu pai aos óleos como se recontasse:
‘Destes troncos que vês, Deus falou a Moisés.’
Pois bem. Duas árvores de óleo,
duas horas da tarde,
e um café que todo mundo,
àquela hora, fazia.
Uma voz intrometeu-se:
‘Você e seu irmão podem brincar aqui que não chateiam.’
Chamavam poeta ao que sabiam rimar,
o mundo intimava.
Nem Salomão em sua glória foi mais feliz que eu.
Pode-se transformar em amor o horror às fezes?
Ainda que tênues,
desconforto e estranheza não devem permanecer
para que eu siga humana?
Queria ter inventado o ponto de cruz e o fermento
— pequena humilhação seguir receitas.
Borboletinhas, computadores,
fios dágua com peixes,
cabos telegráficos sob o mar.
Descubro que nunca vi a vera face de Deus.
Há mulheres no meu grupo que rezam sem alegria
e de cabo a rabo recitam o livro todo,
incluindo imprimatur, edições, prefácio,
endereço para comunicar as graças alcançadas.
Eu só quero dizer: Ó Beleza, adoro-Vos!
Treme meu corpo todo ao Vosso olhar.
A FORMALÍSTICA
O poeta cerebral tomou café sem açúcar
e foi pro gabinete concentrar-se.
Seu lápis é um bisturi
que ele afia na pedra,
na pedra calcinada das palavras,
imagem que elegeu porque ama a dificuldade,
o efeito respeitoso que produz
seu trato com o dicionário.
Faz três horas já que estuma as musas.
O dia arde. Seu prepúcio coça.
Daqui a pouco começam a fosforescer coisas no mato.
A serva de Deus sai de sua cela à noite
e caminha na estrada,
passeia porque Deus quis passear
e ela caminha.
O jovem poeta,
fedendo a suicídio e glória,
rouba de todos nós e nem assina:
‘Deus é impecável.’
As rãs pulam sobressaltadas
e o pelejador não entende,
quer escrever as coisas com as palavras.
HISTÓRIA
Me aflige que escrevam:
‘Foi em mil oitocentos e tanto que apareceu
a primeira bicicleta.’
Preciso que seja eterna. Deus entende o que digo,
Deus e os que lêem poemas como penso em Jonathan.
Meu pai contando:
‘Meu avô contava que seu tetravô
tinha uma bicicleta engraçada
onde carregava os queijos, também eternos,
e ovos, desde sempre existentes.
Já usava este sobrenome que você tem,
minha filha,
e que dará a seu filho, que o dará a seu neto,
cordão plantado no umbigo do Pai Eterno.’
Assim não corro perigo de não ter conhecido Jonathan,
alegria da minha vida por quem espero
“mais que o guarda pela aurora”.
A história do homem é pitoresca. As datas,
brinquedo de pesquisadores.
Quando Deus criou o mundo
criou junto a bicicleta e o caminho relvado
onde Jonathan me espera para esta bela seqüência:
à passagem dos amantes,
o capim florido estremece.
EM PORTUGUÊS
Aranha, cortiça, pérola
e mais quatro que não falo
são palavras perfeitas.
Morrer é inexcedível.
Deus não tem peso algum.
Borboleta é atelobrob,
um sabão no tacho fervendo.
Tomara estas estranhezas
sejam psicologismos,
corruptelas devidas
ao pecado original.
Palavras, quero-as antes como coisas.
Minha cabeça se cansa
neste discurso infeliz.
Jonathan me falou:
‘Já tomou seu iogurte?’
Que doçura cobriu-me, que conforto!
As línguas são imperfeitas
pra que os poemas existam
e eu pergunte donde vêm
os insetos alados e este afeto,
seu braço roçando o meu.
ARTEFATO NIPÔNICO
A borboleta pousada
ou é Deus
ou é nada.
AS PALAVRAS E OS NOMES
Me atordoam da mesma forma os místicos
e as lojas de roupa com seus preços.
O dente apodrece
sem que eu levante um dedo pra salvá-lo,
já que escolhi o medo como meu deus e senhor.
Tem pó demais na prateleira dos livros
e livros em demasia
e cartas cheias de si me atravancando o caminho:
‘Escrever para mim é uma religião.’
Os escritores são insuportáveis,
menos os sagrados,
os que terminam assim as suas falas:
‘Oráculo do Senhor.’
Eu fico paralisada
porque desejo a posse deste fogo
e a roupa de talhe certo,
com tecidos de além-mar.
Ai, nunca vou fazer ‘cantar d’amigo’.
No entanto, como se eu fora galega,
na minh’alma arrulham pombos,
tem beirais, tem manhãzinhas,
costureirinhas, pardais.
Meu nome agora é nenhum,
diverso dos muitos nomes
que se incrustaram no meu,
Délia, Adel, Élia e Lia
e para desgraça minha
ainda Leda, Lea, Dália,
Eda, Ieda e ainda Aia.
O melhor!
Aia, criada de dama nobre,
a dama de companhia,
a que tem por ofício
anotar no papel a vida
e espiar pela fresta
a ama gozando com o rei.
Borboleta, esta grafia,
este som é um erro
e os erros me interessam,
sacrifico as aranhas pra saber de onde vêm.
A natureza obedece e é feliz,
a natureza só faz sua própria vontade,
não esborda de Deus.
Mas eu o que sou?
POEMA COMEÇADO DO FIM
Um corpo quer outro corpo.
Uma alma quer outra alma e seu corpo.
Este excesso de realidade me confunde.
Jonathan falando:
parece que estou num filme.
Se eu lhe dissesse você é estúpido
ele diria sou mesmo.
Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear
eu iria.
As casas baixas, as pessoas pobres
e o sol da tarde,
imaginai o que era o sol da tarde
sobre nossa fragilidade.
Vinha com Jonathan
pela rua mais torta da cidade.
O Caminho do Céu.
O MAIS LEVE QUE O AR
O que me leva a Jonathan?
A bicicleta do sonho,
mais veloz que avião.
Anda no mar, encantada,
transpõe montanhas,
pára no portão florido.
Jonathan está no escritório
com a luz do abajur acesa.
Demoro um pouco a bater,
pro coração sossegar.
Jonathan me pressente
e abre a cortina brusco,
brincando de me assustar.
As bicicletas são duas na planície.
MANDALA
Minha ficção maior é Jonathan,
mas, como é poética, existe
e porque existe me mata
e me faz renascer a cada ciclo
de paixão e de sonho.
CARTA
Jonathan,
por sua causa
começam a acontecer coisas comigo.
Ando cheia de medo.
Quero me mudar daqui.
Enfarei dos parentes,
do meu cargo na paróquia
e cismei de arrumar os cabelos
como certas cantoras.
Não tenho mais paciência
com assuntos de quem morreu,
quem casou,
caí no ciclo esquisito de quando te conheci.
Fico sem comer por dias,
meu sono é quase nenhum,
ensaiando diálogos
pra quando nos encontrarmos
naquele lugar distante
dos olhos da Marcionília
que perguntou com maldade
se vi passarinho verde.
Me diga a que horas pensa em mim,
pra eu acertar meu relógio
pela hora de Madagascar,
onde você se agüenta
sem me mandar um postal.
A não ser o Soledade e minha querida irmã,
ninguém sabe de nós.
Só a eles conto o meu desvario.
Bem podia você telefonar,
escrever,
telegrafar,
mandar um sinal de vida.
Há o perigo de eu ficar doente,
me surpreendi grunhindo,
beijando meu próprio braço.
Estou louca mesmo.
De saudade.
Tudo por sua causa.
Me escreve.
Ou inventa um jeito
— eu sei mil —
de me mandar um recado.
Da janela do quarto onde não durmo
fico olhando Alfa e Beta,
que, na minha imaginação,
representam nós dois.
Você me acha infantil, Jonathan?
Pediram insistentemente
para eu saudar o Embaixador.
Respondi: não.
Com todas as letras: não.
Só pra me divertir, expliquei
que aguardo na mesma data
visita da Manchúria,
professor ilustre vem saber
por que encho tantos cadernos
com este código espelhado:
OMAETUE NAHTANOJ.
Torço pra estourar uma guerra
e você se ver obrigado
a emigrar para Arvoredos.
Me inspecionam.
Devo ter falado muito alto.
Beijo sua unha amarela
e seus olhos que finge distraídos
só para aumentar minha paixão.
Sei disso e ainda assim ela aumenta.
Alfa querido, ciao.
Sua sempre Beta.
FIEIRA
Posso me esforçar à vontade
que a letra não sai redonda.
Deus me vê.
Não escrevo mais cartas,
só palavrões no muro:
Foda-se. Morra.
Estou cansada de dizer eu te amo.
Não tem começo nem fim minha paciência.
Não paro de pensar em Jonathan.
Detesto escrita elegante.
As tragédias são doces.
Aprendi a falar desde pequenininha.
Tudo que digo é vaidade.
É impossível viver sem dizer eu,
palavra a Deus reservada.
Não sei como ser humana.
Saberei, se Jonathan me amar:
‘que unha forte!’,
‘você me lembra alguém’,
‘quase lhe mando um cartão’.
Migalhas, Jonathan,
você também vai morrer,
fala,
descansa meu coração.
PASTORAL
Quando, por demasia,
a saudade de Jonathan me perturba
eu vou pra roça.
Nas ruas de café,
entre canas de milho e folhas de bugre lustrosas,
sua presença anímica me acalma.
O cheiro dele é resinas, sua doçura,
escondida em cupins, cascas de pau,
mel que nunca provei.
Meu coração implora à ordem amorosa do mundo:
vem, Jonathan. E aparece um besouro
com o mesmo jeito dele caminhar.
Descubro que passarinhos
só fazem o que lhes dá gosto
e me incitam do bambual:
Você também, pequena mulher,
deve cumprir seu destino.
Há um sacramento chamado
da Presença Santíssima, um coração
dizendo o mesmo que o meu:
vem, vem, vem.
Conheci a cólera de Deus,
agora, seu vigilante ciúme.
Até a raiz das touceiras,
até onde vejo e não vejo,
rastro imperceptível de formigas,
Ele, Jonathan, e eu,
faca, doçura e gozo,
dor que não deserta de mim.