A CAMINHO DO TRABALHO
1 de outubro de 2012

(As paineiras & seus fardos de algodão esparramados pelo chão.)
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de frente para a biblioteca da fundação em que trabalho, na sua lateral esquerda, há um conjunto de paineiras.
 
rumo ao prédio da biblioteca, ou passando por perto, vêem-se muitos “floquinhos” brancos voando campus afora. muitos muitos muitos. à primeira vez que os vi, a caminho do trabalho (a caminho, no campus, do prédio onde trabalho), pensei numa razão descabida (coisa de filme hollywoodiano – rs) para os tais floquinhos brancos estarem a voar roçando os meus cabelos & prendendo em minha roupa. 
 
até passar pela lateral esquerda da biblioteca & pelo conjunto de paineiras: o chão parecia de neve, todo branquinho, coberto de algodão, uma coisa linda! inda mais porque contrastante com os dias de céu azul na cidade do rio de janeiro.
 
hoje, dia de primavera, céu de um azul limpinho por sobre a cidade, sem nuvens, mais uma vez, ao passar pela lateral da biblioteca a caminho do trabalho, o espetáculo à minha espera: o ar repleto dos floquinhos brancos & o chão coberto por eles.
 
sempre que passo por esse caminho me surge à memória este poema aqui, que trago aos senhores, e, só por isso (só pelo fato da caminhada me trazer à memória este poema aqui), a caminhada já vale o caminhar: 
 
eis, aqui, um dos tantos momentos que nos assaltam — é preciso estar atento a eles! — em que o dia se transfigura em poesia.  
 
o dia em poesia: a poesia no dia.
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Em trânsito. autor: Alberto Martins. editora: Companhia das letras.) 
 
 
 
A CAMINHO DO TRABALHO
 
 
inveja das paineiras
que soltam no ar
sem aviso prévio
seus fardos de algodão

CLAUSTROS
27 de abril de 2012

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triste.
 
e acaba por ser a realidade de muitos de nós.
 
difícil demais.
 
levar uma existência inteira entre claustros, levar toda uma vida entre ambientes de espaço (bem) limitado, saindo de um (do domicílio, por exemplo) para, quase imediatamente, encerrar-se em outro (nas trevas da estação subterrânea do metrô, por exemplo) que, no fim das contas, desemboca num terceiro (no elevador do trabalho, por exemplo), onde damos adeus ao belo dia azul & temos que nos “contentar” com uma brecha de céu no fim do trajeto.
 
nesse ínterim de entradas & saídas de claustros, o pensamento viaja, perdido entre o desânimo para com a vida, o medo de acidentes (um descarrilhar de trilhos), a tristeza por imaginar uma morte prematura & por delirar com catacumbas (túmulos, pessoas mortas após um entrechoque de vagões na linha metroviária).
 
o pensamento, perdido, viaja por entre o desânimo para com a vida, como álvares na taverna (o escritor brasileiro do século XIX, álvares de azevedo, escreveu a obra noite na taverna, com personagens descrentes na vida & no amor, reunidos, como revela o título, em uma espécie de bar — que é um tipo de claustro —, onde contam histórias sanguinárias envolvendo crimes de paixão, mortes por amor, finais trágicos).  
 
sair do túnel (claustro abaixo) para entrar no elevador (claustro acima): de um lado a outro, de uma ponta a outra, seja mais perto da terra, seja mais perto do céu, os claustros existem & persistem.
 
além de lutar pelo fim das circunstâncias apresentadas no poema, enquanto tais circunstâncias não são banidas, buscar caminhos que possibilitem vivências que não sejam opressoras, vivências que amenizem os efeitos ásperos dos árduos dias de trabalho.
 
(a poesia é uma experiência de êxito na minha vida, é uma das minhas boas vivências, uma das portas de saída dos tantos claustros que nos cercam & cerceiam.)
 
e vamos que vamos.
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Em trânsito. autor: Alberto Martins. editora: Companhia das Letras.)
 
 
 
WORKING DAY
 
 
dar adeus
a este dia azul
se embrenhar
nas trevas do metrô
 
morrer
quem sabe
num descarrilhar de trilhos
no entrechoque dos vagões
 
lá fora as estações deslizam
Consolação
Paraíso
Liberdade
 
enquanto meu pensamento se perde em catacumbas
como Álvares na taverna
 
no fim do trajeto
uma brecha de céu:
saio do túnel
para entrar no elevador

O OSSO: A MAIS DURA PARTE DE MIM
14 de março de 2011

a parte mais durável em mim são os ossos, e a mais dura também.

sim, este osso meu: a mais dura parte de mim, dura mais do que tudo o que ouço & penso, mais do que tudo o que invento & minto.

(e agora, luzia, ainda te lembras da dor?…)

este osso meu é, sim, a parte mais mineral e mais obscura de mim.

ossos, varridos pelas águas da enxurrada, quietos, no amparo da pedra, até saltarem (em cacos, em pedaços, “tristes”) à luz do dia, esperaram onze mil e quinhentos anos.

(onze mil e quinhentos anos de espera até saltarem à luz do dia!…)

— e agora, luzia, ainda te lembras da dor?

luzia, em teu breve tempo de existência — luzia à luz do dia, luzia na luz que vai, na luz que ia —, ainda te lembras da dor?

os ossos esperaram 11.500 anos(!), quietos, em cacos, em pedaços, “tristes”.

e tu, luzia, quanto tempo? será, luzia, que ainda te lembras da dor? luzia, quanto tempo, em teu breve tempo, dura a dor?

de fato, o osso é a parte do corpo que mais dura…

o osso: a parte mineral & obscura.

creio eu que o sonho & a loucura irriguem a pele & a carne nossa.

na pele & na carne, algo de nós, transparente & dócil, tende a solver-se, a esvanecer-se, para deixar, no pó da terra, o osso, a parte que perdura, que permanece.

o osso: futura peça de museu — o fóssil —.

o osso, este osso meu, (a parte de mim mais dura, e a parte de mim que mais dura) é o que menos sou eu?…

beijo os senhores com carinho!
paulo sabino.
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(do livro: Em trânsito. autor: Alberto Martins. editora: Companhia das Letras.)

LAPA VERMELHA, LAGOA SANTA

os ossos
varridos
pelas águas
da enxurrada

quietos
no amparo da pedra
esperaram
onze mil e quinhentos anos

até saltarem
em cacos
à luz do dia

— e agora, Luzia,
ainda te lembras
da dor?

(do livro: Em alguma parte alguma. autor: Ferreira Gullar. editora: José Olympio.)

REFLEXÃO SOBRE O OSSO DA MINHA PERNA

A parte mais durável de mim
são os ossos
e a mais dura também

como, por exemplo, este osso
da perna
que apalpo
sob a macia cobertura

ativa
de carne e pele
que o veste e inteiro
me reveste
dos pés à cabeça
esta vestimenta
fugaz e viva

sim, este osso
a mais dura parte de mim
dura mais do que tudo o que ouço
e penso
mais do que tudo o que invento
e minto
este osso
dito perônio

é, sim,
a parte mais mineral
e obscura
de mim
já que à pele
e à carne
irrigam-nas o sonho e a loucura

têm, creio eu,
algo de transparente
e dócil
tendem a solver-se
a esvanecer-se
para deixar no pó da terra

o osso
o fóssil

futura
peça de museu

o osso
este osso
(a parte de mim
mais dura
e a que mais dura)
é a que menos sou eu?

A SURPRESA: ROSTO AO ESPELHO
12 de novembro de 2010

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que cara é essa, descobrindo-se no espelho, atrás de cada pêlo de barba?
 
de repente, a surpresa: olhar-se ao espelho e dizer-se, deslumbrado:
 
EU?
UE?
 
interrogar-se sobre si.
 
(mas que diabos é isso (rs)?)
 
olho por olho, dente por dente, ruga por ruga:
 
EU?
UE?
 
o fio da barba, o fio da lâmina, a vida por um fio, sendo revisitada, ante o espelho…
 
interrogar-se de estar sendo:
 
EU?
UE?
 
por uma fração de segundo a gente se vê como a um objeto a ser olhado.
 
aprofundar-se nesse olhar: um certo conhecimento de si contribui, ao menos, para que saibamos o que não queremos da vida. o que querer, do que gostar, como amar, isso podemos ir tentando, podemos ir testando trilhafora.
 
é bom não saber. acho importantíssimo para vida. porém, não saber, em determinada medida, pode representar um (grande) problema.
 
EU?
UE?
 
assim, em meio a divagações, concluir, surpreendido de ser: ah, então é verdade que eu não me imaginei, eu existo…
 
e aceitar, aceitar mais um dia, reafirmando-se:
 
EU
EU
 
e acenar, de si para si, como se acena a um (bom & velho) companheiro de viagem. 
 
e seguir o rumo, batalhando, matando um leão por dia, buscando a trilha do bem-estar & do bem-fazer.
 
(neste fim de semana com feriado, pego estrada com muitos amigos, grandes na minha existência, para um passeio na roça. semana próxima estamos aí. até lá!)
 
beijo terno em todos!
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: A descoberta do mundo. autora: Clarice Lispector. editora: Rocco.)
 
 
 
A SURPRESA
 
 
Olhar-se ao espelho e dizer-se deslumbrada: Como sou misteriosa. Sou tão delicada e forte. E a curva dos lábios manteve a inocência.
 
Não há homem ou mulher que por acaso não se tenha olhado ao espelho e se surpreendido consigo próprio. Por uma fração de segundo a gente se vê como a um objeto a ser olhado. A isto se chamaria talvez de narcisismo, mas eu chamaria de: alegria de ser. Alegria de encontrar na figura exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu não me imaginei, eu existo. 
 
 
 
(do livro: Em trânsito. autor: Alberto Martins. editora: Companhia das Letras.)
 
 
 
ROSTO
 
 
que cara é essa
se descobrindo no espelho
atrás de cada pelo
de barba?
 
de longe
levanto as sobrancelhas
e aceno
como se deve
a um discreto companheiro de viagem
 
 
 
(do livro: Poesia completa. autor: José Paulo Paes. editora: Companhia das Letras.)
 
 
 
O POETA AO ESPELHO, BARBEANDO-SE
 
 
o rito
do dia
o ríctus
do dia
o risco
do dia
 
EU?
UE?
 
olho
por olho
dente
por dente
ruga
por ruga
 
EU?
UE?
 
o fio
da barba
o fio
da navalha
a vida
por um fio
 
EU?
UE?
 
mas a barba
feita
a máscara
refeita
mais um dia
aceita
 
EU
EU

TRANSEUNTE
13 de setembro de 2010

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ao longo da caminhada,
 
passos & mais passos dados & largados percurso afora.
 
coladas aos passos: pegadas, marcas: rugas.
 
passos são rugas, deixam marcas na rua.
 
marcas levíssimas, quase ninguém vê. só mesmo o faro de um cachorro ou o ouvido tortuoso de um peão para catar os ecos que restam ao rés do chão.
 
no entanto,
 
todavia, 
 
os passos & mais passos — dados & largados percurso afora — são realmente como: rugas?
 
os passos dados & largados percurso afora são realmente como marcas, ainda que mínimas, tatuadas na epiderme do asfalto?, gravadas na pele chã?
 
alguma coisa do passo firme, ou do passo falso, fica na quebra do cimento ou na frincha do asfalto?
 
ou será que o passo (seja ele firme ou falso, seja ele triste ou feliz) sequer existe em si, e cada passo (a)fundado em terra é sempre memória de outro passo dado?
 
restem ou não restem ao rés do chão, continuemos as nossas andanças & os seus passos, para que os lances da vida se realizem, se concretizem, em nós: aqui, acolá & além.
 
beijo bom em todos!
paulo sabino / paulinho. 
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(do livro: Em trânsito. autor: Alberto Martins. editora: Companhia das Letras.)
 
 
TRANSEUNTE
 
passos
são rugas
deixam marcas
na rua
 
marcas levíssimas
quase ninguém vê
 
só o faro infra
vermelho de um cachorro
o ouvido tortuoso
de um peão
 
para catar esses ecos
ali onde se encontram
 
— papel rasgado bi
tuca de cigarro tam
pinha de plástico —
 
ao rés do chão
 
 
OUTRO TRANSEUNTE
 
passos
são rugas?
deixam marcas na rua?
 
na quebra
do cimento na frincha
do asfalto
 
alguma coisa fica
do passo firme
ou falso?
 
— ou o passo
sequer existe
em si
 
e cada passo
é sempre memória
de outro passo dado
 
aqui?
acolá?
além?