FEITO UM BOLERO: A CANÇÃO PARA ME ENTENDER
6 de novembro de 2012

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no bolso esquerdo,  no bolso do lado esquerdo do peito, levo uma tristeza que se agita, andorinha, lépida & pequenina, quando escrevo.

pois, quando escrevo, agita-se a andorinha chamada tristeza, lépida & pequenina, e, com ela, agitam-se algumas saudades, alguns dissabores, quando escrevo.
 
no entanto, juro, os senhores devem perceber, sou alegre & rio tanto & mais sempre que me atrevo. e, nesse quesito, considero-me bem atrevido.
 
amo. e amo sempre, esperançoso, reincidente abelha, insistente & repetitiva abelha (animal que trabalha incansavelmente, com cuidado, esmero & atenção), amo industrioso, amo caprichado, esmerado, amo & tenho trabalho (ainda que, no fim das contas, prazeroso).
 
dos abraços, rápidos marinheiros, marinheiros que chegam & partem logo (visto o breve tempo de um abraço), deles (dos abraços) ficam, no ar, algumas formas breves: um revoar de plumas, um revoar de travesseiros, um revoar de formas breves & leves & confortáveis. mas o peso deles (dos abraços), o peso que eles (os abraços) adquirem dentro de nós, é de chumbo & sal.
 
no vivenciar o mundo, minucioso, perco a exatidão do mundo. no vivenciar o mundo, detalhista, perco a precisão, perco a clareza, perco a nitidez do mundo, pois, no vivenciá-lo, percebe-se que o mundo são dúvidas, incertezas, caminhos possíveis, escolhas. no vivenciar o mundo, percebe-se que o mundo, sobretudo, é errância. ninguém sabe ao certo o que nos aguarda ao dobrar a próxima esquina.
 
em meus olhos desatentos, guardo apenas imprevistas surpresas de janela, guardo, em meus olhos distraídos, apenas inesperadas surpresas de quem assiste ao passar da vida (não somente como um ator social, não somente como um ser atuante, mas também como um espectador distanciado) & uma inocência de menino à espera, grávido de sonhos, de vontades, menino grávido de vida.
 
menino grávido de vida, decreto que, hoje, o poema do poeta será festa, feriado comemorativo.
 
hoje, que os cabelos brancos do poeta sejam prata, metal precioso, as rugas, rios de muitas águas, cada poro do poeta seja um lago. hoje, que sejam potáveis & frescas as águas oferecidas pela fonte poética.
 
hoje, que beijem leve, longamente o poeta; hoje, que passeiem pelo corpo do poeta como um parque (de diversões), fonte de prazeres a quem dele se sirva.
 
hoje foi decretado que o poema do poeta será festa, feriado comemorativo.
 
hoje o poeta vestirá aquele riso grande & inocente.
 
hoje o poeta vai provar algodão-doce, mel rosado, beber chuva passageira sentado a uma mesa na calçada.
 
hoje o poeta será tanto & tantas vezes (feliz) que, dele, hão de dizer, penalizados: “é criança ainda, ou bolero”.
 
hão de dizer, sentindo pena, que hoje o poeta é criança ainda, hão de dizer que hoje o poeta é inocente, fantasioso, onírico, cheio de energia para traquinices, ou hão de dizer que hoje o poeta é feito um bolero: ritmo de origem espanhola, chegou à américa latina por cuba & é dedicado àqueles que amam com despudor, é dedicado àqueles que amam livres de recatos & amarras, que amam sem nenhuma vergonha de dizer, com todas as sílabas, seus sentimentos.
 
hoje o poeta é feito um bolero: a canção para bem entendê-lo: ritmo dedicado àqueles que amam despudoradamente, ritmo dedicado ao amor livre de recatos & amarras.
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Olhos de cadela. autora: Ana Mariano. editora: L&PM Editores.)
 
 
 
CANÇÃO PARA ME ENTENDER
 
 
No bolso esquerdo, levo uma tristeza
que se agita, andorinha, quando escrevo.
No entanto, juro, sou alegre e rio
tanto e mais, sempre que me atrevo.
 
No amor, dizem, sou incongruente.
Mas amo. Amo sempre, esperançosa,
reincidente abelha, amo industriosa,
em dias alternados, amo insistente.
 
Dos abraços, rápidos marinheiros,
ficam no ar algumas formas breves,
um revoar de plumas, travesseiros.
Mas é de chumbo e sal o peso deles.
 
A exatidão do mundo perco, minuciosa.
Guardo apenas, em meus olhos desatentos,
imprevistas surpresas de janela
e essa inocência de menina à espera.
 
 
 
FEITO UM BOLERO
 
 
Que meus cabelos brancos hoje sejam prata,
as rugas, rios de muitas águas,
cada poro meu seja um lago.
Que me beijem leve, longamente
e passeiem meu corpo como um parque.
Hoje meu poema será festa, feriado comemorativo.
Vestirei aquele riso grande e inocente.
Vou provar algodão-doce, mel rosado,
beber chuva passageira sentada a uma mesa na calçada.
Hoje serei tanto e tantas vezes
que de mim hão de dizer, penalizados:
é criança ainda ou bolero.

LIVRO DO ÊXODO: A FUGA DOS SONHOS
7 de junho de 2011

como quem traz nas mãos uma estilhaçada louça de família, louça que, por ser de família, agrega valores sentimentais, trago estas crianças perdidas, dispostas em verso.
 
(a pátria delas é só memória, a pátria delas é lamento escrito às pressas, num muro derrubado.) 
 
são dura substância, essas crianças, porém o riso ainda lateja em seus olhos mudos.
 
o riso: lagarto absurdo, pastoreando os sonhos infantis.
 
para ver o riso consentido dessas perdidas crianças, bastaria a paz da mesa posta ao fim da tarde e o pátio que lhes foi roubado.
 
para ver o riso consentido — lagarto absurdo, pastoreando sonhos — dessas perdidas crianças, bastaria um lar-pátria que não fosse só memória, um lar-pátria materializado, real.
 
a paz da mesa posta ao fim da tarde & o pátio, roubados das crianças perdidas:
 
uma menina no semáforo.
 
a menina, no amarelo, expõe sua dura & pobre pele pagã preta pequenina, quase escondida na caixa de papelão.
 
no vermelho, a menina espalha seus olhos brancos baços & brandos, velhos olhos de batalha, no branco dos olhos alheios.
 
no verde, carros buzinam, insistentes, e a menina, no seu vestidinho de algodão, brinca sem pressa.
 
os carros & suas buzinas apressadas, buzinas impacientes, buzinas intransigentes: são como dinossauros distantes, são como tanques de guerra, para os que passam resguardados pelos vidros escuros. os carros, vistos como máquinas mortíferas, são uma ilusão que os vidros escuros resguardam dos que passam, e não uma ilusão da menina que brinca & que pede no semáforo.
 
à menina, os carros que buzinam, insistentes, parecem apenas carros, os carros que buzinam, insistentes, impacientes, intransigentes, parecem o que são: veículos de transporte.
 
até porque os carros, mesmo sendo, na ilusão dos seus motoristas, tanques de guerra, os carros são roubados todos os dias. pessoas também.
 
os beijos, infelizmente, é que não são mais roubados como antigamente.
 
sonhos sufocam em ônibus lotados, morrem nos estômagos vazios, migram aos bandos, feito pássaros.
 
deixam rastros (os sonhos-pássaros) e não há quem os siga.
 
de qualquer modo, eu insisto no vício da esperança:
 
sigamos os rastros dos nossos sonhos, tenhamos uma existência salutar!
 
beijo todos!
paulo sabino. 
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(do livro: Olhos de cadela. autora: Ana Mariano. editora: L&PM.)
 
 
 
SEMÁFORO
 
A menina, no amarelo,
expõe a pele pagã.
Pele dura, pele pobre,
pobre pele pura e preta,
pequena,
quase escondida
na caixa de papelão.
 
No vermelho, ela espalha,
devagar, seus olhos brancos
no branco dos olhos meus.
Olhos baços, olhos brandos,
velhos olhos de batalha.
 
No verde, a menina brinca
sem pressa, vestidinho de algodão.
Carros buzinam, insistentes.
São dinossauros distantes,
tanques de guerra, ilusão
que vidros escuros resguardam
dos que passam, dela não.
 
 
 
CONVERSA DE AVÓ
 
Não se roubam beijos como antigamente.
Pessoas, sim. Carros, todo o dia.
Sonhos sufocam em ônibus lotados,
morrem aos bandos, feito pássaros.
Deixam rastros (não há quem siga).
 
 
 
LIVRO DO ÊXODO
 
Como quem traz nas mãos uma estilhaçada louça de família,
trago essas crianças perdidas,
entre andores e imagens.
Seus vizinhos,
pessoas comuns, morando ali na esquina,
as arrancaram de casas invisíveis
onde havia uma cidade, um povoado.
Sua pátria é só memória,
lamento escrito às pressas
num muro derrubado.
São dura substância, essas crianças.
O riso lateja ainda em seus olhos mudos.
Posso senti-lo, lagarto absurdo, pastoreando sonhos.
Bastaria, para vê-lo consentido,
a paz da mesa posta ao fim da tarde
e o pátio que lhes foi roubado.
Crianças arrancadas continuam.
Insistem no vício da esperança.