SUÍTE DAS PALAVRAS: O VÉU VOLÁTIL
25 de novembro de 2011

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o percurso da poesia:
 
do ponto onde o sangue verte, jorra, brota, tomando pulso.
 
há que se ter sentimento pulsando, inquietações &  vontades, para que a poesia lance seus primeiros passos à folha, tomando o pulso, tomando a mão do poeta.
 
víscera: qualquer órgão que desempenhe uma ou mais funções vitais do organismo.
 
víscera: no sentido figurativo, a parte mais íntima ou essencial de alguma coisa.
 
a víscera da poesia: sua força pelos fólios, sua força pelas folhas.
 
afinal, os órgãos vitais da poesia são a folha de papel, lugar onde a poesia é escrita, onde a poesia é pousada, e que, por isso mesmo, é onde ganha a sua força de existência, e também as palavras, responsáveis pela sua composição.
 
sem folha (sem o lugar onde a sua força exista) & sem palavras não há poesia.
 
poesia: força pelos fólios, com as palavras.
 
com as palavras, a poesia diz o impossível.
 
a poesia, por não se comprometer com nada, pode absolutamente tudo. pode, inclusive, dizer o impossível. para poesia não há barreiras nem limites. num poema, vaca pode voar. a flor pode cantar suas cores. e o céu, azul, pode, num passe lingüístico, azulejar-se por inteiro.
 
em sua foz, a poesia deságua pelo avesso. em sua foz, a poesia deságua ao contrário:
 
porque, no fundo, quem deságua não é a poesia, mas quem a lê. no fluxo das águas poéticas, não são as águas que se lançam porém nós, leitores, somos quem nos atiramos ao seu encontro. as águas poéticas permanecem estáticas, permanecem paradas, em folha de papel.
 
a poesia é um rio que, em sua foz, ao invés de lançar-se, aguarda que águas outras (as nossas) se lancem.
 
em sua foz, a poesia deságua pelo avesso indeclinado, em sua foz, a poesia deságua pelo avesso que não cede, pelo avesso que não desvia, pelo avesso que não declina: somos sempre nós quem desaguamos na foz do poema.
 
a poesia pode absolutamente tudo: o impossível dito.
 
poesia: fala “dor”, nomeia a “dor”, mas nomeia sem utilizar a palavra propriamente dita, nomeia através das metáforas, dos jogos lingüísticos.
 
a poesia fala “dor”, fala “amor”, fala o que for, sem a palavra propriamente.
 
ela, a poesia, pode tudo.
 
no seu percurso em folha & com palavras, a poesia surpreende por suas possibilidades.
 
poesia: espécie de arcano.
 
arcano: o que é profundamente secreto, misterioso, incompreensível.
 
o poema: armar a forma, armar a sua figura, a sua aparência, armar a sua construção, pelo lado abstrato, armar a forma pelo lado impalpável, armar a sua “matéria” pelo lado imaterial, sem suporte de linha, sem ajuda de traço, e sem norma estrita, e sem regra absoluta, e sem norma que não seja flexível:
 
é assim que o poema alcança o seu modo exato?
 
a exatidão do poema é alcançada pela abstração?…
 
o poema: traçar “ôntico” (relaciona-se ao “ente”, ao “ser”, ao “objeto”, mas num sentido oposto ao “ontológico”, que se refere à essência ou à natureza de cada particularidade existente,  que se refere ao “ser em si mesmo”, em sua “dimensão ampla e fundamental”; o “ôntico” se refere aos entes múltiplos e concretos da realidade), isto é, traçar o que é múltiplo & concreto na realidade, pelo lado onírico, pelo lado referente aos sonhos.
 
traçar “ôntico” (traçar o que é “múltiplo & concreto”) pelo lado onírico, isto é: traçar o material pelo lado imaterial; traçar “ôntico”, traçar o que é “múltiplo”, sem medo do lírico, isto é: traçar o “múltiplo” sem receio de dizer o “eu”, traçar o “diverso” a partir do “eu”, traçar o “muito” através do “único”.
 
traçar “ôntico” sem medo do “lírico” ou sem limite de corte.
 
sem limite de corte: as palavras, as linhas, num poema, o quanto necessário for, são cortadas, para o alcance da poesia que o poeta deseja ver/ler no papel.
 
traçar “ôntico” (o que é múltiplo & concreto na realidade) pelo lado “onírico” (relativo ao que não é concreto, relativo ao imaterial), sem medo do “lírico” (sem medo do sentimental, sem medo do que diz respeito ao “eu”) ou limite de corte (corte de versos & palavras):
 
eis o que dá norte à poesia?
 
é desse modo que a poesia constrói, é dessa maneira que a poesia traça, a sua rota?…
 
é essa a direção da poesia?…
 
(mistério…)
 
o poema é, de fato, uma espécie de arcano.
 
a poesia & seus mistérios:
 
ela desespera, às vezes, em guardanapo de papel.
 
ela, que incomoda tudo, às vezes, tem pressa de chegar.
 
poesia: o véu volátil.
 
poesia: o véu inconstante, véu volúvel.
 
a poesia possui uma natureza de alternâncias: uma hora, clara, outra hora, obscura.
 
na procura do entendimento, na procura da apreensão, dos versos, ora pode-se pensar tê-los absorvido & ora entende-se que absorção não é inteiramente segura.
 
a poesia trabalha por deslocamento da linguagem, diferentemente da prosa, que busca um discurso narrativo; a poesia fala através das figuras de linguagem, a poesia fala através das imagens, e a sua fala, por utilizar figuras de linguagem sem uma finalidade discursiva, pode apontar direções as mais variadas.
 
por isso a apreensão dos versos gera tantas dúvidas, por isso a tentativa de entendimento das linhas poéticas cria tantas incertezas.
 
durante a leitura, portanto, é muito comum que o poema, em determinado momento, pareça desnudar-se ao nosso entendimento, até que as dúvidas surjam por conta das possibilidades de caminhos que os jogos de palavras & as figuras de linguagem criam.
 
(a poesia é mistério, uma espécie de arcano.)
 
por isso o poema destrava, desprende, solta, o obscuro, por isso o poema destrava, desprende, solta, o que não se consegue enxergar, e, de repente, aclara, e, de repente, ilumina-se; o poema esvai-se em nossa gula voraz de decodificá-lo e, como sal, solve & coagula, e, como sal, dissolve & petrifica, e, desse jeito, nos paralisam as incertezas.
 
requer-se mais o poema, pede-se mais o poema, necessita-se mais do poema, se o poema alterna: pois é este fato, o de alternar-se (uma hora, claro, outra hora, escuro; destrava o obscuro e, de repente, aclara, para, a seguir, solver & coagular), que nos faz querer mais & mais o poema: a sede de descobrir o véu de sentidos & sentidos dos versos.
 
a poesia é coisa dura, coisa que, por dura, não é mole, não é fácil, abrindo um véu que não faz ver, véu volátil, véu volúvel, inconstante.
 
a poesia se estua inteira em espessura, cria barreira, hostil, arisca, arredia, e, inesperadamente, deixa-se tocar, inesperadamente, não mais arredia, inesperadamente, doce, inesperadamente, abre-se em flor, a fim de que vejamos a beleza das suas cores, a fim de que sintamos o frescor do seu perfume.
 
poesia: véu volátil. poesia: natureza de alternâncias (uma hora, clara, outra hora, escura).
 
poesia: estua-se inteira e, inesperada, deixa-se tocar: há que se ter cuidado, há que se desconfiar da poesia, há que se lembrar dos seus melindres, por vezes coisa dura, áspera, intratável.
 
a poesia trai em desaforo todos os sentidos, isto é, a poesia pode enganar, pode ludibriar, traiçoeira, atrevida, insolente, todos os (nossos) sentidos. a poesia cisma & tisna, a poesia macula, a poesia mancha, qualquer olho, qualquer olhar.
 
cuidado com ela. muita atenção ao tocá-la, ao querer desvendar o seu véu, volátil.
 
a poesia é um arcano. e, por ser um arcano, é livre.
 
como passarinho, a poesia deseja voar, ganhar ares.
 
havia um poeta com uma vontade danada de ser passarinho. com leveza de ave e palavras de todo dia, cantou & foi entendido por gente de vária gama.
 
sua poesia, ainda que a mais dura, ainda que a mais áspera, sustenta a leveza de uma pluma.
 
pequeno & só, era o mais alto vate. mestre da fina arte do aedo (do poeta) da grécia antiga.
 
seu nome: mario quintana, o poeta-passarinho, o tico-tiquinho, lindo, imprescindível.
 
um viva à arte poética & suas nuances! 
 
um viva aos grandes mestres!
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Sete suítes. autor: Antonio Fernando De Franceschi. editora: Companhia das Letras.)
 
 
 
PERCURSO
 
do ponto
onde o sangue verte
tomando pulso
 
víscera:
força pelos fólios
o impossível dito
 
foz:
deságua pelo avesso
indeclinado
 
dor:
fala nomeando
sem palavra
 
 
 
ARCANO
 
armar a forma
pelo lado abstrato
sem suporte de linha
ou estrita norma:
exato?
 
traçar ôntico
pelo lado onírico
sem medo do lírico
ou limite de corte:
o norte?
 
 
 
O VÉU VOLÁTIL
 
a poesia desespera
às vezes
em guardanapo de papel
ela
que incomoda tudo
tem pressa de chegar:
destrava o obscuro
aclara
esvai-se em gula
e como sal:
solve e coagula
requer-se mais
se alterna: dura
abrindo um véu
que não faz ver
se estua inteira
em espessura
e inesperada
deixa-se tocar: cisma
tisna qualquer olho
trai em desaforo
todos os sentidos
 
 
 
COM LEVEZA DE PLUMA
 
havia em seu peito
uma vontade danada
de ser passarinho
tico-tico
tico-tiquinho
 
mestre da fina arte
da Grécia antiga do aedo
confessou em epigrama
o seu anelo sem medo:
 
 
“Esses que aí estão
atravancando meu caminho
                               eles passarão,
                               eu passarinho”
 
 
 com leveza de ave
e palavras de todo dia
cantou e foi entendido
por gente de vária gama
 
pássaro que flanava
de rima em rama
era ele quem versava
a tessitura da trama
 
pequeno e só
na pura tensão do salto
era o poeta mais alto
seu nome: Mario Quintana 

 

HABITAÇÃO NO RESÍDUO DE LUZ
24 de novembro de 2010

a grande habitação, um grande lugar para se ter como morada:

na extensão da linha (do papel), um arco aberto de um ponto a outro.

um trânsito de palavras — neste arco aberto de um ponto a outro na extensão da linha — longe-perto nos quasares (o transitar das palavras compete essas díspares distâncias: às vezes, trânsito perto de palavras em quasares, ou seja, nos objetos celestiais semelhantes a uma estrela, cujo espectro apresenta intenso desvio para o vermelho; outras vezes, trânsito longe de palavras nos quasares, nos objetos celestiais, objetos vindos do alto, vindos do corpo celeste, a morada dos deuses & das musas).

no trânsito, a obstinação; no trânsito, o transe: a busca incessante e o abismo no qual se queda, abismo do pulso disparado, e boca e olho:

quedar-se na linguagem;

quedar no mundo, procurando vivenciá-lo de maneira tátil, de poros abertos, onde a pequena morte — o prazer, o gozo — é recebida sem que caibamos em nós, nus, despidos, claros, elucidados, deste lado da parede (do lado em que nos localizamos na vida) desta habitação edificada nas palavras, habitação que, para se fazer, possui parte da parede construída de mundo, construída de entorno, de tudo o que nos cerca e que, justamente por cercar, nos molda.

na construção da habitação, o trabalho é duro, árduo:

para construir, destruir destruir destruir,

como quem limpa arquivo a plenos pulmões, sem sombra de deixar vestígio.

(lapidar o poema. lançá-lo lindo à língua.)

cuidar as palavras, assistir os versos: ou sobrevivem, robustos, ou morrem, incapacitados.

deletar traste, tirar o pó, devassar cantos, lavar a seco: escodar o poema-pedra, poema mineral, o poema duro, bruto, cru: até restar caroço no texto ossudo.

um nada fica sob a língua, um travo na boca, um travo nas palavras, um travo no que restou — no resíduo — do (tanto) que se pretendia: um nada instalado desde o começo.

no fim de tudo, por mais absurdo que possa parecer, este “sentimento”, esta “sensação”, persiste: um nada fica sob a língua, resta sem contraste, sem sobressair, sem destaque, sem realce, e arde.

esta pode ser a sensação final. todavia, a sensação final não necessariamente — e, no caso dos grandes escritores, quase nunca — corresponde ao resultado final obtido.

na imensa maioria das vezes, os grandes autores conseguem soerguer magníficas habitações, construções que funcionam como suntuosos aufúgios, verdadeiros refugioásis ao olhar de quem busque fagulhas de luz, resíduos luminosos para sua existência, resíduos luminosos para trilhar o rumo, rumo do qual se deve ser íntimo, ser vizinho (lembrem-se de que é com o mundo, meia-parede, que forjamos a nossa habitação), sabendo que tal vizinhança pode doer, pode machucar.

(afinal, por mais alegrias, viver é doído, inevitavelmente.)

cavemos & fundemos as melhores moradias possíveis!

um beijo nos senhores!
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Sete suítes. autor: Antonio Fernando De Franceschi. editora: Companhia das Letras.) 

RESÍDUO

destruo inumerável
como quem limpa arquivo
a plenos pulmões
sem sombra de deixar
vestígio

unha roída ao limite
lúnula:
caroço em texto ossudo

em vão deleto
traste e pó
devasso cantos
moo e engano
no enjoo de lavar a seco

um nada fica sob a língua
resta sem contraste
arde:
desde o começo

HABITAÇÃO

arco aberto
na extensão da linha
ponto a ponto

trânsito de palavras
longe
perto nos quasares

abismo do pulso disparado
e boca e olho:
poros

onde recebo
sem caber-me
a pequena morte

nu deste lado da parede
parede-meia:
o mundo

ausente à distância de toque
sou íntimo
e a vizinhança me dói