ISTO NÃO É UM POEMA — ARNALDO ANTUNES
24 de outubro de 2018

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(do site: Youtube. autor: Arnaldo Antunes.)

ISTO NÃO É UM POEMA

 

isto não é um poema
desabafo
que não pude não
fazer e não pude fazer
de outra forma
que não fosse
assim
fatiando as frases
no espaço
aqui
hoje
eu vi
aterrorizado
um artista assassinado
Moa do Catendê,
mestre de capoeira,
autor do Badauê —
por conta de uma divergência política num bar
da Bahia
depois corri o dedo
sobre a tela e
vi e ouvi
arrepiado
Luiz Melodia
(também negro e compositor,
também com o cabelo rastafari,
como a vítima do post anterior)
cantando
“no coração do Brasil”
e repetindo muitas vezes
esse refrão
“no coração
do Brasil”
“no coração do Brasil”
que tento sentir
pulsar ainda
entre a luz de Luiz
e a treva
desse buraco vazio
que não pulsa mais no peito
de Moa do Catendê
e “não existe amor em SP”
ou “no coração do Brasil”
fraturado
nesses dias
brutos
de coturnos
chucros
a chutar a cara
de quem
ama
arte
cultura educacão
liberdade de expressão
diversidade
cidadania
solidariedade
democracia
mas não se dá
a mínima
o que importa é se subiu
a bolsa
caiu
o dólar
se todos vão prosseguir
seguindo
docilmente para o abismo
nessa insanidade coletiva
em que o Brasil nega
qualquer Brasil
possível
cega
qualquer futuro possível
e o ódio
o horror e o
ódio
e nada que se diga faz sentido
mais
para quê
expor na cara desses caras
a palavra explícita
(gravada em vídeo e repetida, repetida, repetida)
do seu “mito”
dizendo
“eu apoio a tortura”
“eu defendo a ditadura”
“eu vou fechar o congresso”
“não servem nem para procriar”
“não te estrupro porque você não merece”
“a gente vai varrer esses vagabundos daqui”
“o erro foi torturar e não matar”
“viadinho tem que apanhar”
etc etc etc etc etc
e tudo mais
que repete incansavelmente
há anos
ante câmeras e microfones
para quê mostrar de novo
e de novo
o mesmo nojo
se é justamente
por isso
que o idolatram?
e sempre haverá
os que vêm disfarçar
dizendo:
“estamos entre dois extremos”
“sim, mas veja a Venezuela”
“é para acabar com a corrupção”
“nós queremos segurança”
ou
“não é bem assim…”
enquanto constatamos cada vez mais
que sim,
é assim
mesmo, é assim
que é
mas
como li por aí:
“como explicar a lei Rouanet para quem
ainda não assimilou a lei Áurea?”
ou: como explicar a lei da gravidade
para quem ainda crê
que a terra é plana?
e querem defender sua ignorância com dentes
e garras
querem
matar atirar vingar
a quem?
em nome de quem?
(pátria, família, propriedade, segurança?)
se nessa seara não há direitos
nem respeito
ensino ou dignidade
só horror e
ódio, ódio
e horror
as palavras perdem a clareza
os valores perdem o valor
a vida perde o valor
Marielle
remorta remorrida rematada
por sua placa
rompida rasgada desonrada
pelas mãos truculentas de
brutamontes prepotentes
com suas camisetas estampadas
com a face do coiso
que redemonstra sua monstruosidade
quando vende
em seus próprios comícios
camisetas de outro
ultra-monstro
ustra
aquele que além de torturar
levava crianças para verem
suas mães torturadas
e esses mesmos
abomináveis
que, diante de uma claque vergonhosa,
se orgulham
de terem
rasgado as placas
com o o nome Marielle Franco
estão sim
agora
eleitos
satisfeitos
mas não saciados
de todo o sangue
de inocentes
que há de correr
só por serem
diferentes
excitando em outros
o desejo de exercer
seu obscuro
poder
de milícia polícia esquadrão da morte
e o anúncio da Rocinha metralhada
como solução
a barbaridade finalmente
institucionalizada
como diversão
o Brasil finalmente
sem coração
fora da ONU
e dos acordos internacionais pelo
meio-ambiente
sem controle
de sensatez ou mentalidade
sem limite humanitário
“não vai ter ong!”
“não vai ter ativismo!”
“não vai ter mimimi!”
bradam
cheios de si e de ódio
criminosos contra o crime
opressores pela família
amorais pela moral
apesar de todos
os alertas
da imprensa internacional
de esquerda, de centro, de direita
só não vê quem não quer
a tragédia anunciada
divulgada
não como boato
mas escancarada
-mente
enquanto
empoderados pelo discurso
de ódio
de horror e ódio
seus eleitores
já saem pelas ruas
dando tiros
e gritos
enxurradas de fakes
suásticas nazistas gravadas com canivete
na pele da menina
que usava “ele não” estampado na blusa
e a promessa de violência desmedida
se concretizando
antes mesmo de começar o segundo turno
e nem um centímetro de terra para os índios
e nem um pingo de direitos civis ou humanos
e a volta da censura e o ódio,
o ódio, o horror
e o ódio
pra encerrar de vez
o sonho de uma nação
que tem a chance
de dar ao mundo
sua contribuição
original
agora fadada a repetir o que de pior já houve
na história
sem história agora
sem Museu Nacional
nem cultura nem educação
abolir filosofia e arte
em seu lugar:
moral e cívica
escola militar
religião
geografia dos lucros e dividendos
massacre das minorias
horror e ódio
e ódio
e horror
crescente permanente enquanto dure
pois ninguém larga o osso assim tão fácil
depois de um golpe
que precisa parir outro golpe
ou autogolpe
alimentado por todas as fakes e facas
contra as costas de artistas
como Moa
mas na cabeça de quem apóia
tudo se justifica:
o fascismo
a tortura dos presos
o sumário julgamento sem juri
autorização dada à polícia
para matar
e o ódio aos pobres
as blitzes ostensivas
a guerra declarada
dos que aceitam assassinos para combater bandidos
se está tudo invertido mesmo
pobre elegendo milionário,
pelo avesso e ao contrário
então se autoriza a sórdida
barbárie
dos fortes contra os fracos
algo está muito doente
no Brasil
no descoração do Brasil
que mente, se omite, agride, regride
para avançar sem freios
em direção ao fascismo
seguindo a música hipnótica do
ódio,
horror e ódio
pregados em igrejas
em nome de Deus
e de Cristo
só desamor em nome de Cristo
violência e brutalidade em nome de Cristo
armas e tortura
e preconceito em nome de Cristo
de Deus e de Cristo
armar a população
para metralhar os adversários
os diferentes
os miseráveis
os favelados
os do outro lado
os que se manifestam
ou contestam
ou pensam de outra forma
ou se vestem
de outra cor ou tem
outra cor ou
qualquer pretexto
que se crie
para espalhar o ódio, o horror
e o ódio
do machismo ao estupro
da mentira ao linchamento
do homicídio ao genocídio
(“tinha que ter matado pelo menos trinta mil!”)
já sem democracia
palavra vazia
em boca
de quem compactua
(e não são poucos)
pensando ser
possível
alguma forma de
neutralidade
nesse momento
como Pilatos
lavando as mãos
a chamada mídia
tenta fazer média
ao dizer que os dois lados são igualmente
extremistas e perigosos
mas então
onde estavam nos últimos três mandatos
e meio
antes do pesadelo Temer?
estavam numa ditadura comunista
e não sabiam?
na verdade
todos sabem muito bem
que o extremismo
vem de um só
lado, que
quer se eleger para acabar
com eleições
e que o grande perigo é mesmo
esse jogo
de equivalências que,
na verdade
serve ao monstro
pois a omissão é missão impossível
neste agora
impossível
mascarar o sol
da ameaça
hostil e explícita
do nazismo
crescente
com a peneira furada
de um bom senso
mediano hipócrita indiferente
que sempre
vai dizer:
sim, mas a Venezuela…
como se não tivéssemos ouvido exatamente isso
em 64,
quando diziam:
— Sim, mas Cuba…
para justificar a ditadura militar
que tanto elogiam
hoje em dia
e que o atual
presidente
do nosso Supremo Tribunal Federal
decidiu
que agora vai chamar
de “movimento”
em vez de
“golpe militar”
para adoçar um pouco a boca
amarga
do sangue
impregnado
que não vai sumir assim
mudando a nomenclatura
desnomeando a já tão dita
“ditadura”
mas esse des-
-equilíbrio
ético
que diz
preferir uma autocracia
perfeita
a uma
defeituosa
democracia
esse
erro
que nenhum arrependimento será
capaz de reparar
quando for tarde
demais
ainda dá
para evitar
ainda
é tarde
de menos
para
conter
o ódio,
o horror e o ódio
ainda
dd
a
d

 

COISA EM SI
16 de maio de 2015

Ovo
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toda & qualquer coisa é composta de outras tantas coisas.

não existe “coisa em si”.

toda & qualquer coisa forma uma identidade. identidade que se forme, que se molde, que se construa, sem que tenda para alguma coisa, sem que sofra a influência de alguma coisa, sem que penda para algum lado, sem que dependa de alguma outra coisa, não existe.

tudo tende, pende, depende.

tudo, até as palavras: não há nenhuma palavra que exista “em si”, que exista sem que haja, nela, algo que também forme, também molde, também construa, outras palavras: tende / pende / depende.

palavra puxa palavra.

o mar, que molha a ilha, molha o continente.

o ar que se respira traz o que recende, o que exala, o que se espalha. o ar que injetamos nos pulmões é o mesmo que, livre, toca o cheiro das coisas & o traz, de longe, até nós.

tudo é rente, é próximo, é contíguo. tudo é tangente, é tocável, é acessível. tudo é inerente, é dependente, é inseparável.

tudo é rente, tangente, inerente.

tudo, até as palavras: não há nenhuma palavra que exista “em si”, que exista sem que haja, nela, algo que também forme, também molde, também construa, outras palavras: rente / tangente / inerente.

palavra puxa palavra.

não existe coisa assim: isenta, sem ambiente, coisa partida do seu próprio pó, sem mistura, coisa sem sombra na parede, coisa sem margem ou afluente que a alcance, que a toque: as coisas existem & necessariamente, obrigatoriamente, estabelecem inter-relações: não há coração sem mente, não há paraíso sem serpente. não existiria som se não houvesse o silêncio. não haveria luz se não fosse a escuridão.

a vida é mesmo assim: dia & noite, não & sim.

“coisa em si” inexiste.

só existe o que se sente, só existe o que é percebido através dos sentidos. uma coisa, mesmo que exista, se não for sentida por nós, isto é, se não for percebida por nós, essa coisa não existe para nós. para que exista para nós, portanto, as coisas precisam, as coisas dependem, as coisas necessitam, as coisas carecem, existir, antes, para os nossos sentidos.

tudo tende, pende, depende. tudo é rente, tangente, inerente.

não existe “coisa em si”.

a miscigenação, a mistura, a mesclagem, a influência, a tendência, a confluência, sempre foi & sempre será o caminho de toda & qualquer coisa.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: ET  Eu  Tu. poemas: Arnaldo Antunes. fotos: Marcia Xavier. editora: Cosac & Naify.)

 

 

coisa em si
não existe

tudo tende
pende
depende

o mar que molha
a ilha molha
o continente

o ar que se
respira traz
o que recende

coisa em si
não existe

tudo é rente
tangente
inerente

pedra
assemelha
semente

sol nascente:
sol poente

coisa em si
não existe

mesmo que
aparente

coisa em si
coisa só
partida do seu
próprio pó

sem sombra
sobre
a parede

sem mar
gem
ou afluente

não existe
coisa assim

isenta
sem ambiente

não há coração
sem mente

paraíso
sem serpente

coisa em si
inexiste

só existe
o que se
sente

LANÇAMENTO DO LIVRO “ANTÍPODAS TROPICAIS”, DE ADRIANO NUNES
20 de maio de 2014

Antípodas Tropicais_Adriano Nunes_Convite

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prezados,

acima, o convite para o lançamento do mais novo rebento do poeta que, desde sempre, desde que conheci a sua poesia (e tornamo-nos amigos ao mesmo tempo), considero o mais importante da minha geração, da geração que começa a despontar na poesia: o meu queridíssimo & amado poeta das alagoas, adriano nunes!

no mês de aniversário do poeta, quem ganha o presente somos nós, leitores de poesia!

adriano nunes lança o seu mais novo livro, intitulado “antípodas tropicais“, pela editora vidráguas, comandada pela querida poeta & mestra carmen silvia presotto, no dia 28 de maio, às 11h, na editora & livraria Edufal, localizada no campus da universidade federal de alagoas, em maceió.

antípodas tropicais” conta com capa do artista plástico gal oppido, prefácio do professor & poeta alberto lins caldas, orelhas do poeta gaúcho & integrante da banda “os poETs” ricardo silvestrin, e textos críticos do poeta, filósofo & letrista antonio cicero, do professor, crítico literário, poeta & membro da academia brasileira de letras (abl) antonio carlos secchin, e do poeta & compositor arnaldo antunes.

abaixo, trechos dos textos escritos pelos poetas acima citados & vídeo com o poeta & compositor arnaldo antunes recitando um poema do livro “antípodas tropicais“, de adriano nunes.

a poesia agradece a chegada de “antípodas tropicais” & eu saúdo a chegada de adriano nunes, o meu poeta das alagoas, na minha vida & na literatura brasileira!

aos interessados em comprar o livro “antípodas tropicais“, entrar em contato com a carmen silvia presotto pelo site vidráguas (http://vidraguas.com.br/wordpress/).

beijo todos!
paulo sabino.
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“Ao ler, em Antípodas tropicais, poemas em que admiravelmente convivem espontaneidade e virtuosismo, invenção e técnica, ousadia e erudição, inteligência e sensibilidade, fiquei feliz de poder não apenas confirmar, mas reforçar, minha convicção de que se encontra, em Adriano Nunes, um poeta contemporâneo que faz juz à melhor tradição da poesia brasileira.”

(Antonio Cicero – poeta, filósofo & letrista)

 

“Se fosse um verso, Antípodas tropicais teria  sete sílabas. E é no andamento do verso curto que Adriano Nunes, neste novo livro, alcança excelentes  resultados. Nele avulta a rigorosa consciência da forma não apenas em seus sinais externos – a  consistente prática do  soneto, por exemplo – mas no domínio rítmico, na amplitude vocabular. Tudo isso, porém, ao largo do mero virtuosismo, pois Adriano conjuga a técnica a um efetivo e intenso temperamento lírico-meditativo, na insaciada  e inestancável  busca do outro, ainda que esse outro resida no próprio eu. A metalinguagem, que em muitos poetas se restringe a receitas domesticadas, em Antípodas tropicais  comparece viva e vigorosa, lançando-se sem cessar  ao ‘precipício de sentidos’,  destinação derradeira de todo poema.”

(Antonio Carlos Secchin – professor, poeta, crítico literário & membro da ABL)

 

“É impressionante a desenvoltura com que Adriano Nunes passeia pelo amplo repertório de formas, sempre com competência e intimidade no trato com a linguagem, mantendo ao mesmo tempo uma voz própria, original, cheia de belos achados.”

“Passeando com intimidade e destreza por diferentes ritmos e tons de discurso – da austeridade clássica à coloquialidade modernista, do metro preciso ao verso livre e deste às experiências mais construtivistas – , Adriano Nunes parece uma síntese impossível entre o poeta lírico e o formalista. De suas rimas raras, aliterações e inversões sintáticas, salta sempre uma surpresa, uma solução imprevista, um deslumbre sonoro-semântico que potencializa a linguagem.”

(Arnaldo Antunes – poeta & compositor)

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(vídeo do site: Youtube. Arnaldo Antunes recita “Noite avulsa“, poema de autoria de Adriano Nunes, integrante do livro “Antípodas Tropicais“, editora Vidráguas.)

A NOSSA CASA
16 de janeiro de 2014

Paulo Sabino_PerfilAmor-perfeito

 

(Na primeira foto: a minha casa. Na segunda foto: um mato que floresce, conhecido por “amor-perfeito”.)
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a nossa casa é de carne & osso: porque o que, de fato, nos abriga, o que, de fato, nos dá guarida, é o corpo.

a nossa casa é de carne & osso porque a nossa casa é o nosso corpo, este, de onde se pronuncia o paulo sabino.

sem o abrigo do corpo, nada feito.

a nossa casa não é sua nem minha (não dispomos desta morada a que chamamos corpo: não compramos, não vendemos, não alugamos, não hipotecamos — simplesmente: habitamos) & também não tem campainha para quem nos chegue de visita, ou para quem venha conosco morar.

a nossa casa, diferentemente das demais (as de tijolo & concreto), tem varanda dentro (e não fora), pois o lugar onde, na nossa casa, passa o vento para ventilar — a fim de trazer vida à residência — é dentro do corpo. o ar passa numa varanda que vem dentro, e não fora, da casa.

a nossa casa tem varanda dentro & tem um “pé de vento” para respirar (assim como em quintais com um pé de manga, ou de goiaba, ou de abacate, para comer): um pé-de-vento para respirar: ventania forte, boca & narinas adentro, que traz, com seu ar, vida à residência.

por essa razão (por ser o corpo a nossa mais legítima morada):

a nossa casa é onde a gente está, a nossa casa é em todo lugar.

basta cuidar dessa casa, da sua arquitetura, deixar que nela more um pé de vento, deixar que nela entre a luz, para que ela possa estabelecer-se segura em qualquer localidade: aqui, no rio; ali, em sampa; lá, no pará; acolá, no japão:

a nossa casa é onde a gente está, a nossa casa é em todo lugar.

basta atentar à casa, à sua arquitetura, deixar que nela entre um pé-de-vento, deixar que nela more a luz, para que ela possa estabelecer-se segura em qualquer localidade: em local onde “amor-perfeito” é mato (até porque “amor perfeito”, se não for mato, inexiste) & o teto estrelado (teto com constelações que brilham no escuro de um cômodo) também tem luar; em local que pareça um ninho, onde surja um passarinho para acordar a casa; em local onde passe um rio no meio & onde o leito (a cama, o lugar de repouso) possa ser o mar:

a nossa casa é onde a gente está, a nossa casa é em todo lugar.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do encarte do cd: Saiba. artista: Arnaldo Antunes. gravadoras: Rosa Celeste / BMG.)

 

 

A NOSSA CASA

 

na nossa casa amor-perfeito é mato
e o teto estrelado também tem luar
a nossa casa até parece um ninho
vem um passarinho pra nos acordar
na nossa casa passa um rio no meio
e o nosso leito pode ser o mar
a nossa casa é onde a gente está
a nossa casa é em todo lugar
a nossa casa é de carne e osso
não precisa esforço para namorar
a nossa casa não é sua nem minha
não tem campainha pra nos visitar
a nossa casa tem varanda dentro
tem um pé de vento para respirar
a nossa casa é onde a gente está
a nossa casa é em todo lugar

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(do site: Youtube. videoclipe da canção: A nossa casa. Artista: Arnaldo Antunes. gravadoras: Rosa Celeste / BMG.)

ESTRELAS
23 de outubro de 2012

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estrelas, eu as quero, eu as desejo, para mim!

estrelas para mim!

para mim: estrelas!

para mim,
para o meu pensamento,
na minha opinião,

estrelas são para mim.

estrelas para mim: estrelas estrelas!

estrelas para mim: “para quê?”

“para quê?”
“para quê?”

oras, “para quê?” para mim!

estrelas para mim, só para mim!

para mim!
para mim!
para mim!

estrelas para mim & a treva entre as estrelas — só para mim!

para mim eu quero, eu desejo: as cintilações & a escuridão entre as cintilações durante o trajeto. assim como na esfera celeste.

beijo todos!
paulo sabino.

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(autores: Arnaldo Antunes / Sérgio Britto.) 

 

 

ESTRELAS

 

Estrelas
Para mim
Para mim
Estrelas

 

São para mim
Estrelas para mim
Estrelas
Estrelas

Para quê?
Para quê?
Para quê?

Estrelas para mim
Só para mim

Para mim
Para mim
Para mim

E a treva entre as estrelas
Só para mim

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(áudio extraído do cd: A fábrica do poema. artista e intérprete:Adriana Calcanhotto. canção: Estrelas. autores da canção: Arnaldo Antunes e Sérgio Britto. gravadora: Epic Records.)

DE MAIS NINGUÉM
20 de dezembro de 2011

Rosa que sangra

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se ela,

se a pessoa amada,

pessoa a quem dediquei o meu amor,

me deixou, me largou, foi-se, deu no pé,

a dor (da perda) é minha, não é de mais ninguém.

aos que possuem piedade de mim, porque carrego a dor de amar, a esses eu devolvo a piedade, a esses eu devolvo a dó.

não preciso da piedade de ninguém.

eu tenho a minha dor que, mesmo difícil, mesmo pesada, é minha só, não é de mais ninguém.

se ela,

se a pessoa amada,

pessoa a quem dediquei o meu amor,

preferiu ficar sozinha, ou já tem um outro bem, se ela, a pessoa amada, me deixou, seja pelo motivo que for, a dor é minha, a dor é de quem tem.

e só a tem, a dor de amar, quem ama.

eu sou um que amo.

se nos meus braços, ela, a pessoa amada, não se aninha, a dor é “minha dor”.

de mais ninguém.

se meu mundo caiu, eu que aprenda a levantar:

aprenda a reagir & a ouvir o coração responder:

eu preciso aprender a só ser.

beijo todos!
paulo sabino.
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(autores: Arnaldo Antunes / Marisa Monte.)

 

 

DE MAIS NINGUÉM

 

Se ela me deixou, a dor
É minha só
Não é de mais ninguém
Aos outros eu devolvo a dó
Eu tenho a minha dor
Se ela preferiu ficar sozinha
Ou já tem um outro bem
Se ela me deixou
A dor é minha
A dor é de quem tem

É o meu troféu
É o que restou
É o que me aquece
Sem me dar calor
Se eu não tenho o meu amor
Eu tenho a minha dor
A sala, o quarto
A casa está vazia
A cozinha, o corredor
Se nos meus braços
Ela não se aninha
A dor é minha dor

Se ela me deixou, a dor
É minha só
Não é de mais ninguém
Aos outros eu devolvo a dó
Eu tenho a minha dor
Se ela preferiu ficar sozinha
Ou já tem um outro bem
Se ela me deixou
A dor é minha
A dor é de quem tem

É o meu lençol
É o cobertor
É o que me aquece
Sem me dar calor
Se eu não tenho o meu amor
Eu tenho a minha dor
A sala, o quarto
A casa está vazia
A cozinha, o corredor
Se nos meus braços
Ela não se aninha
A dor é minha dor
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(do site: Youtube. áudio extraído do cd: Verde, anil, amarelo, cor de rosa e carvão. artista: Marisa Monte. autores da canção: Arnaldo Antunes / Marisa Monte. participação especial: Conjunto Época de Ouro. gravadora: EMI.)

AVISO AOS NAVEGANTES — SHOW DE LANÇAMENTO: “RELIGAR” – LEO CAVALCANTI
28 de fevereiro de 2011

eu moro no rio de janeiro.

ele mora em são paulo.

eu estava num bairro-reduto meu, num bar por mim bastante freqüentado.

resolvi comprar um sorvete (era noite de calor) na mercearia em frente ao bar. na fila para pagar, avisto uma figura conhecida. fiquei por uns instantes a observar aquele rosto, a fim de decodificá-lo, até que uma baita surpresa me assaltou:

“leo!…”

ele me olhou por alguns instantes, curioso, os olhos procuravam decifrar a minha figura, até que uma surpresa o assaltou:

“paulo sabino!”

(a coincidência era quase inacreditável – rs!)

abraçamo-nos e um papo descontraído, irreverente, divertido, logo teve o seu lugar.

a figura bonita, simpática & boa do talentoso cantor & compositor leo cavalcanti me encantou de cara.

de quebra, ainda faturei o ótimo & inspirado álbum de estréia do leo, “religar”, considerado, por uma revista especializada em música, um dos 100 melhores lançamentos de 2010.

a espinha dorsal do disco, se me compete falar, é existencialista.

acho muito bonito ver um rapaz, como o leo, contemporâneo de uma geração próxima à minha, tratando de assuntos que dizem fundo ao ser & estar no mundo, que falam alto às experiências mundanas.

pois que nesta quarta-feira, dia 02 de março, leo cavalcanti trará o show de lançamento do seu cd “religar” ao rio de janeiro.

a apresentação será no solar de botafogo (rua general polidoro, 180, botafogo – tel.: 2543 5411), às 22h.

uma belíssima oportunidade para conhecer, quem não conhece, o trabalho do leo, que é encantador. tenho certeza de que os senhores não se arrependerão.

arnaldo antunes declarou, numa matéria a um jornal, que nunca vira, na mpb, alguém que tratasse dos assuntos tratados nos versos de leo cavalcanti. e eu concordo com o poeta. há um ineditismo nas linhas que tornam o trabalho bem peculiar.

aproveito para deixá-los com duas de suas letras-poemas.

letras-poemas que falam da importância de amar-se, para que se possa, para que se consiga, amar uma outra pessoa. este é o princípio básico de todo qualquer bom amor.

a criação de alguém inalcançável parte da insegurança de si, parte de uma insegurança do ser, parte da insegurança de ser, e tal insegurança projeta o “outro”, projeta “aquilo que se quer”, como algo inalcançável, como coisa inatingível, travando a naturalidade do agir (na presença do outro) e abrindo espaço para o desconforto comportamental.

na presença do outro, a espontaneidade perde espaço para o desejo (premeditado) de acertar, e quanto mais cresce o desejo de acertar, mais inalcançável se torna aquilo que se deseja, aquilo que se estima.

é preciso amar-se & tranqüilizar-se consigo, para que o ser realce o ser e possa, enfim, aparecer inteiriço em quaisquer situações, para quaisquer pessoas.

para amar-se, é preciso estancar o medo de ir fundo em si. o medo de olhar para si permite a autopiedade, permite a vitimização de si, enquanto o tesouro maior fica preso lá no fundo.

(o tesouro maior: o reconhecimento & a valorização do que realmente se quer, do que realmente se deseja, do que realmente se é.)

a seguir, informações mais detalhadas sobre a apresentação do cantor & compositor leo cavalcanti na cidade do rio de janeiro.

beijo todos!
paulo sabino.
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LEO CAVALCANTI – Show de lançamento do CD “Religar”

Data: 02 de março (quarta-feira)
Local: Solar de Botafogo (Rua General Polidoro, 180 – Botafogo – tel: 2543 5411)
Horário: 22h
Ingressos: R$ 40,00, R$ 30,00 (100 primeiros pagantes) e R$ 20,00 (meia entrada)
Formas de pagamento: Dinheiro e cartão Visa Eletron (bilheteria aberta a partir das 16h)
Capacidade: 160 lugares
Censura: 14 anos

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(do site: Leo Cavalcantileocavalcanti.com.br / autor dos versos: Leo Cavalcanti.)

 

INALCANÇÁVEL  VOCÊ

E se eu te disser que eu quero aprender a me
amar e te amar também ao mesmo tempo?
Você teria tempo?

Os seus lugares são belos
Os seus gestos são tão naturais
Boquiaberto me travo
Por me ver a te admirar demais
Eis que fico fraco
Eu inventei o inalcançável você

Tudo se faz tão perverso
Qualquer impulso meu dilui-se no ar
O igual-pra-igual espontâneo
Perde espaço pro desejo de acertar
E quanto mais espero, mais me nego e mais
me faço afastar
Eu inventei o inalcançável você
Me fiz escravo do meu medo de ser
E agora preciso me permitir

Pra parar de sofrer
E viver o que é belo em mim
Deixar o medo morrer
E ser o que eu posso ser, enfim

Mas se eu te disser que eu quero aprender a
me amar e te amar também ao mesmo tempo?
Você teria tempo?

 

MEDO DE OLHAR PRA SI

Pare de sofrer de antemão
— não se julgue um cão —
Saiba que é difícil, sempre no início
Dá muito medo de olhar pra si mesmo
Saiba que o ego é ilusão
— é um falso chão —
O verdadeiro ofício é se livrar do vício
de se pôr um título, e viver a esmo

Pra que se machucar com tão inútil contradição
Esse jogo insaciável de apego e aversão
Se desvalorizar, é o mesmo que se “superamar”
Ambos querem excluir o resto do mundo
Enquanto seu tesouro fica preso lá no fundo

VER-SE NO QUE VÊ
22 de setembro de 2010

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O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.
 
A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e incerteza.
 
(trecho do poema “madrigal melancólico”, de manuel bandeira)
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a beleza é um conceito, não existe “em si”. não se tem conhecimento de “força”, ou de “organismo”, não se sabe da existência de nenhum tipo de “ente” a que possamos chamar de: “beleza”.
 
justamente porque a beleza não existe como “força”, ou como “organismo”, ou como “ente”, que não a encontramos no mundo exterior.
 
a beleza só é achada dentro de nós. exatamente por ser “conceitual”, e não “algo material”, a beleza encontra-se somente dentro de cada um, e é moldada, e é construída, e vai constituindo-se, social e culturalmente.
 
por isso, a beleza possui muitas variantes. estas derivam, são provenientes, dos fatores ligados ao modo que nos ensinaram (e o modo que conquistamos) de enxergar a vida & os seus acontecimentos.
 
toda sociedade humana vive os seus padrões de beleza. isto, a experiência com o belo, nos é inerente. o que não nos é inerente é o que denominamos “belo”. os objetos & coisas que denominamos “belos” variam, e justamente por variarem, as coisas & objetos belos possuem um caráter contingente, isto é, um caráter casual, um caráter acidental.
 
as coisas & objetos que denominamos “belos” variam, diferenciam, porque a beleza está no olho de quem vê e não naquilo que é enxergado.
 
daí surge o verso-afirmação de manuel bandeira:
 
A beleza, é em nós que ela existe.
 
é em nós que a beleza existe. pois, para enxergar, para ver, é preciso pensar sobre o que se avista. não vamos longe sem o uso da razão. o mundo, sem a razão, torna-se um caos sem precedentes. necessitamos pensá-lo para que possamos nele existir. 
 
portanto: perceber é conceber águas de pensamento.
 
águas de pensamento, porque a água é o elemento mais apropriado ao pensamento: pois que este, assim como o líqüido, possui a característica da fluência, de nunca estar parado, de modificar-se com o passar do tempo, de ser sempre outro no decorrer da existência, pois que somos, com os nossos pensamentos, metamorfoses ambulantes, assim como os rios, nunca os mesmos, sempre em movimentação.
 
(é deste modo que se dá a beleza: através da percepção nossa.)
 
uma coisa curiosa nos acomete no ato da visão: o que vemos vidafora, almadentro, além de formularmos com o uso da razão, também nos formula. as paisagens que vislumbramos nos nossos caminhos, nas nossas jornadas, contribuem na formação nossa. o nosso olhar está intimamente ligado ao entorno que nos cerca. o nosso olhar também é fruto dele. as paisagens nos moldam, elas nos formam, elas nos criam.
 
logo, posso afirmar que:
 
sou a criatura do que vejo. 
 
no que vejo, entro, vou dentro, avante.
 
inda mais quando desejo o que vejo.
 
o que vejo, de longe, se vejo a partir do desejo, se encaro com olhos de desejo (desejo que acontece desde dentro de mim), e que extrapola a visão, então eu entro, e entro muito dentro, do que vejo.    
 
beijo todos com olhos de carinho & atenção!
o preto,
paulo sabino / paulinho.   
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(do livro: Transblanco. autor: Octavio Paz. tradução: Haroldo de Campos. editora: Siciliano.)
 
 
BLANCO
 
Me vejo no que vejo
Como entrar por meus olhos
Em um olho mais límpido
 
Me olha o que eu olho
É minha criação
Isto que vejo
 
Perceber é conceber
Águas de pensamentos
Sou a criatura
Do que vejo
 
 
(do livro: ET Eu Tu. autores: Arnaldo Antunes / Marcia Xavier. editora: Cosac & Naify.)
 
 
(poema: Arnaldo Antunes)
 
 
vejo
 
de  longe
 
longe
 
vejo
 
o  que  desejo  desde
 
dentro
 
e  entro
 
entro
 
dentro
 
do  que  vejo

APRENDIZAGEM
22 de março de 2010

prezados,
 
no poema abaixo, uma lição aprendida por mim:
 
palavra: feita de substância excêntrica, exótica, intrigante, pois que compacta, maciça, espessa a sua carne, digo: concreta (ao avistá-la no branco do papel), ao mesmo tempo em que é porosa, ventilada, esponjosa, digo: flexível, vaporosa, ao se pensar que, apesar da concretude, quando disposta na folha, os seus significados dançam, soltos, no ar da página. não há olho que dê conta de “abocanhar” todo o cardápio de achados — todas as metáforas e imagens possíveis — oferecido pelo sarcocárpio — pela polpa — duma palavra, visto as tantas maneiras de se interpretar um único texto, os diferentes tesouros poéticos desencavados pelos mais variados tipos de olhar.
 
(portanto, a ciência de que este espaço, o “prosa em poema”, propõe-se a desnudar um tanto do que o MEU olhar enxerga & capta nas linhas que me emocionam. não há a pretensão de dizer o que dizem as linhas. isso seria um despautério vindo de mim. não. o que quero, o que desejo, e faço, é compartilhar um tanto da minha visão. e só.) 
 
estes versos são dedicados a alguns bambas da palavra na minha existência (em ordem alfabética, não de importância. a de importância, em mim, inexiste):
 
antonio cicero
armando freitas filho
arnaldo antunes
caetano veloso
carlito azevedo
carlos drummond de andrade
clarice lispector
eucanaã ferraz
paulo leminski
waly salomão
 
um beijo em vocês!
o preto.
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APRENDIZAGEM  (autor: Paulo Sabino.)
 
Lição  aprendida:
palavra:
coisa  estranha
sua  carne
compacta
espessa
maciça e
ao  mesmo  tempo
porosa
ventilada
esponjosa
—  matéria  excêntrica  —
 
Não  há  modo  de
averiguar
constatar
dimensionar
o  que  encerra
seu  sarcocárpio
(cujo  cardápio
de  achados
não  se  abre
por  completo
a  nenhum  olho)
tantos  os  significados
soltos
no  ar
da  página

NO RIO DO MEIO, VELHOS E JOVENS
11 de fevereiro de 2010

o rio do meio: a existência que nos escorre tempo afora.
 
o ato do escritor: o tempo transcorrido em palavras, transposto a partir da existência de quem o escreve.
 
sou dos que escrevem como quem assobia no escuro: vagar à beira do poço interior observando os vultos no fundo, misturados com minha imagem refletida na superfície. não vigio em quartos fechados, mas amo o vasto mar. não me atraem as sombras mas o sol. e minha literatura não emerge de águas tranqüilas, tantas as perplexidades vivenciadas.
 
nem sempre a filosofia dos meus personagens tem muito a ver com a minha, nem vivo as suas trajetórias. mas sou pai desses que dormem dentro de mim como filhos possíveis.
 
seja qual for o modo, escrever é uma forma de fazer valer a trilha escura.
 
digo e repito quantas vezes necessárias (isto é uma idéia que tenho para um novo poema): meu palco é o papel. e as palavras, vestes com as quais enceno os espetáculos.
 
inventemos as nossas ficções! (tenhamos a criança conosco, como adélia a jonathan.)
 
sobre o rio do meio, fica a lição:
 
No meio do caminho dessa vida
Vinda antes de nós
E estamos todos a sós
No meio do caminho dessa vida
E estamos todos no meio
Quem chegou e quem faz tempo que veio
Ninguém no início ou no fim
Antes de mim
Vieram os velhos
Os jovens vieram depois de mim
E estamos todos aí
 
(Velhos e Jovens, parceria de Arnaldo Antunes e Péricles Cavalcanti)
 
aproveitem-no — o rio do meio —, aproveitem as suas águas enquanto tais águas não ensecarem.
 
beijo em vocês,
o preto.
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(do livro: O rio do meio. trecho do capítulo: Assobiando no escuro. autora: Lya Luft. editora: Record.)
 
 
Há temas que se repetem, perguntas que se perpetuam; inquietações coincidem entre o escritor e seus leitores, entre quem dá algum depoimento e quem assiste.
 
“Por que você escreve?” é a primeira e universal indagação.
 
Um escritor respondeu que se parasse de escrever morreria, portanto escrevia para não morrer; uma mulher dizia que escrevia para não enlouquecer, outra revela que o faz para ser amada.
 
Sou dos que escrevem como quem assobia no escuro: falando do que me deslumbra ou assusta desde criança, dialogando com o fascinante — às vezes trevoso — que espreita sobre nosso ombro nas atividades mais cotidianas. Fazer ficção é, para mim, vagar à beira do poço interior observando os vultos no fundo, misturados com minha imagem refletida na superfície.
 
Tudo isso é jogo — contraponto da vida concreta, onde não me atraem as sombras mas o sol. Não vigio em quartos fechados, mas amo o vasto mar; não me esgueiro, mas, apesar de todas as fragilidades, avanço.
 
Minha literatura não emerge de águas tranqüilas: fala de minhas perplexidades enquanto ser humano, escorre de fendas onde se move algo que, inalcançável, me desafia. Escrevo quase sempre sobre o que não sei.
 
O artista — na minha linha de trabalho, gente da minha espécie — guarda a visão mágica da infância, quando o real e o imaginado convivem sem problemas. As entrelinhas — mais importantes do que as linhas — espelham essa dança de máscaras e desvendamentos.
 
Criar personagens trágicos não significa que o autor seja pessimista: muitos humoristas são calados e deprimidos. Nem sempre a filosofia de meus personagens tem muito a ver com a minha, nem vivo as suas trajetórias. Mas sou mãe desses que dormem dentro de mim como filhos possíveis, sementes plenas do sono do fruto. 
 
É preciso não sucumbir quando naufragam. O que nos resguarda? Que mão nos segura à margem? Talvez a crença de que tudo faz parte do mesmo fluir: amor e solidão, nascimento e morte, entrega e decepção. De que algum sentido existe — o essencial, que nossa inquietação procura.
 
Tenho um olho otimista que vive (e convive) e um olho pensativo: este, contempla, perscruta, inventa suas ficções.