DIARIAMENTE
9 de dezembro de 2015

Leblon_Rio de Janeiro_Praia

Som & Pausa______________________________________________________

para cada coisa, um seu equivalente, um seu correspondente: para cada coisa, algo que lhe caiba, algo que lhe convenha:

para calar a boca: (óleo de) rícino & seu gosto insuportável, deveras amargo.

para lavar a roupa: sabão em pó.

para viagem longa: jato.

para contas difíceis: calculadora.

para o pneu na lona, furado: jacaré, um tipo de ferramenta utilizada para a sua troca.

para a pantalona: nesga, que é um tecido que se costura entre as duas partes de um vestuário (calça, saia) para aumentar sua largura.

para pular a onda: litoral & seu mar.

para o lápis ter ponta: apontador.

para o pará & o amazonas, estados brasileiros da região norte: látex, substância extraída das seringueiras, árvores comuns a esses lugares.

para trazer à tona, para trazer à superfície: homem-rã, mergulhador profissional que efetua explorações submarinas, operações de resgate & salvamento.

para a melhor azeitona: ibéria, região da europa onde se localizam portugal & espanha, países produtores das melhores azeitonas & dos mais saborosos azeites.

para o presente da noiva: marzipã, doce de amêndoas utilizado como cobertura de bolo.

a folha para o outono: exclusão, estação do ano em que as folhas caem das árvores.

para todas as coisas, a fim de entendê-las, de apreender seus significados: dicionário.

para que todas as coisas fiquem prontas: paciência (no processo de execução).

para abrir a rosa: temporada (o seu processo de aprontamento até o desabrochar).

para quem não acorda: balde — de água gelada.

para a letra torta: (um caderno de) pauta.

para os dias de prova: amnésia, tamanho nervosismo diante das questões.

para quem se afoga: isopor, artefato de poliestireno que flutua em superfície líqüida.

para fechar uma aposta: paraninfo, a testemunha de uma disputa.

para quem se comporta: brinde, um prêmio pelo bom comportamento.

para a mulher que aborta: repouso absoluto.

para saber a resposta: vide-o-verso, olhar o lado oposto à pergunta, à proposição feita.

para a menina que engorda: hipofagia, que é a ingestão de quantidade insatisfatória de alimentos na tentativa de perder peso.

para a comida das orcas: krill, nome dado a um tipo de crustáceo muito semelhante ao camarão, que serve de alimento a outras espécies de baleias, tubarões & arraias.

para o telefone que toca, para a água lá na poça, para a mesa que vai ser posta: para tudo & qualquer coisa: para você, o que você gosta: diariamente.

diariamente, a você, tudo o que lhe caiba, tudo o que lhe convenha: para você, diariamente, o que você gosta.

(a fim de que a vida lhe seja feliz, a fim de que você seja grato à vida.)

(a vida gosta de quem gosta da vida.)

beijo todos!
paulo sabino.
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(do encarte do cd: Mais. artista: Marisa Monte. autor dos versos: Nando Reis. gravadora: EMI.)

 

 

DIARIAMENTE

 

Para calar a boca: rícino
Para lavar a roupa: omo
Para viagem longa: jato
Para difíceis contas: calculadora
Para o pneu na lona: jacaré
Para a pantalona: nesga
Para pular a onda: litoral
Para o lápis ter ponta: apontador
Para o Pará e o Amazonas: látex
Para parar na Pamplona: Assis
Para trazer à tona: homem-rã
Para a melhor azeitona: Ibéria
Para o presente da noiva: marzipã
Para o adidas e o conga: nacional
Para o outono a folha: exclusão
Para embaixo da sombra: guarda-sol
Para todas as coisas: dicionário
Para que fiquem prontas: paciência
Para dormir a fronha: madrigal
Para brincar na gangorra: dois
Para fazer uma toca: bobs
Para beber uma coca: drops
Para ferver uma sopa: graus
Para a luz lá na roça: 220 volts
Para vigias em ronda: café
Para limpar a lousa: apagador
Para o beijo da moça: paladar
Para uma voz muito rouca: hortelã
Para a cor roxa: ataúde
Para a galocha: verlon
Para ser moda: melancia
Para abrir a rosa: temporada
Para aumentar a vitrola: sábado
Para a cama de mola: hóspede
Para trancar bem a porta: cadeado
Para que serve a calota: volkswagen
Para quem não acorda: balde
Para a letra torta: pauta
Para parecer mais nova: avon
Para os dias de prova: amnésia
Para estourar pipoca: barulho
Para quem se afoga: isopor
Para levar na escola: condução
Para os dias de folga: namorado
Para o automóvel que capota: guincho
Para fechar uma aposta: paraninfo
Para quem se comporta: brinde
Para a mulher que aborta: repouso
Para saber a resposta: vide-o-verso
Para escolher a compota: Jundiaí
Para a menina que engorda: hipofagia
Para a comida das orcas: krill
Para o telefone que toca
Para a água lá na poça
Para a mesa que vai ser posta
Para você o que você gosta: diariamente
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(do site: Youtube. áudio extraído do álbum: Mais. artista & intérprete: Marisa Monte. canção: Diariamente. autor da canção: Nando Reis. gravadora: EMI.)

“HOMECOMING”
19 de novembro de 2015

Rio de Janeiro_Vista do avião

(A cidade do Rio de Janeiro, vista do alto de um avião.)
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“Paulo, meu caro.

Às vezes, depois de passar 2, 3 noites acordado, procurando em vão uma solução melhor, uma maldita palavrinha que seja, para um poema, para uma tradução, eu cedo ao desânimo e penso aqui com meus botões: ‘Cara, por que perder tempo com isso, pra que o esforço extra, aliás, qualquer esforço? Ninguém vai notar a diferença mesmo. Ninguém tá nem aí.’

E aí você, Paulo, vem com seu trabalho, com sua leitura precisa, perspicaz, com algo assim, pra lá de generoso, e, embora eu mesmo não possa (nenhum de nós pode) julgar o (meu) próprio trabalho, a única resposta que posso te dar e a única maneira que tenho de te agradecer é dando (mais) duro, não desanimando, não deixando a peteca cair, passando mais noites em claro atrás daquela palavra (porque alguém nota, sim, a diferença) e tentando (com sorte) fazer algo que preste.

Todo mundo — eu também — quer vender 1 milhão de exemplares, encher um estádio com fãs boquiabertos(as) etc., mas o que mantém a gente escrevendo poesia é uma leitura, um feedback como este seu. Obrigado mesmo e um grande abraço, Nelson”.

(Nelson Ascher — poeta, tradutor & crítico literário)

 

 

homecoming: expressão da língua inglesa que pode ser entendida como “regresso à casa”, “retorno ao lar”.

estar em meu país depois de passar uma temporada longe.

estar em meu país é estar em convívio com uma série de características sócio-culturais que diz respeito ao meu país, às pessoas que nele vivem.

e, estando em meu país, por mais que eu consiga, com certa facilidade, identificar determinadas características sócio-culturais que compõem o meu país, que é a minha casa, o meu lar primeiro, há sempre algo que, nessa apreensão, nos escapa, acaba imensurável. há sempre algo para além da linguagem, de árdua captura & designação.

determinadas características sócio-culturais que compõem o meu país: estar em meu país é deduzir, num golpe de vista, quem é o quê (se gay ou se opus dei); estar em meu país é ser, desde o primário, desde os tempos remotos, íntimo de alguém antes de ser-lhe apresentado; estar em meu país é dizer quem faz o quê & o que faria caso pudesse (nas mais variadas situações cogitadas ou experiências do cotidiano); estar em meu país é intuir, sem dúvida, quem é quem, como ver quem quer passar por quem.

determinadas características sócio-culturais que compõem o meu país: estar em meu país é vivenciar pré-conceitos, julgamentos infundados, intimidades forçadas, percepções precipitadas, ainda que haja muitas vezes acerto na primeira impressão sobre alguém ou algo.

no entanto, estar em meu país tem “algo mais difícil” que o dom fácil de identificar algumas das suas características sócio-culturais (como as apontadas acima), e esse “algo mais difícil” de ser apreendido & classificado, rotulado, nomeado, é, simplesmente, estar em meu país, esse “algo mais difícil” é, simplesmente, o que não cabe em nenhuma definição do que seja estar em meu país — a única coisa que cabe onde não cabe definição para o meu país é a pura vivência, é habitar, conviver, desfrutar, aventurar-se, inserir-se na vida do meu país, no seu dia-a-dia & pormenores.

em tudo o que resta & rasteja, há sempre o quinhão do indefinível, do inclassificável, do imponderável, do que escapa à linguagem, do que está à mostra somente quando vivenciado sem racionalizações.

(que tenhamos, sempre, o dom fácil de frustrar qualquer estranho que pense saber tudo o que pensamos.)

beijo todos!
paulo sabino.
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(do site: Youtube. Paulo Sabino recita “Homecoming”, poema de Nelson Ascher. Em 18/11/2015.)


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(do livro: Parte alguma. autor: Nelson Ascher. editora: Companhia das Letras.)

 

 

HOMECOMING

 

Estar em meu país
é deduzir num golpe
de vista quem é o quê,
se gay ou se opus dei,

mas isto ainda é fácil,
algo exeqüível quer
nos parques, quer nos becos
de Osasco ou nos de Osaka.

Estar em meu país
é ser, desde o primário,
íntimo de alguém antes
de ser-lhe apresentado,

mas isto, num país
mais incestuoso até
do que a menor das tribos
perdidas, ainda é fácil.

Estar em meu país
é de antemão poder
dizer quem faz o quê
e o que faria caso

pudesse, mas às vezes
parece (e constatá-lo
é fácil) que não há
ninguém fazendo nada.

Estar em meu país
é tanto intuir sem dúvida
quem é quem como ver
quem quer passar por quem,

embora, a rigor, isto
talvez se deva à idade
e, após alguma prática,
nem chegue a ser difícil.

Estar em meu país,
mais que saber por que
qualquer estranho pensa
saber tudo o que penso,

tem algo mais difícil
que o dom fácil de sempre
frustrá-lo e é simplesmente
estar em meu país.

SEI LÁ, NÃO SEI…
9 de junho de 2015

Cine Olaria_PB

Cine Olaria_2015

(Na primeira foto, o Cine Olaria, em funcionamento, como o conheci na infância & parte da adolescência; na segunda foto, o Cine Olaria nos dias atuais, desativado & abandonado.)
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Dias atrás, pensei com os meus botões: se existe uma vantagem em nascer em bairro do subúrbio, bairro periférico, portanto, bairro mais pobre, e eu enxergo outras tantas vantagens, é a oportunidade, mais contundente, de entender, através da razão & do sentimento, que a riqueza material — a grana, as ações, as apólices — nada tem a ver com a riqueza de sentimentos que se pode ter para doar.

Toda vez que escuto este poema-canção, toda vez que leio os seus versos, me vem à cabeça Olaria, bairro onde, depois de nascido (no Estácio) & saído do hospital, fui morar.

Um suburbano coração.

Os versos deste poema-canção me vêm à cabeça porque, quando penso em determinada área de Olaria, área que não acho esteticamente bonita mas que ao mesmo tempo acho bela, feliz, aprazível ao olhar, consigo me ver nas linhas poéticas, me espelho na voz do poeta, me digo nos versos do poema-canção.

Porque determinados lugares, que, a princípio, não agradam esteticamente, podem conter uma atmosfera, uma sintonia, uma espécie de “calmaria” & “alegria”, indescritíveis, que não estão na arquitetura, que não estão propriamente na “matéria”, nas construções avistadas.

Em Olaria, a poesia, feito o mar, se alastrou; e a beleza de um lugar no bairro, para entender, tem que se achar que a vida não é só isso que se vê; a vida é um pouco mais do que o percebido pelos olhos, a vida é um pouco mais do que o tocado pelas mãos, a vida é um pouco mais do que o pisado pelos pés.

A beleza de certo local do lugar não me parece “palpável”, “material”. Eu vejo, sinto, percebo, determinado trecho de Olaria em todo o poema-canção.

A incerteza, a dúvida, o desconhecimento da razão de tamanho sentimento por um lugar, em Olaria, que esteticamente seria julgado como feio: sei lá, não sei… Não sei se, toda a beleza de que lhes falo, sai tão-somente do meu coração. Em Olaria, a poesia, num sobe & desce constante, anda descalça, de pé no chão, pobre, primordial, ensinando um modo novo de viver, de sonhar, de pensar, e sofrer.

Olaria: a sua calmaria, o seu silêncio, as suas muitas ruas de casarões, a sua face interiorana, a sua face feia & feliz, a sua pobreza, a sua despreocupação, me formam, me moldam, me conduzem.

Olaria é tão grande que nem cabe explicação.

Beijo todos!
Paulo Sabino.
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(do livro: De onde vêm as palavras. autor: Deonísio da Silva. editora: Lexikon.)

 

 

FAVELA: é controvertida a origem deste vocábulo. Pode ter vindo do latim “favilla”, cinza quente, ou de “favu”, o conjunto de alvéolos de uma colmeia, que também se chama cortiço. Nos dois casos, alude-se, por metáfora, a conjuntos de habitações precárias. Quanto à origem, na clássica oposição entre cru e cozido, que segundo alguns teóricos definiu as civilizações, a cinza quente lembra o fogo feito no chão, com o fim de assar ou cozinhar. Os antecessores dos modernos fogões a gás ou elétricos, feitos de ferro, substituíram os fogões de pedra. Mas entre uns e outros dominou um tipo especial de fogão de correntes, afixadas num tripé ou no teto das cozinhas. Ganchos apropriados serviam para que panelas e chaleiras fossem ali dependuradas, embaixo das quais crepitava o fogo do chão, depois tornado brasa e cinza. Vistos de longe, pelas frestas dos barracos ou ao ar livre, onde também eram feitos, esses fogos teriam dado àquele amontoado de casas a aparência de uma colmeia. Outra explicação para o significado de habitação popular é dada por Antenor Nascentes e acolhida pelo “Dicionário Houaiss”: na campanha de Canudos, os soldados ficaram instalados no Morro da Favela, localidade daquela região assim chamada porque ali havia grande quantidade da planta que leva este nome (favela). Quando voltaram ao Rio de Janeiro, “pediram licença ao Ministério da Guerra para se estabelecerem com suas famílias no alto do Morro da Providência e passaram a chamá-lo Morro da Favela.”
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(autor: Hermínio Bello de Carvalho.)

 

 

SEI LÁ, MANGUEIRA

 

Vista assim do alto
Mais parece um céu no chão
Sei lá…
Sei lá, em Mangueira a poesia
Feito um mar se alastrou
E a beleza do lugar
Pra se entender
Tem que se achar
Que a vida não é só isso que se vê
É um pouco mais
Que os olhos não conseguem perceber
E as mãos não ousam tocar
E os pés recusam pisar

Sei lá, não sei…
Sei lá, não sei…
Não sei se toda a beleza de que lhes falo
Sai tão somente do meu coração
Em Mangueira a poesia
Num sobe e desce constante
Anda descalça ensinando
Um modo novo da gente viver
De sonhar, de pensar e sofrer

Sei lá, não sei…
Sei lá, não sei, não…
A Mangueira é tão grande
Que nem cabe explicação

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(do site: Youtube. do álbum: Cantoria. canção: Sei lá, Mangueira. versos: Hermínio Bello de Carvalho. música: Paulinho da Viola. intérprete: Caetano Veloso. Participação especial: Paulinho da Viola / Chico Buarque. gravadora: Biscoito Fino.)

ESTA PLACA
28 de abril de 2015

Eucanaã Ferraz

(Na foto, o poeta Eucanaã Ferraz.)
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note-se: o nome “eucanaã”, além de iniciar com o pronome da primeira pessoa do singular, “eu”, significa, em hebraico, “terra prometida”, a terra que, segundo a bíblia, deus assegurou aos descendentes de abraão — “canaã”.

esta placa: o nome do poeta: “eucanaã”, que é como se ele mesmo dissesse: “eu, canaã! eu, terra prometida!”

é como se ele próprio afirmasse — afinal, começa com “eu” o nome do poeta — que ele é o que o nomeia: “eu, canaã! eu, terra prometida!”

“canaã”, que é o mesmo que “terra prometida”: lugar de não ser ainda, solo tão só prometido, projeto de geografia para depois de amanhã, para um dia (quem sabe).

o nome do poeta, “terra prometida”, não é o poeta agora, pois ele não é terra que se prometeu a alguém ou a algum feito & a terra que forma o seu nome é uma terra ainda no mundo das promessas, isto é, no mundo futuro.

o poeta não existe no seu nome (o poeta não é terra que se prometeu a alguém ou a algum feito). o nome é uma coisa que vive sem ele.

o nome, terra prometida (“canaã”), se diz sendo o poeta, este nome que o afirma (“eu, canaã!”), mas o que nele — no nome — aponta o poeta é também o que o acusa de não ser o que o nome diz: o poeta não é o que seu nome diz que ele é: terra que se prometeu a alguém ou a algum feito.

o poeta queria viver sem nome, ser o que ele é: ao invés de “eu-canaã”, ao invés de “eu-terra prometida”, ser “eu-ninguém”.

chamarem-no — ei, você! — & o poeta se reconheceria perfeitamente não sendo senão uma coisa livre do que jamais prometeu.

mas à cara, mas no rosto, do poeta está colada esta placa (certas tintas, como as do nome, não se apagam), “eu-canaã”, este engano à beira de “ele-estrada”, esta placa à beira do poeta, que se vê estrada, que se vê caminho & que se faz caminho no andar dos passos.

se terra, como aponta o seu nome, o poeta é terra a terra, como os passos (passo a passo), o poeta é o agora, é o já, é o neste instante, sem vaticínios — sem previsões, sem profecias — de um norte, de um lugar na terra, em que mel & leite jorrassem fáceis, sem dor.

o poeta não existe no nome, não é terra que se prometeu a alguém ou a algum feito. o poeta só existe em chão estreito, em chão delgado, em chão apertado, em chão onde cabem uns versos de amor & morte, palavras ditas no escuro: fósforo (a luz mínima que conseguimos acender com o conhecimento mínimo que alcançamos da existência escura), poço (lugar escuro, sem saída), você (o outro, lugar também escuro, repleto de mistérios).

o poeta é o exilado do nome que carrega, sem ter nunca visto a pátria que mente (a tal “terra prometida”) toda vez que responde: “como é que você se chama?”

o poeta vai aos livros, não encontra a pátria que mente. o poeta pergunta. não está no atlas.

e o infinito infinito: o solo que não é encontrado nos livros, no atlas, a pátria que o  poeta mente, a terra para sempre prometida no nome & que nunca se realizará, a terra que não consta em mapa algum.

a terra está cumprida, a terra está efetivada, a terra está realizada, quando estiver concluída, quando estiver terminada, quando estiver acabada. então, o poeta morrerá ali, por sob a terra, dentro dela, sem ser “eu” (sem ser o que o poeta é), sem “eu” (sem a terra-corpo onde todos pousamos enquanto vivos), puro “não ser”.

sem ser eu, sem eu, não ser mais: eu-canaã.

antes disso, antes de o poeta ir morar por sob a terra, antes de o poeta ir morar dentro dela, que esta sua placa continue a indicar caminhos luminosos a quem quer que a encontre estradafora.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Escuta. autor: Eucanaã Ferraz. editora: Companhia das Letras.)

 

 

ESTA PLACA

 

Como se eu mesmo dissesse,
como se eu próprio afirmasse
(começa com eu, meu nome)
que sou o que me nomeia:

lugar de não ser ainda,
solo tão só prometido,
projeto de geografia
para depois de amanhã.

Meu nome não sou agora,
moro no mundo futuro.
Meu pai me deu esse nome
sem que eu pudesse fazê-lo.

Mal posso escrevê-lo certo
nos documentos que o pedem.
Não existo no meu nome,
coisa que vive sem mim.

Ele se diz sendo eu,
este nome que me afirma,
mas o que nele me aponta
é também o que me acusa

de eu não ser o que ele diz.
Queria viver sem nome,
ser o que sou: eu-ninguém.
Me chamarem — ei, você! —

e eu me reconheceria,
perfeitamente não sendo
senão uma coisa livre
do que jamais prometi.

Mas à cara está colada
(certas tintas não se apagam)
esta placa, este engano
à beira de mim-estrada.

Se terra, sou terra a terra,
o agora sem vaticínios
de um norte em que mel e leite
jorrassem fáceis, sem dor.

Só existo em chão estreito,
nuns versos de amor e morte,
palavras ditas no escuro,
fósforo, poço, você.

Sou o exilado do nome
que carrego, vice-versa,
sem ter nunca visto a pátria
que minto quando me digo

toda vez que respondo:
como é que você se chama?
Vou aos livros, não encontro.
Pergunto. Não está no atlas.

E o infinito infinito.

A terra estará cumprida
quando estiver concluída.
Então, morrerei ali,
sob ela, dentro dela,

sem ser eu, sem eu, não ser.

MINHA LINHA
10 de março de 2015

Calçadão de Copacabana_Linhas

(As linhas tortas, ondulantes, feito o mar, do calçadão de Copacabana, Rio de Janeiro.)
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que o dono da fala que mora em mim, que o dono da fala que me habita, aquele que fala por mim, nunca permita que eu saia da linha: a linha que, quanto mais torta, quanto mais errada, quanto mais imperfeita, quanto mais retorcida, quanto mais em desaprumo, quanto mais curva, mais posso dizer que é a minha.

sempre fui meu próprio mestre, sempre aprendi com as coisas que vi, senti, ouvi, e li, e é sem tristeza, e é com alegria, que conto que não aprendi nada: não me considero pronto: a linha que me pertence, na qual escrevo a minha vida, é a linha que, quanto mais torta, quanto mais errada, quanto mais imperfeita, quanto mais retorcida, quanto mais em desaprumo, quanto mais curva, mais posso dizer que é a minha.

no caminhar dos passos, os passos, com o que colhemos vidafora, com o conhecimento que formamos, não se tornam acertados; muito pelo contrário: os passos continuam, e continuarão, incertos, continuarão a caminhar em linha torta (pelo menos os meus).

o conhecimento acumulado não consegue, nunca, acertar os passos em linha reta: você precisa saber o que eu sei & o que eu não sei mais, o que eu pensei, um dia, saber, e que, hoje, sei que não sei, reconheço que não aprendi.

(você precisa saber o que eu sei e, sobretudo, o que eu não sei mais.)

o dono da fala que mora em mim, o dono da fala que me habita, aquele que fala por mim, imerso em matéria tão complexa quanto a arte de entortar a linha, consegue, desse modo, reconhecer-se na beleza de ser um eterno aprendiz.

imerso em matéria tão complexa quanto a arte de entortar a linha, que nem a morte há de, um dia, endireitar.

(cantar & cantar & cantar a beleza de ser um eterno aprendiz.)

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Modelos vivos. autor: Ricardo Aleixo. editora: Crisálida.)

 

 

MINHA LINHA

 

Que o dono da fala
nunca
permita que eu saia
da linha
a linha que
quanto mais torta
mais posso dizer
que é a minha

Sempre fui
meu próprio mestre
e é sem tristeza
que conto
que ainda não aprendi
nada
não me considero
pronto

Em matéria
tão complexa
quanto a arte
de entortar
a linha
que nem a morte
há de um dia
endireitar

A ORIGEM DA POESIA
25 de fevereiro de 2015

Michelangelo_A criação de Adão

(Na foto, o afresco “A criação de Adão”, do pintor, escultor, arquiteto, o grande gênio italiano Michelangelo Buonarotti.)
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a experiência poética, para mim, é uma experiência existencial.

lendo poesia, interpretando os jogos semânticos criados nos, e entre os, versos, reinvento o homem que sou, e, reinventando-me, promulgo a minha constante atualização como homem, ao me perceber humano & mortal a cada ato, ao me perceber ser pensante & atuante na vida; é disso que vem a poesia.

pelo tanto que a poesia comporta, por tudo que a poesia pode, porque a poesia reinventa o homem em sua trajetória, a origem da poesia em nada difere da origem do homem, uma vez que, sem poesia, não há sequer a possibilidade do humano.

pois que a possibilidade do humano pulsa dentro da prática poética: não sabemos vivenciar o mundo sem poetizá-lo, sem mitificá-lo, sem criar metáforas & saberes fantásticos atribuídos a ele; não damos conta de tanto & criamos a poesia, os mitos & as lendas, que acabam por recriar o mundo.

a ciência define a lua, por exemplo, como um “satélite”. mas a definição “satélite” pouco dá conta das possibilidades & dimensões reais dessa imagem tão suave & concreta. antes, a definição “satélite” detém-se em uma de suas possíveis & talvez a mais pobre faceta, lacrando-a em uma caixa semântica sem comunicação externa. como “satélite”, a lua esquece de suas dimensões sonhadas & não sonhadas. pois, para além de resumir-se a um “corpo celeste que gravita em torno de outro”, a lua é, também, a lua-fruta do poeta chinês (antes de cristo) qu yuan, que pende madura na ponta de um galho, a lua das crendices populares, inusitadamente relacionada a são jorge, meu santo protetor, a deusa-lua selene (na mitologia grega, selene é a personificação da lua), a lua que influi misteriosamente na menstruação das mulheres, a lua que influi, com o seu magnetismo, nos fluxos das marés, a lua que transforma homens em lobos — todas diferentes luas, mas, ainda assim, a mesma lua.

em última instância: a experiência humana é experiência poética, é o modo que temos, que descobrimos, que inventamos, de viver, de experimentar, o mundo que nos cerca.

a poesia é uma condição — e condenação — do homem.

reinventando-me, a poesia me reafirma homem, mortal/ transitório/ inacabado, me reafirma ser pensante & pulsante entre as coisas.

sobretudo o verso é o que pode lançar mundos no mundo.

salve a poesia!
salve a sua existência nas nossas!

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Ensaios radioativos. autor: Márcio-André. editora: Confraria do Vento.)

 

 

A ORIGEM DA POESIA

 

Debater a origem da poesia em nada difere do se debruçar sobre a origem do homem, uma vez que sem poesia não há sequer a possibilidade do humano. Claro que essa afirmação vai contra tudo o que estamos acostumados a ouvir e entender por poesia e por origem, e só pode ser minimamente aceita se questionarmos antes duas posturas que estão no cerne de nossa maneira de pensar: 1) a compreensão evolutiva do espaço, do tempo e da história, 2) a noção, insistentemente fundamentada pela funcionalidade da máquina moderna, de que a arte é uma forma de entretenimento, um meio de expressão ou válvula de escape, fantasia sem importância, presente unicamente para embelezar o mundo.

Essa tradicional visão da instrumentalidade da poesia, da linguagem e da história, nos limita a entrever o mundo como uma série de processos estanques; perspectiva segundo a qual a arte nada teria a ver com a realidade, distante da história, da física, da biologia, da economia e da política — coisas “sérias”. Entretanto, se prestamos um pouco mais de atenção, seremos capazes de vislumbrar uma verdade simples e óbvia, a de que todas as coisas do homem surgem a partir de uma mesma perspectiva, que é o agir do homem enquanto agir-se. Na Grécia antiga, havia um nome para isso: poiesis, princípio pelo qual se dava o ato criador. Não um ato criador qualquer, como entendemos hoje. Naquela época, em que os deuses eram muitos, presentes e irritados, essa criação envolvia, por si só, a condição e a condenação desse homem que, ao criar, criava-se a si mesmo. O que acontece hoje, porém, é que, distante dessa noção remota, a instrumentalidade da linguagem acarreta a instrumentalização do corpo, e o homem perde parte do que é primordial e verdadeiro em sua produção, restando-lhe apenas o sentido da contínua repetição característica dos sistemas.

Certamente, como tradução moderna dessa poiesis clássica, ou de toda potência geradora na camada subcutânea dos ritos de todos os povos, a poesia é, ainda, dentre todas as coisas que o homem produz hoje, a mais grave. Isso porque não é o homem quem cria a poesia, mas a poesia que o cria. Mais: a poesia é a própria ação criadora em si, na qual se atesta o homem ao criar e as coisas ao serem criadas. Vico dizia que no interior da poesia estava a origem das línguas. Não podemos, então, nos referir a ela como uma coisa qualquer entre outras coisas, nem como um artifício retórico que se vale da linguagem como matéria-prima. Pelo contrário, a própria poesia começa por tornar a linguagem possível, agora e sempre. A poesia é a linguagem primogênita de um povo — afirma Heidegger. A poesia é o primeiro e o mais fundamental testemunho do homem, atestação de sua presença e de seu pertencimento à Terra. É através da poesia que ele se desvenda como linguagem e, então, propriamente, homem.

Basta lembrar que os primeiros físicos do Ocidente não perdiam de vista o poético em suas realizações. Seria até mesmo uma traição classificá-los por arquétipos profissionais, quando não havia de fato qualquer separação entre ser poeta, físico, filósofo, matemático — todas essas dimensões se articulavam em apenas uma mesma: a do sagrado. Estes eram homens espantados diante da complexidade da physis que se erguia com seus grandes milagres de tempestades e números. O mesmo espanto que milhares de anos depois surpreende o cientista de hoje diante da imprevisibilidade das partículas e da grandiosidade do cosmos. O sol é do tamanho de um pé humano, disse Heráclito, numa afirmação que, antes de tentar ser uma reflexão “lógica”, é poética e só pode ser poética por estar na regência do sagrado. Não é uma assertiva ingênua, como poderiam sugerir alguns. Heráclito sabia do distanciamento do sol, mas sabia também que o sol, como ainda hoje, encerrava uma medida celeste para a terrenidade do homem. Esse sol adquiria uma dimensão poeticamente moldável como o horizonte de Manuel de Barros, onde se enfiam pregos, ou a florflamejante de Sousândrade. É o espaço onde as coisas são e deixam de ser.

A nós, homens da modernidade, depois do cogito cartesiano, depois da metafísica kantiana, depois do existencialismo de Sartre, depois que o homem expulsou os deuses de seu convívio e se tornou seu próprio deus e oráculo através da metafísica dos sistemas, isso tudo parece distante e absurdo. Resistimos em aceitar o conhecimento científico como uma especulação do mundo tão “fantástica” quanto qualquer outra. A ciência define a lua, por exemplo, como um satélite. Mas a definição “satélite” pouco dá conta das possibilidades e dimensões reais dessa imagem tão suave e concreta. Antes detém-se em uma de suas possíveis e talvez sua mais pobre faceta, lacrando-a em uma caixa semântica sem comunicação externa. Como satélite, a lua esquece de suas dimensões sonhadas e não sonhadas. Pois para além de resumir-se a um “corpo celeste que gravita em torno de outro”, a lua é também a lua-fruta de Qu Yuan, que pende madura na ponta de um galho, ou a lua das crendices populares, inusitadamente relacionada a São Jorge, ou a deusa-lua Selene, ou a lua que influi misteriosamente na menstruação das mulheres e que transforma homens em lobos — todas diferentes luas, mas ainda assim a mesma lua. Os próprios cientistas hoje se dão conta do absurdo que é a realidade. Ilya Prigogine, prêmio Nobel de física, afirmou ser a realidade somente uma das realizações do possível.

O absurdo da poesia não é nada mais que o absurdo do real. A poesia e a arte não surgiram em um momento específico de uma história inventada, mas surgem a cada instante e com ela o homem, pois nisto consiste sua humanidade e cultura — a constante atualização do homem como homem, ao se perceber humano e mortal a cada ato; disso vem a poesia. Ao contrário da visão tradicional à qual estamos acostumados, a arte não é um jogo subjetivo de gênios excêntricos. Não é também exclusividade de uma elite ou de qualquer grupo que detenha seu poder de realização. A arte está em tudo. Sua essência sagrada está na física moderna e clássica, está nas casas e edifícios, nas ruas das cidades, na política real e feita com paixão, na matemática, em todos nós. A poesia é a linguagem primordial de todo espanto e está na base de tudo o que produzimos enquanto ato criador não alienado. A poesia é o que permite a própria realidade, ainda que a realidade, hoje, a esconda sob a rotina massacrante dos sistemas.

CDA EM PROSA
18 de setembro de 2014

CDA em prosa

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CDA: abreviação utilizada para designar o poeta Carlos Drummond de Andrade.

carlos drummond de andrade: um dos poetas da minha vida, um dos maiores da língua portuguesa.

e, como grande poeta, foi um apaixonado pela palavra.

tamanha paixão permitiu, portanto, que o mestre de itabira não só versejasse com a desenvoltura que lhe foi característica como também proseasse com a mesma sofisticação empregada aos versos.

a palavra em drummond: seja prosa, seja poesia: própria, peculiar, autêntica.

a palavra em drummond: seja prosa, seja poesia: ensinamentos para o bem viver & para o bem escrever.

aqui, um tanto de cda em prosa.

beijo todos!
paulo sabino.
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(trechos de entrevistas extraídos do livro: Encontros — Carlos Drummond de Andrade. organização: Larissa Pinho Alves Ribeiro. editora: Azouge Editorial.)

 

 

O poeta é um homem qualquer, apenas municiado de técnicas de expressão verbal para exteriorizar emoções e ideias que são peculiares ao gênero humano em graus diferentes e mais ou menos conscientes. Não é nenhum bicho de sete cabeças. Seu relacionamento com o balconista, com o caixa do banco, o deputado, o médico, é o de todas as pessoas. Meu processo de elaboração poética não tem nada de especial. Parece que foi Paul Valéry quem disse que o primeiro verso é ditado pelos deuses e os demais saem da cabeça da gente. Eu sinto, às vezes, vontade de fazer um poema sobre determinado tema, e um ou mais versos me vêm sem premeditação ou concentração. Os outros se encadeiam num estado de certa efervescência emocional, que pode durar minutos e talvez meia hora, se tanto. Depois, o espírito trabalha mais friamente, mais consciente de que é preciso desenvolver a trama iniciada sem querer. Isso pode ou não ter consequência. Se não tiver, desisto, porque não quero sofrer com um projeto que não conduz a nada. Mas a provocação de um tema, ditada por outra pessoa, pode também conduzir à criação, se ele bole conosco e quando se relaciona com veladas preocupações que guardamos, sem intenção de explorá-las.

*****

 

Eu leio pouco. Releio muito. Releio sempre Machado de Assis, que é uma cachaça na minha vida. Devia dizer o meu uísque, não? Mas não, é a minha cachaça. Releio os poetas franceses, os clássicos portugueses.

*****

 

Não separo autor da obra. Acho isto impossível. Apenas acho que a obra pode e deve circular independentemente da pessoa física do autor.

*****

 

Ao escrever sobre um fato, estou necessariamente “vivendo”, na medida do possível, esse fato ou tentando vivê-lo de acordo com a minha natureza.

*****

 

Não costumo escrever sem emoção. Podem achar que a minha poesia é demasiado fácil, demasiado assim, lacrimogênia; eu produzo emoção, eu quero comover, mas a realidade é que eu não sei fazer poesia pensada, não tenho capacidade para isso.

*****

 

Considero-os [os novos autores] com o máximo de simpatia, porque o espetáculo da vida em movimento e desenvolvimento é sempre bom de se ver. Mas não posso levar a sério as tentativas esporádicas para fazer dos novos um partido literário em luta com os mais velhos. Isso é tolo e não adianta coisa alguma. Querer combater um escritor porque ele já tem vinte anos [de carreira literária] é um índice da maior pobreza: a deficiência da noção de tempo, e da riqueza que pode haver no tempo anulado e sedimentado. Sinto-me perfeitamente moço aos meus quarenta e tantos anos, enquanto vejo por aí alguns rapazes dos mais tenros, vítimas de uma circunspecta mentalidade acadêmica, incapaz de aventura pessoal ou literária, preocupados em organizar a sua glória publicitária e invejando friamente os que se tornaram conhecidos antes deles. Esses novos na realidade são os piores velhos, e esses eu não posso admirar, por maior que seja a minha cumplicidade com a juventude em geral. Desconfio dos que vivem pregando a necessidade de sufocar influências, mas continuam docilmente influídos. Por mim, sempre aconselhei os que me procuram a não continuar a experiência dos mais velhos, e mesmo a reagir contra ela. Mas fazer política em torno desses assuntos, atacar os escritores de gerações anteriores para tomar conta da posição que eles ocupam, como se houvesse uma posição material a conquistar, e a vida literária se fizesse em termos de corrida de cavalos, isso é ridículo e triste.

*****

 

A palavra para mim é tudo. Minha ferramenta de trabalho e o produto desta ferramenta. Não desconfio dela, mas de minha capacidade de usá-la com a propriedade, o rigor e a sutileza que o trabalho literário deve exigir do escritor.

*****

 

Sou inteiramente otimista. Sem deixar de ser pessimista com relação à vida. Uma vida que se passa no meio de bombas nucleares e outras bombas menores, eu acho que não é, realmente, uma coisa muito alegre. Mas a gente vai fazer o possível para viver bem, viver em harmonia, em paz com os outros. E acho que a poesia preenche essa finalidade. A poesia faz bem. Ela cria certo contato, certa conveniência com as pessoas. Desde o namorado para a namorada, como desde o amigo para o inimigo, para a pessoa que recebe uma mensagem fraterna e, talvez, se torne menos inimigo.

*****

 

Sou uma pessoa terrivelmente corajosa, porque não espero nada de coisa nenhuma. Não tenho religião, não tenho partido político. Vivo em paz com a minha consciência.

*****

 

Tenho uma profunda saudade e digo mesmo: no fundo, continuo morando em Itabira, através das minhas raízes e, sobretudo, através dos meus pais e meus irmãos, todos nascidos lá e todos já falecidos. É uma herança atávica profunda que não posso esquecer.

 

TRANS
26 de agosto de 2014

Salgado Maranhão_O mapa da tribo_Capa

(Na foto, a capa do mais novo livro de Salgado Maranhão, “O mapa da tribo”. No meu exemplar, a dedicatória: “Para Paulo Sabino, que vive, sonha e respira poesia. Salgado Maranhão”.)
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trans: prefixo de origem latina que pode significar “através de”, “para além de”, e que engloba, entre outras, a acepção de “mudança”, de “trans-formação”, de “trans-mutação”.

trans: “através de” signos, “através de” determinados símbolos, as mudanças, as trans-formações, as trans-mutações, que operamos caminho afora.

estou grudado à pele, estou colado na superfície, destes signos que me adestram pela noite imêmore, pela noite esquecida, tantas as “noites-trans”, noites de trans-formações, noites de trans-mutações, através dos signos que me adestram.

os signos, os símbolos, que me adestram, que me condicionam, que me habilitam, que me capacitam, pela noite imêmore, esquecida (tantas as “noites-trans”): as palavras, unidades lingüísticas sem as quais não conseguiríamos sobreviver, pois, com elas, organizamos & ordenamos as coisas do mundo para que possamos nele “existir”. o mundo, sem tal ordenamento, sem tais signos, não passaria de um grande caos.

os signos, os símbolos, que me adestram, que me condicionam, que me habilitam, que me capacitam, pela noite imêmore, esquecida (tantas as “noites-trans”): as palavras, matéria do trabalho que realizo através da poesia.

por eles, pelos signos, através deles, me relâmpago, me acendo clarão intenso entre matilhas, me acendo clarão intenso entre agrupamentos ordinários, de pouco valor.

neles, nos signos, através deles, teci minhas ráfias, tramei minhas misérias de luz & sombra (estão nas palavras, na poesia, as minhas dores & as minhas alegrias, os meus dissabores & os meus fascínios).

deles, dos signos, são meus labirintos de safira, dos signos — isto é: das palavras — são meus enredamentos de safira, deles — dos signos — são meus emaranhados de caminhos nos quais me perco, emaranhados de caminhos feitos da pedra preciosa de coloração azul, cor linda & fria.

um dia, uma fênix grafou meu nome em suas asas (fênix: ave lendária, única de sua espécie, e que, por conseguinte, não pode reproduzir-se como todos os outros animais. quando percebe aproximar-se o fim da sua existência, deixa-se arder em um braseiro para, em seguida, renascer das próprias cinzas).

desde então, desde que uma fênix grafou meu nome em suas asas, me encanto (me delicio, me deslumbro, me seduzo, me enfeitiço) apenas, somente, para renascer:

desde então, desde que uma fênix grafou meu nome em suas asas, me en/canto em canto — de poesia — a/penas, a custo das minhas penas & aflições, para renascer:

trans-bordante em cada mim, indo “para além de” cada mim, ultrapassando a minha própria borda:

trans-bordante em cada mim: derramado, entornado, excedido, em cada paulo sabino que renasce “através de” trans-formações, “através de” trans-mutações, que operamos caminho afora.

(trans: prefixo de origem latina que pode significar “através de”, “para além de”, e que engloba, entre outras, a acepção de “mudança”, de “trans-formação”, de “trans-mutação”.)

os signos, os símbolos, que me adestram, que me condicionam, que me habilitam, que me capacitam: as palavras, matéria do trabalho que realizo através da poesia, com quem me relâmpago, com quem me acendo clarão intenso.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: O mapa da tribo. autor: Salgado Maranhão. editora: 7Letras.)

 

 

TRANS

 

Estou grudado à pele
destes signos
………………….que me adestram
pela noite imêmore.

Por eles me relâmpago
entre matilhas; neles
teci minhas ráfias de luz
…………………………………..e sombra; deles
são meus labirintos de safira.

Um dia uma fênix
grafou meu nome
…………………………em suas asas;
desde então me encanto
……………………………………(apenas)
para renascer:

transbordante de mim.

PESSOANA
20 de agosto de 2014

Fernando Pessoa_Jovem

(Na foto, o poeta português Fernando Pessoa.)
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uma poesia, uma apresentação textual, “pessoana”, uma poesia, uma apresentação textual, à maneira de (fernando) pessoa:

quando não sei o que sinto, quando não compreendo o que sinto, quando não consigo apreender um sentimento através da razão, sei que o que sinto é (exatamente) o que sou: só o que não meço não minto.

em mim, só o que não consigo medir, só aquilo que não consigo conter, que não consigo calcular, mensurar, analisar, definir, é o que sou exatamente: pois tudo o que consigo medir, tudo o que consigo conter, que consigo calcular, mensurar, analisar, definir, não é o que eu sou mas a interpretação que faço do que sou, através da razão. sendo o que meço, o que controlo, o que calculo, o que mensuro, o que analiso, o que defino, uma interpretação do que sou & não o que eu sou exatamente, a interpretação que alcanço de mim é já, em si, uma inverdade, uma falsidade, uma mentira:

porque passível de muitos erros. porque toda & qualquer interpretação de toda & qualquer coisa nunca será a “coisa em si”.

a interpretação de um sentimento nunca será exatamente o que o sentimento é.

sem a interpretação, sem o entendimento do sentimento, resta apenas o sentimento em si: sem interpretação, não minto: somente sinto.

mas tão logo identifico, tão logo decodifico, tão logo reconheço, o “não-lugar” onde estou, tão logo identifico, decodifico, reconheço, o tipo de desencontro em que me encontro, decido que ali não fico, decido não mais me encontrar em “determinado” desencontro, pois onde me delimito, pois onde me “determino”, já não sou mais o que sou (só o que não meço, não controlo, não calculo, não mensuro, não analiso, não defino — eu não minto) mas tão-somente me imito.

de ponto a ponto, de lugar a lugar por onde vou, sem planejar, traçando os meus passos ao sabor da simples vontade de caminhar, rabisco o mapa de onde não vou, pois só vou por trilhas que desconheço a rota, só vou por trilhas que não sei onde vão dar, só sigo o mapa que silencia o caminho da mina & do tesouro, ligando de risco em risco, isto é, ligando de perigo em perigo, e também ligando de linha em linha (de versos, de prosa), meus equívocos favoritos (o caminhar a esmo, naturalmente, propõe diversos tipos de perigos, diversos tipos de riscos, de equívocos, de erros, que, com o tempo, acumulo em riscos, acumulo em linhas poéticas, acumulo em linhas de prosa), até que tudo que sou é um acúmulo de escritos, de textos por onde me enxergam os senhores, penetrável labirinto em cujo centro não estou (os textos que escrevo não são exatamente o que eu, paulo sabino, sou) mas apenas me pressinto, apenas me percebo, apenas me desconfio, mero signo, mero fenômeno que representa algo diferente de si mesmo: um simples mito.

e, como todos, eu minto meu mito.

(quando não sei o que sinto, sei que o que sinto é o que sou exatamente, pois não há os erros de avaliações, não há os erros de projeções.)

(e a vida, o caminhar, é pura errância, porque a vida é pura interpretação, a vida é pura linguagem, a vida é pura simbologia…)

(só o que não meço, não controlo, não calculo, não mensuro, não analiso, não defino — eu não minto.)

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Trovar claro. autor: Paulo Henriques Britto. editora: Companhia das Letras.)

 

 

PESSOANA

 

Quando não sei o que sinto
sei que o que sinto é o que sou.
Só o que não meço não minto.

Mas tão logo identifico
o não-lugar onde estou
decido que ali não fico,

pois onde me delimito
já não sou mais o que sou
mas tão-somente me imito.

De ponto a ponto rabisco
o mapa de onde não vou,
ligando de risco em risco

meus equívocos favoritos,
até que tudo que sou
é um acúmulo de escritos,

penetrável labirinto
em cujo centro não estou
mas apenas me pressinto

mero signo, simples mito.

A CERTEZA DE UMA INCERTEZA
27 de maio de 2014

Vandeco, comigo, nas Paineiras

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hoje, que a noite pulsa tranqüila dentro do meu quarto, busco a tranqüilidade de coisa nenhuma, de coisa nenhuma porque coisa inerte, coisa inanimada, tranqüilidade como a que observamos nas pedras: sua constituição maciça, inteiriça, inerte, inanimada, silenciosa, parada no tempo, pregada ao chão.

busco a tranqüilidade de coisa nenhuma, inerte, inanimada, por sentimentos de cores apagadas: apesar de sentimentos coloridos, o colorido é sem cor, como o colorido da tranqüilidade pétrea: pois que a tranqüilidade da rocha, um ente inanimado, só exterior, sua tranqüilidade parada no tempo, pregada ao chão, gera, nela mesma, sentimentos de cores apagadas.

(tranqüilidade de coisa nenhuma só pode gerar sentimentos de cores apagadas.)

este sol que mina, este sol que se espalha, em mim, sol frio (de sentimentos de cores apagadas), este sol que se propaga por todo o resto (por tudo o que enxergo como mundo), faz-me sentir a necessidade inútil ao mundo, à humanidade — sou incapaz de evitar catástrofes nem, ao menos, de dar por elas.

a necessidade inútil ao mundo, à humanidade: não possuo o poder de decisões importantes no tabuleiro político & econômico mundano, não posso salvar vidas efetivamente, não posso assinar decretos nem leis em prol da melhoria das condições existenciais do bicho homem.

mas posso, ao menos, escrever, posso, ao menos, apresentar estas linhas, aos senhores, como faço regularmente.

compreendo, mais do que nunca, que a vida é, e sempre será, uma parte do desconhecido, uma parte do inalcançável, do impenetrável (feito tranqüilidade de pedra), assentada (a tal parte do desconhecido de que se constitui a existência) em tudo que resta & rasteja.

a certeza de uma incerteza insolúvel, incerteza sem solução: a morte? a vida? deus? o universo?

a certeza de uma incerteza insolúvel, o ponto com nó, o ponto sempre embaraçado: a morte? a vida? deus? o universo?

portanto, almejar a viagem de poder debruçar à janela (já que a mim não me foi dado o poder de direção do mundo nem tampouco o poder de direção do universo), condutor-passageiro fervoroso do caminho a ser vislumbrado, condutor-passageiro fervoroso (que exala grande calor, que denota intensidade) do caminho que sigo trilhando, dia-a-dia, com mãos & pés.

em nome dela, da vida que se renova em cada cova, em cada fenda aberta (seja para o plantio da semente de algo que florescerá, seja para o sepultamento de algo que não nos serve mais), minha poesia de navio, de barco, minha poesia itinerante, errática, minha poesia destinada a navegar sempre; em nome dela, da vida que se renova em cada cova, em cada fenda aberta, minha poesia vela, cuida, zela.

em nome dela, da vida que se renova em cada cova, em cada fenda aberta (seja para o plantio da semente de algo que florescerá, seja para o sepultamento de algo que não nos serve mais), minha poesia de navio, de barco, minha poesia “vela”, minha poesia peça de tecido usada para a propulsão eólica da embarcação em que sigo singrando os mares da vida, eu, o antinavegador de moçambiques, goas, calecutes.

beijo todos!
paulo sabino.
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(Autor: Paulo Sabino.)

 

 

A CERTEZA DE UMA INCERTEZA

 

Hoje, que a noite pulsa tranqüila
Dentro do meu quarto,
Busco a tranqüilidade de coisa nenhuma, inerte, inanimada,
Por sentimentos de cores apagadas.
Este sol que mina em mim,
Propagando-se por todo o resto,
Faz-me sentir a necessidade inútil
Ao mundo, à humanidade —
Sou incapaz de evitar catástrofes
Nem, ao menos, de dar por elas.
Compreendo, mais do que nunca,
Que a vida é e sempre será
Uma parte do desconhecido,
Assentada em tudo que resta e rasteja.
A certeza de uma incerteza
Insolúvel, o ponto com nó.
Portanto, almejar a viagem
De poder debruçar à janela,
Condutor-passageiro fervoroso,
Do caminho a ser vislumbrado.