O MENINO POETA
10 de maio de 2015

Paulo Sabino_Azul_Búzios
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ventos líricos me sopraram a existência do menino poeta.

o menino poeta — dizem os ventos — habita as palavras que compõem os versos, é o responsável pelos jogos semânticos & pelas brincadeiras & peripécias estilísticas entre signos.

ventos líricos me sopraram que o menino poeta percorre os quatro cantos do mundo, peralta, irrequieto, traquinas.

o menino poeta — não sei onde está.

procuro dali, procuro de lá. tem olhos azuis ou tem olhos negros? parece jesus ou índio guerreiro?

mas onde andará o menino poeta, que ainda não o vi? nas águas de lambari, em minas gerais? nos reinos do canadá, lá em cima, no norte das américas?

onde andará o menino poeta, que ainda não o vi? estará no berço, brincando com os anjos? estará na escola, travesso, rabiscando bancos?

o vizinho, ali, disse que, acolá, existe um menino com dó dos peixinhos. um dia, o menino pescou — pescou por pescar, não pretendia — um peixinho de âmbar, coberto de sal (âmbar: resina fóssil, de cor entre o acastanhado & o amarelado, utilizada na fabricação de objetos ornamentais). depois, o menino soltou o peixinho de âmbar outra vez nas ondas.

ai, que curiosidade! será esse o menino poeta? será que não? que será esse menino? que não será?…

certo peregrino — passou por aqui — conta que um menino, das bandas de lá, furtou uma estrela. a estrela, por causa do furto, caiu no choro; o menino, por tê-la furtado, ria. porém, de repente, o menino, tão lindo!, vendo o choro da estrela, subiu pelo morro & tornou a pregá-la, com três pregos de ouro, nas saias da lua.

ai, que curiosidade! será esse o menino poeta? será que não? que será esse menino? que não será?…

procuro daqui, procuro de lá. o menino poeta, habitante das palavras que compõem os versos, responsável pelos jogos semânticos & pelas brincadeiras & peripécias estilísticas entre signos, quero ver de perto.

quero ver de perto — o menino poeta — para me ensinar as bonitas coisas do céu & do mar. quero ver de perto — o menino poeta — para me ensinar a voar, cada vez mais alto, e a mergulhar, cada vez mais fundo, nos braços do meu bem maior: a poesia.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Melhores poemas. autora: Henriqueta Lisboa. seleção: Fábio Lucas. editora: Global.)

 

 

O MENINO POETA

 

O menino poeta
não sei onde está.
Procuro daqui
procuro de lá.
Tem olhos azuis
ou tem olhos negros?
Parece Jesus
ou índio guerreiro?

Tra-la-la-la-li
tra-la-la-la-lá

Mas onde andará
que ainda não o vi?
Nas águas de Lambari,
nos reinos do Canadá?
Estará no berço
brincando com os anjos,
na escola travesso
rabiscando bancos?

O vizinho ali
disse que acolá
existe um menino
com dó dos peixinhos.
Um dia pescou
— pescou por pescar —
um peixinho de âmbar
coberto de sal.
Depois o soltou

outra vez nas ondas.
Ai! que esse menino
será, não será?…
Certo peregrino
— passou por aqui —
conta que um menino
das bandas de lá
furtou uma estrela.

Tra-la-li-la-lá.

A estrela num choro
o menino rindo.
Porém de repente
— menino tão lindo! —
subiu pelo morro
tornou a pregá-la
com três pregos de ouro
nas saias da lua.

Ai! que esse menino
será, não será?

Procuro daqui
procuro de lá.
O menino poeta
quero ver de perto
quero ver de perto
para me ensinar
as bonitas cousas
do céu e do mar.

PAISAGEM COM GRÃO DE AREIA
22 de abril de 2015

Areia & Mar
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o homem, para viver por entre as coisas, antes, precisa pensar as coisas.

o homem, para viver por entre as coisas, precisa nomeá-las, ordená-las, classificá-las, conceituá-las, a fim de que o mundo não lhe seja um completo caos.

o mundo é mudo. o grão de areia não se diz grão de areia, o lago não se diz lago, o mar não se diz mar, o tempo não se sabe tempo: as coisas, no mundo, apenas estão, as coisas apenas são, sem questionar, sem perguntar, sem pressupor, as coisas apenas seguem o seu caminho de coisas.

lagos & rios & mares & pedras não se pensam “fundo” ou “raso”, “grande” ou “pequeno”, “belo” ou “feio”, “rápido” ou “devagar”, “seco” ou “molhado”: somos nós quem pensamos as coisas desse modo, somos nós quem precisamos conceituar, classificar, categorizar, as coisas no mundo mudo, na tentativa de apreendê-las, de ordená-las, de compreendê-las.

o grão de areia ter caído no parapeito da janela é uma aventura nossa, aventura de quem assistiu à queda, aventura de quem imaginou a cena, e não de quem a vivenciou (o grão de areia): para ele é o mesmo que ter caído em qualquer coisa, sem a certeza de já ter caído, ou de ainda estar caindo.

da janela avista-se uma bela paisagem, mas a paisagem não vê a si mesma. existe, neste mundo, sem cor & sem forma, sem som, sem cheiro, sem dor (“cor”, “forma”, “som”, “cheiro”, “dor”: conceitos que criamos para as coisas no mundo, na tentativa de apreendê-las, apreendê-las a fim de vivenciá-las).

o fundo do lago não possui fundo, nem margem as suas margens, e sua água, nem molhada nem seca (“fundo”, “superfície”, “margem”, “meio”, “molhado”, “seco”: conceitos que criamos para as coisas no mundo, na tentativa de apreendê-las, apreendê-las a fim de vivenciá-las).

nem singular nem plural a onda que murmureja surda ao seu próprio murmúrio, ao redor de pedras nem grandes nem pequenas (“singular”, “plural”, “murmúrio”, “silêncio”, “grande”, “pequeno”: conceitos que criamos para as coisas no mundo, na tentativa de apreendê-las, apreendê-las a fim de vivenciá-las).

e tudo isso por debaixo de um céu, por natureza, inceleste, no qual o sol se põe, na verdade, não se pondo, e se oculta, não se ocultando, atrás de uma nuvem insciente, nuvem que oculta o sol sem a consciência de ocultá-lo (“celeste”, “terreno”, “aquático”, “nascente”, “poente”, “ocultar”, “revelar”: conceitos que criamos para as coisas no mundo, na tentativa de apreendê-las, apreendê-las a fim de vivenciá-las).

o vento varre a nuvem, onde o sol se ocultava, sem outra razão que a de ventar.

passa um segundo. dois segundos. três segundos. mas são três segundos somente nossos, porque o tempo não se sabe tempo (“passado”, “presente”, “futuro”, “ontem”, “hoje”, “amanhã”, “dia”, “mês”, “ano”: conceitos sem os quais o bicho homem não conseguiria fazer valer a sua existência no mundo).

“o tempo correu como um mensageiro com notícias urgentes”: a sentença é só um símile nosso, a sentença é só uma metáfora, criada à nossa imagem & semelhança: uma personagem inventada (o tempo mensageiro), a sua pressa imposta (o tempo é sempre o mesmo a passar, não corre nem desacelera), e a notícia inumana (o tempo não é mensageiro de coisa alguma nem tampouco carrega notícia — ele não nos fala, ele não nos escuta, ele não nos enxerga: alheio a tudo & todos).

o tempo passa, parado no tempo, para que passemos, transitórios & perecíveis.

o mundo é mudo. e a experiência humana, um grande delírio detido em palavras.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Poemas. autora: Wislawa Szymborska. tradução: Regina Przybycien. editora: Companhia das Letras.)

 

 

PAISAGEM COM GRÃO DE AREIA

 

Nós o chamamos de grão de areia.
Mas ele mesmo não se chama de grão, nem de areia.
Dispensa um nome
geral, particular
passageiro, permanente,
errado ou apropriado.

De nada lhe serve nosso olhar, nosso toque.
Não se sente olhado nem tocado.
E ter caído no parapeito da janela
é uma aventura nossa, não dele.
Para ele é o mesmo que cair em qualquer coisa
sem a certeza de já ter caído,
ou de ainda estar caindo.

Da janela há uma bela vista para o lago,
mas a vista não vê a si mesma.
Existe neste mundo
sem cor e sem forma,
sem som, sem cheiro, sem dor.

Sem fundo o fundo do lago
e sem margem as suas margens.
Nem molhada nem seca a sua água.
Nem singular nem plural a onda
que murmureja surda ao seu próprio murmúrio
ao redor de pedras nem grandes nem pequenas.

E tudo isso sob um céu por natureza inceleste,
no qual o sol se põe na verdade não se pondo
e se oculta não se ocultando atrás de uma nuvem
…………………………………………………………………..[insciente.
O vento a varre sem outra razão
que a de ventar.

Passa um segundo.
Dois segundos.
Três segundos.
Mas são três segundos somente nossos.

O tempo correu como um mensageiro com notícias
…………………………………………………………………..[urgentes.
Mas isso é só um símile nosso.
Uma personagem inventada, a sua pressa imposta
e a notícia inumana.

NOVÍSSIMO ORFEU
11 de novembro de 2014

Orpheus (1894)_Károly Ferenczy (Húngaro)

(Na foto, o quadro Orpheus, 1894, do pintor húngaro Károly Ferenczy.)
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 para Murilo, novíssimo Orfeu, que chegará ao mundo em dezembro

 

 

(do: Dicionário da mitologia grega e romana. autor: Pierre Grimal. editora: Bertrand Brasil.)

 

 

ORFEU. Orfeu é unanimemente reconhecido como filho de Eagro (v. Eagro). As tradições divergem no que respeita ao nome da mãe: passa, mais vulgarmente, por filho de Calíope, que detém a mais alta dignidade entre as Musas; mas por vezes, em vez desta é referida Menipe, filha de Tâmiris. Orfeu é de origem trácia. Como as Musas, habita perto do Olimpo, onde é geralmente representado, cantando, vestido com os trajos dos Trácios. Os mitógrafos fazem dele o rei desta região: dos Bístones, dos Odrísios e dos Macedónios, etc. Orfeu é o Cantor por excelência, o músico e o poeta. Toca lira e “cítara”, instrumento cuja invenção lhe é atribuída. Quando esta honra lhe é negada, admite-se que foi ele que aumentou o número de cordas do instrumento, que não seriam inicialmente mais do que sete e passaram a ser nove, “tantas quanto as Musas”. Seja como for, Orfeu sabia cantar melodias tão suaves que até as feras o seguiam, as árvores e as plantas se inclinavam na sua direcção e os homens mais rudes se acalmavam.

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novíssimo orfeu:

vou onde a poesia me chama, vou onde a poesia me clama.

o amor é minha biografia, o amor é minha história de vida, texto de argila & fogo.

o amor: texto de argila & fogo: de argila, pois, segundo a mitologia cristã, o homem veio do barro, veio da terra, e para a terra retornará, e é na terra que o homem constitui a sua história, a sua biografia; de fogo, elemento que existe a partir da combustão de um corpo, que desprende luz & calor, corpo que arde, que queima, que aquece, que ilumina.

aves contemporâneas, pássaros dos dias atuais, largam do meu peito, alçando vôos & levando recado aos homens, meus irmãos na terra: o amor é dos sentimentos o mais nobre; belezas nasceram para serem complementares & não excludentes; apesar dos pesares, a vida vale o sorriso & o brilho no olhar.

o mundo alegórico se esvai, o mundo repleto de simbolismo & elementos figurados se dissipa, o mundo recheado de mitologias desfalece, o uso da razão & a ciência derrubam as alegorias mundanas & as crenças fantásticas, fica esta substância de luta, real, permanece esta matéria de batalha que travamos por uma existência mais frutífera, menos tacanha, de onde a eternidade se descortina, de onde o tempo se revela.

a estrela azul familiar vira as costas, foi-se embora…

(estrela azul: estrela de luminosidade intensa, de temperatura altíssima, com massa que pode ser até 18 vezes maior que a massa solar, associada, a sua aparição no céu, a épocas de bonança, a momentos de prosperidade, a tempos de mansuetude.)

a estrela azul conhecida, familiar, disse adeus…

mesmo assim, mesmo sem a estrela azul familiar no céu, ainda que esta não mais aponte épocas de bonança, momentos de prosperidade, tempos de mansuetude, a poesia, musa maior na vida, sopra onde quer.

apesar dos pesares, apesar da substância de luta de onde se descortina a eternidade, de onde a realidade se revela, a poesia sopra o seu vento lírico, a poesia sopra o seu vento onírico, a poesia sopra o seu vento alegórico, a fim de que a vida vivida ganhe um brilho ainda mais vívido, ainda mais colorido, ainda mais definido.

salve o sopro sortido & sagaz da poesia!

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Antologia poética. autor: Murilo Mendes. editora: Cosac Naify.)

 

 

NOVÍSSIMO ORFEU

 

Vou onde a Poesia me chama.

O amor é minha biografia,
Texto de argila e fogo.

Aves contemporâneas
Largam do meu peito
Levando recado aos homens.

O mundo alegórico se esvai,
Fica esta substância de luta
De onde se descortina a eternidade.

A estrela azul familiar
Vira as costas, foi-se embora…
A poesia sopra onde quer.

DISTRIBUIÇÃO DA POESIA: CONVITE PARA A ILHA
4 de junho de 2014

Ilha Maldivas

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mel silvestre tirei das plantas, sal tirei das águas, luz tirei do céu.

escutai, meus irmãos: poesia tirei de tudo para oferecer à vida, para oferecer à força criadora que move este mundo.

não tirei ouro da terra nem sangue de meus irmãos.

estalajadeiros, que são os donos de estalagem, não me incomodeis.

bufarinheiros, que são vendedores ambulantes de bufarinhas (coisas bobas, insignificantes), e banqueiros, sei fabricar distâncias para vos recuar.

a vida está malograda, está fracassada, está malsucedida, e eu creio nas mágicas da força criadora do universo.

os galos não cantam, a manhã não raiou: a vida está malograda, está fracassada, está malsucedida.

vi navios irem & voltarem (não completando a sua viagem), vi infelizes irem & voltarem (não completando a sua viagem), vi ziguezagues na escuridão: a vida está malograda, está fracassada, está malsucedida.

capitão-mor, governador de capitania hereditária, homem de conhecimentos, onde é o congo? me diz, capitão-mor, governador de capitania hereditária, homem de conhecimentos, onde é a ilha de são brandão?

capitão-mor, governador de capitania hereditária, que noite escura!

(os galos não cantam, a manhã não raiou: a vida está malograda, está fracassada, está malsucedida.)

uivam molossos, uivam cães de aspecto robusto & ameaçador, na escuridão.

ó indesejáveis, ó indivíduos cuja presença não é desejável por mostrarem-se perniciosos aos interesses dos demais irmãos de terra, qual o país, qual o país que desejais?…

(os indesejáveis só sabem denegrir a vida, os indesejáveis só sabem obscurecer os caminhos dos demais irmãos de terra.)

mel silvestre tirei das plantas, sal tirei das águas, luz tirei do céu: só tenho poesia para vos dar.

abancai-vos, meus irmãos!

para vos dar, só tenho: poesia: e um convite para a ilha:

não digo em que signo se encontra esta ilha, não falo sob que forma avista-se a ilha, mas ilha mais bela não há no alto-mar.

o peixe cantor existe por lá.

ao norte dá tudo: baleias azuis, o ouriço vermelho, o boto voador.

a leste da ilha há o gêiser gigante (gêiser: fonte termal que lança no ar jatos de água ou vapor em intervalos regulares), deitando água morna. quem quer se banhar?

há plantas carnívoras sem gula, que amam & não devoram.

ao sul o que há? há rios de leite, há terras bulindo, mulheres nascendo, raízes subindo, lagunas tremendo, coqueiros gemendo, areias se entreabrindo.

a oeste o que há? não há o ocidente nem coisa de lá: a terra está nova: devemos olhar o sol se elevar.

convido os rapazes & as raparigas para ver esta ilha, correr nos seus bosques, nos vales em flor, nadar nas lagunas, brincar de esconder, dormir no areal, caçar os amores que existem por lá.

o sol da meia-noite, a aurora boreal, o cometa de halley, as moças & moços nativos, podeis desfrutar.

partamos todos, enquanto esta ilha não vai afundar, enquanto não chegam guerreiros das terras, enquanto não chegam piratas do mar.

(os indesejáveis só sabem denegrir a vida, os indesejáveis só sabem obscurecer os caminhos dos demais irmãos de terra.)

as noites! que noites de imenso luar! podeis, todos vós, no céu da ilha, contemplar constelações: a ursa maior, a lira, a órion, a luz de altair, estrelas cadentes correndo no espaço, a estrela dos magos — a tão célebre estrela de belém, que guiou os três reis magos do ocidente até o recanto onde nascera o redentor — parada no ar.

que noites de imenso luar!

e as sestas? e as horas de descanso após o almoço? que sestas! a brisa é tão mansa! há redes debaixo dos coqueirais, sanfonas tocando, o sol se encobrindo, as aves cantando canções de ninar.

partamos todos, que as noites de escuro não tardam, não demoram, a chegar na ilha.

(partamos todos, enquanto não chegam guerreiros das terras, enquanto não chegam piratas do mar.)

partamos todos! mas onde fica a ilha? em que parte exatamente do oceano? então que é da ilha, da ilha mais bela que há pelo mar & onde se pode sonhar com os amores que nunca na vida nos hão de chegar?

o jeito é partir em busca desta ilha, o jeito é partir em busca do meu paraíso aqui na terra, o jeito é partir em busca do recanto que desejo a mim, que desejo ao meu bem-estar, sem mapa ou bússola para orientar. simplesmente partir, singrando os mares da vida.

eu, o antinavegador de moçambiques, goas, calecutes.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Melhores poemas. seleção: Gilberto Mendonça Telles. autor: Jorge de Lima. editora: Global.)

 

 

DISTRIBUIÇÃO DA POESIA

 

Mel silvestre tirei das plantas,
sal tirei das águas, luz tirei do céu.
Escutai meus irmãos: poesia tirei de tudo
para oferecer ao Senhor.
Não tirei ouro da terra
nem sangue de meus irmãos.
Estalajadeiros não me incomodeis.
Bufarinheiros e banqueiros
sei fabricar distâncias
para vos recuar.
A vida está malograda,
creio nas mágicas de Deus.
Os galos não cantam,
a manhã não raiou.
Vi os navios irem e voltarem.
Vi os infelizes irem e voltarem.
Vi homens obesos dentro do fogo.
Vi ziguezagues na escuridão.
Capitão-mor, onde é o Congo?
Onde é a ilha de São Brandão?
Capitão-mor que noite escura!
Uivam molossos na escuridão.
Ó indesejáveis, qual o país,
qual o país que desejais?
Mel silvestre tirei das plantas,
sal tirei das águas, luz tirei do céu.
Só tenho poesia para vos dar.
Abancai-vos meus irmãos.

 

 

CONVITE PARA A ILHA

 

Não digo em que signo se encontra esta ilha
mas ilha mais bela não há no alto-mar.
O peixe cantor existe por lá.
Ao norte dá tudo: baleias azuis,
o ouriço vermelho, o boto voador.
A leste da ilha há o Gêiser gigante
deitando água morna. Quem quer se banhar?
Há plantas carnívoras sem gula que amam.
Ao sul o que há? — há rios de leite,
há terras bulindo, mulheres nascendo,
raízes subindo, lagunas tremendo,
coqueiros gemendo, areias se entreabrindo.
A oeste o que há? — não há o ocidente nem coisa de lá:
a terra está nova: devemos olhar o sol se elevar.
Convido os rapazes e as raparigas
pra ver esta ilha, correr nos seus bosques,
nos vales em flor, nadar nas lagunas,
brincar de esconder, dormir no areial,
caçar os amores que existem por lá.
O sol da meia-noite, a aurora boreal,
o cometa de Halley, as moças nativas,
podeis desfrutar. Meninas partamos
enquanto esta ilha não vai afundar,
enquanto não chegam guerreiros das terras,
enquanto não chegam piratas do mar.
As noites! Que noites de imenso luar!
Podeis contemplar a Ursa maior,
A Lira, a Órion, a Luz de Altair,
estrelas cadentes correndo no espaço,
a estrela dos magos parada no ar.
Que noites, meninas, de imenso luar!
E as sestas? Que sestas! A brisa é tão mansa!
Há redes debaixo dos coqueirais,
sanfonas tocando, o sol se encobrindo,
as aves cantando canções de ninar.
Meninas partamos que as noites de escuro
não tardam a chegar. Então que é da ilha,
da ilha mais bela que há pelo mar
e onde se pode sonhar com os amores
que nunca na vida nos hão de chegar?

SONETO DO DESMANTELO AZUL
8 de fevereiro de 2014

Paulo Sabino_Desmanteladamente azul

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o desmantelo azul: o azul que desaba, que despenha, que desmorona, por sobre tudo & todos.

azul, a cor do céu, azul, a cor do mar.

portanto: azul: a cor do meu delírio, a cor do meu fascínio.

por isso, por ser azul a cor do meu delírio, a cor do meu fascínio, pintei de azul os meus sapatos, por não poder pintar as ruas, e, depois, vesti meus gestos insensatos, gestos descabidos, de azul, e colori as minhas mãos & as tuas.

para extinguir, em nós, o azul ausente, para dissipar a ausência de azul em nós, e aprisionar as coisas gratas no azul, enfim, nós derramamos simplesmente azul sobre os vestidos & as gravatas.

e, afogados em nós (no nosso delírio, no nosso fascínio, por azul), nem nos lembramos que, no excesso que havia em nosso espaço (excesso de azul), pudesse haver, de azul, também cansaço.

cansaço & ânimo, tristeza & alegria, dor & deleite: tudo cabe no desmantelo azul de que nos revestimos.

e, perdidos de azul, nos contemplamos & vimos que, entre nós, nascia um sul — um hemisfério todo nosso — vertiginosamente azul.

azul, a cor do céu, azul, a cor do mar: azul: a cor do meu delírio, a cor do meu fascínio.

que luza a luz azul!

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Melhores poemas. autor: Carlos Pena Filho. seleção: Edilberto Coutinho. editora: Global.)

 

 

SONETO DO DESMANTELO AZUL

 

Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori as minhas mãos e as tuas.

Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.

ETERNO EM MIM
31 de janeiro de 2014

Ipanema_Rio de Janeiro_Brasil

Paulo Sabino_Pés no mar

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não há nada no mundo que possa fazer: eu deixar de cantar (o canto da poesia) ou deixar de gostar de você (você: o céu, o mar, o sol, a pessoa, a pedra, o bicho, o mato: a vida).

não há nada no mundo — nem nunca haverá.

de mais alto (feito o céu) ou mais fundo (feito o mar): o meu canto (de poesia) é meu céu & você (vida) é meu mar: céu & mar, poesia & vida: duas coisas que, dentro de mim, não podem ter fim.

céu & mar, poesia & vida: dois azuis no mesmo azul (apesar de dois azuis distintos, um, o do céu, e o outro, o do mar, os dois azuis estão contidos, a quem os observa, num mesmo plano azul, como se interligados — o horizonte).

céu & mar, poesia & vida: dois azuis no mesmo azul: meu horizonte sem nuvem nem monte que possa atrapalhar tudo aquilo que vislumbro à minha frente & que desejo alcançar.

em mim o eterno é música (a música dos versos de um poema, a música dos versos de um poema-canção) & amor (pelo céu, pelo mar, pelo sol, pela pessoa, pela pedra, pelo bicho, pelo mato: pela vida).

eu deixar de cantar (o canto da poesia) ou deixar de gostar de você (vida): não há nada, no mundo, que possa fazer.

não há nada no mundo — nem nunca haverá.

em mim, o eterno é música & amor.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do encarte do cd: Âmbar. gravadora: EMI. artista: Maria Bethânia. autor dos versos: Caetano Veloso.)

 

 

ETERNO EM MIM

 

Não há nada no mundo que possa fazer
Eu deixar de cantar
Ou deixar de gostar de você
Não há nada no mundo, nem nunca haverá
De mais alto ou mais fundo
O meu canto é meu céu
E você é meu mar
Duas coisas que dentro de mim
Não podem ter fim
Dois azuis no mesmo azul
Meu horizonte sem nuvem nem monte
Em mim o eterno é música e amor

Eu deixar de cantar
Ou deixar de gostar de você
Não há nada no mundo que possa fazer
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(do site: Youtube. áudio extraído do cd: Âmbar. gravadora: EMI. canção: Eterno em mim. artista & intérprete: Maria Bethânia. autor da canção: Caetano Veloso.)

LUZ DO SOL, LUZ DA RAZÃO
4 de setembro de 2013

Luz do sol

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(para o Otto, meu anjo da guarda, que, hoje, completa os seus 7 anos)

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luz do sol, que a folha traga & traduz: a folha traga a luz solar & a traduz em verde novo (a renovação do seu verde, de tempos em tempos), em graça, em vida, em força (o fortalecimento do ser através da luz que é tragada & traduzida em verde novo), em luz (a quem sabe mirar & ad-mirar, robusta, sadia, vigorosa, a beleza natural).

por isso, e mais, tu, sol, é que me alegras. a mim & ao mundo, pois sou eu, paulo sabino, parte integrante da vida mundana.

encaro-te de frente, sol, e, embora tua luz me cegue, ergo meus olhos acima & recebo-a a flux, isto é, recebo a tua luz em grande quantidade.

sonhar é para a noite: quando se está a dormir, sem consciência de si & do entorno: sonhar é como morrer.

sonhar é para a noite: mas para o dia, ver!

sim, ver com ambos os olhos, com ambos devassar os astros & os deuses sobre o altar em que residem, com ambos os olhos devassar, ver onde firmamos os pés & erguemos nossas mãos.

e quer nos montes altos, quer nos terrenos chãos, a terra é sempre amiga se, à luz da aurora, à luz do alvorecer, a terra se erguer.

pois, à luz da aurora, à luz do alvorecer, conseguimos bem ver em que tipo de terreno pisamos — se perigoso porque movediço, ou se seguro porque sólido.

e quer nos montes altos, quer nos terrenos chãos, é sempre bom viver se, ao amor, a vida se erguer.

pois, à luz do amor, à luz de sentimento tão nobre, a vida entrega-se pródiga, a vida permite-se longânime, a vida propõe-se elevada & inventiva.

em toda a parte, as ondas desse mar, infinito no horizonte, por mais que andemos longe, nos podem embalar se tivermos o mar conosco, dentro de nós.

em toda a parte, o peito sente brotar a flux, sente brotar em profusão, e sempre & de maneira farta, a vida…

vida: calor & luz!

nos seixos dessas praias, se o sol lá lhes bater, num átomo de areia, deus pode aparecer: deus pode erguer-se à luz solar: pois se considerarmos real a existência de deus e, a partir da sua existência, a sua presença em todas as coisas (como dizem os que nele crêem), então deus é flores & árvores & mares & rios & céus & bichos & gentes. se assim o é, então intitulemo-lo flores & árvores & mares & rios & céus & bichos & gentes.

desprezos para a terra, como se ela fosse menos que o paraíso oferecido nas alturas?! também a terra é céu! afinal, para quem nele crê, deus está em tudo que há no mundo, deus está nas coisas terrenas (nas flores nas árvores nos mares nos rios nos céus nos bichos nas gentes); e a terra que pisamos, em verdade, está suspensa no espaço sideral, a terra é um componente estelar se avistada de fora (se observada da lua, por exemplo).

a terra mora no céu.

e quem, lá desse espaço infinito denominado sideral, vir a terra brilhar ao longe, dirá que é paraíso & um éden a sorrir.

(o melhor lugar do mundo é aqui & agora. os momentos felizes não estão escondidos nem no passado & nem no futuro.)

há quem propale que este mundo é ruim, nocivo, porque não moramos junto às estrelas no céu; não morando junto às estrelas, para alguns, vivemos “embaixo”.

mas a terra, que é nossa morada, esta habita o céu! portanto: o que é exatamente “embaixo”? e, ainda que consideremos morar “embaixo”, que tem estar “embaixo”, qual seria o problema de morar “embaixo” de alguma coisa?

ninguém nos condenou à eterna noite, ninguém nos condenou à eterna escuridão, ninguém nos condenou à eterna sombra, ninguém!

a luz solar tudo alcança!

não! não há “céu” & “inferno”: divino é quanto é! divino é o existir!

para que a rocha brilhe, basta que o sol lhe dê a sua luz. basta que o sol beije a lua para que ela, apagada nas alturas, se transforme em sol também.

e a escuridão da nossa alma, as trevas que nos povoam, a nossa cerração, como se desbarata, como se dissipa, como se afasta, com a aurora da razão!

a razão crítica pesa & pondera. a razão crítica se informa & estuda. é a razão crítica que nos faz ser o lobo do lobo do homem. é a razão crítica que nos impede de terminar ovelhas no bolso de um pastor.

e se a razão, surgindo, esclareceu, clareou, a nossa alma, também tu, sol, no espaço, surges como razão do céu azul que avistamos na festa das retinas.

por isso é que me alegras o coração, ó luz!

por isso vos estimo, luzes maiores da minha existência: tu, sol, e tu, razão!

(luz, quero luz! mais, quero mais! nem que todos os barcos recolham ao cais, que os faróis da costeira me lancem sinais! arranca, vida! estufa, vela! me leva, leva longe, longe, leva mais!)

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Antologia. autor: Antero de Quental. organização: José Lino Grünewald. editora: Nova Fronteira.)
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LUZ DO SOL, LUZ DA RAZÃO

 

Tu, sol, é que me alegras!
A mim e ao mundo. A mim…
Que eu não sou mais que o mundo,
Nem mais que o céu sem fim…

Nem fecho os olhos baços
Só porque os fere a luz…
Ergo-os acima — e embora
Cegue, recebo-a a flux!

Crepúsculos são sonhos…
E sonhos é morrer…
Sonhar é para a noite:
Mas para o dia, ver!

Sim, ver com os olhos ambos,
Com ambos devassar
Os astros n’essa altura,
E os deuses sobre o altar!

Ver onde os pés firmamos,
E erguemos nossas mãos!
E quer nos montes altos,
Quer nos terrenos chãos,

É sempre amiga a terra
E é sempre bom viver,
Se a terra à luz da aurora
E a vida ao amor se erguer!

Em toda a parte as ondas
D’esse infinito mar,
Por mais que andemos longe,
Nos podem embalar!

Em toda a parte o peito
Sente brotar a flux,
E sempre e à farta, a vida…
Vida — calor e luz!

Nos seixos d’essas praias,
Se o sol lá lhes bater,
N’um átomo de areia,
Deus pode aparecer!

Bate-lhe o sol de chapa,
E um deus se vê também
No pó, tornado um astro
Como esses que o céu tem!

Desprezos para a terra?!
Também a terra é céu!
Também no céu a impele
O amor que a suspendeu…

E quem lá d’esse espaço
Brilhar ao longe a vir
Dirá que é paraíso
E um éden a sorrir!

Embaixo! o que é embaixo?
Embaixo estar que tem?
Ninguém à eterna sombra
Nos condenou! ninguém!

Se até nos surdos antros,
Nas covas dos chacais,
Penetra o sol, vestindo-os
Com raios triunfais

Se ao céu até se viram
As bocas dos vulcões…
E têm os próprios cegos
Um céu… nos corações!

Não! não há céu e inferno:
Divino é quanto é!
Para que a rocha brilhe,
Basta que o sol lhe dê…

Basta que o sol lhe beije
As chagas que ela tem,
E a morta d’essa altura,
A lua, é sol também!

E as trevas da nossa alma,
A nossa cerração,
Oh! como se desbarata
A aurora da razão!

Mas se a razão, surgindo,
Nossa alma esclareceu,
Também tu, sol, no espaço
Surges, razão do céu…

Por isso é que me alegras,
Ó luz, o coração!
Por isso vos estimo…
Tu, sol, e tu, razão!

(1865.)