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benvindos,
hoje, 19 de outubro, há exatos 69 anos, nascia aquela que veio a ser a responsável pela concepção deste rapazinho que lhes escreve neste exato momento.
hoje, 19 de outubro, a minha mãe, a minha cabocla jurema armond, vence as suas 69 primaveras, bem bonita, vigorosa, como mostra a foto.
dona jurema armond é GRANDE responsável pelo meu amor à literatura, ao cinema & à música.
descobri a poesia através de uma artista que sempre foi o MAIOR ÍDOLO da minha cabocla: maria bethânia.
dona jurema armond é muito responsável pelo ânimo do paulo sabino. muito carinhosa, muito amorosa & bem-humorada. divertida. engraçada. às vezes rio sozinho lembrando coisas feitas por ela, coisas ditas por ela.
ela é melhor do que eu, não tenho dúvidas. possui capacidades amorosas que ainda não alcanço. eu sou mais genioso, mais “respondão”, não sou de levar desaforo para casa. mesmo. em geral revido na mesma moeda. mesmo. ela, dona jurema, ela é mais branda, mais suave, mais delicada.
porém, mesmo sendo menos paciente (o meu temperamento, quando aborrecido, é mais próximo ao do meu pai), sou um homem de delicadezas. prezo pelo bom trato, pelo carinho, pela troca amiga.
isso, senhores, eu herdei, é um legado, da cabocla, legado que vejo muito bonito, muito importante; isso é um sinal de que jurema armond apostou no delicado da vida.
e não vale pensar que a vida dessa mulher é só alegria, só bons momentos.
como todo & qualquer bom ser humano, dona jurema armond também viveu os seus maus momentos; momentos de dor, momentos de solidão.
todavia, a cabocla sempre deu a volta por cima. aposta no bom humor & tem sua atenção às belezas do quotidiano, não se prendendo às durezas & friezas que determinados sentimentos (de dor, de solidão) podem gerar.
o seu lema: viver a dor para, um dia, libertar-se dela.
o seu tema: não se deixar destruir.
ajuntar as pedras que nos atravessam o caminho, juntá-las todas, e, com elas, a construção de novos poemas.
recriar a vida, sempre, sempre.
fazer, da vida mesquinha que se possa levar, um poema.
é assim que a cabocla vive no meu coração de eterno menino seu, coração jovem, e é assim que a cabocla viverá junto a mim & aos meus.
a sua fonte, de força, é para uso de todos os sedentos.
sem entraves.
a cabocla é pessoa simples; gosta de plantas, de cuidar das plantas, de ter mato por perto; a gleba, o terreno fértil, a transfigura para mais & melhor. e gosta de bichos, de todos soltos, livres, a viver a sua natureza. mulher de simplicidades, gosta muito dos pequenos prazeres, dos que, ao meu ver, realmente importam. o que almeja, quando à vida, é tão singelo, mas ao mesmo tempo tão revolucionário!…
o MESTRE carlos drummond de andrade, na sua última entrevista, concedida ao jornal do brasil & publicada 5 dias após a sua morte, em 22 de agosto de 1987, fala o seguinte a respeito da beleza:
A beleza ainda me emociona muito. Não só a beleza física, mas a beleza natural. Hoje, com quase oitenta e cinco anos, tenho uma visão da natureza muito mais rica do que eu tinha quando era jovem. Eu reparava mais em certas formas de beleza. Mas, hoje, a natureza, para mim, é um repertório surpreendente de coisas magníficas e coisas belas. Contemplar o vôo do pássaro, contemplar uma pomba ou uma rolinha que pousa na minha janela… Fico estático vendo a maravilha que é aquele bichinho que voou para cima de mim, à procura de comida ou de nem sei o quê. A inter-relação dos seres vivos e a integração dos seres vivos no meio natural, para mim, é uma coisa que considero sublime.
ensinamentos para o bem viver, eis a oferta de jurema armond:
a cabocla é aquela mulher a quem o tempo muito ensinou. 69 anos. ensinou a amar a vida. a não desistir da luta. a recomeçar na derrota. a renunciar a palavras & pensamentos negativos. a acreditar nos valores humanos. a ser otimista.
a cabocla crê na solidariedade humana. crê na superação dos erros & angústias do presente.
acredita nos jovens, aposta num futuro melhor com a vinda das novas gerações, gerações que descobrirão uma profilaxia, um modo de prevenir, os erros & violências do presente.
aprendi, com ela, que mais vale lutar do que recolher dinheiro “fácil”, digo, dinheiro “sujo”, que não é meu por direito.
aprendi, com ela, que mais vale acreditar do que duvidar.
é dela, de dona jurema armond, que descende o meu modo de enxergar a vida, buscando o melhor para mim, desejando o melhor para todos nós.
por isso saúdo a sua existência!
parabéns pela data, mãe!
beijo IMENSO, minha cabocla!
beijo nos demais!
(o filho da dona juju.)
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(do livro: Melhores poemas. seleção: Darcy França Denófrio. autora: Cora Coralina. editora: Global.)
ANINHA E SUAS PEDRAS
(Outubro, 1981)
Não te deixes destruir…
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.
Faz de tua vida mesquinha
um poema.
E viverás no coração dos jovens
e na memória das gerações que hão de vir.
Esta fonte é para uso de todos os sedentos.
Toma a tua parte.
Vem a estas páginas
e não entraves seu uso
aos que têm sede.
A GLEBA ME TRANSFIGURA
Sinto que sou a abelha no seu artesanato.
Meus versos têm cheiro dos matos, dos bois e dos currais.
Eu vivo no terreiro dos sítios e das fazendas primitivas.
Amo a terra de um místico amor consagrado, num
esponsal sublimado,
procriador e fecundo.
Sinto seus trabalhadores rudes e obscuros,
suas aspirações inalcançadas, apreensões e desenganos.
Plantei e colhi pelas suas mãos calosas e mal
remuneradas.
Participamos receosos do sol e da chuva em
desencontro,
nas lavouras carecidas.
Acompanhamos atentos, trovões longínquos e o riscar
de relâmpagos no escuro da noite, irmanados no
regozijo
das formações escuras e pejadas no espaço
e o refrigério da chuva nas roças plantadas, nos pastos
maduros
e nas cabeceiras das aguadas.
Minha identificação profunda e amorosa
com a terra e com os que nela trabalham.
A gleba me transfigura. Dentro da gleba,
ouvindo o mugido da vacada, o mééé dos bezerros,
o roncar e focinhar dos porcos, o cantar dos galos,
o cacarejar das poedeiras, o latir dos cães,
eu me identifico.
Sou árvore, sou tronco, sou raiz, sou folha,
sou graveto, sou mato, sou paiol
e sou a velha da tulha de barro.
Pela minha voz cantam todos os pássaros, piam as cobras
e coaxam as rãs, mugem todas as boiadas que vão pelas
estradas.
Sou a espiga e o grão que retornam à terra.
Minha pena (esferográfica) é a enxada que vai cavando,
é o arado milenário que sulca.
Meus versos têm relances de enxada, gume de foice e
peso de machado.
Cheiro de currais e gosto de terra.
Eu me procuro no passado.
Procuro a mulher sitiante, neta de sesmeiros.
Procuro Aninha, a inzoneira que conversava com as
formigas,
e seu comadrio com o ninho das rolinhas.
Onde está Aninha, a inzoneira,
menina do banco das mais atrasadas da escola de
Mestre Silvina…
Onde ficaram os bancos e as velhas cartilhas da minha
escola primária?
Minha mestra… Minha mestra… beijo-lhe as mãos,
tão pobre!…
Meus velhos colegas, um a um foram partindo,
raleando a fileira…
Aninha, a sobrevivente, sua escrita pesada, assentada
nas pedras da nossa cidade…
Amo a terra de um velho amor consagrado
através das gerações de avós rústicos, encartados
nas minas e na terra latifundiária, sesmeiros.
A gleba está dentro de mim. Eu sou a terra.
Identificada com seus homens rudes e obscuros,
enxadeiros, machadeiros e boiadeiros, peões e
moradores.
Seus trabalhos rotineiros, suas limitadas aspirações.
Partilhei com eles de esperança e desenganos.
Juntos, rezamos pela chuva e pelo sol.
Assuntamos de um trovão longínquo, de um fuzilar
de relâmpagos, de um sol fulgurante e desesperador,
abatendo as lavouras carecidas.
Festejamos a formação no espaço de grandes nuvens
escuras
e pejadas para a salvação das lavouras a se perderem.
Plantei pelas suas enxadas e suas mãos calosas.
Colhi pelo seu esforço e constância.
Minha identificação com a gleba e com a sua gente.
Mulher da roça eu o sou. Mulher operária, doceira,
abelha no seu artesanato, boa cozinheira, boa lavadeira.
A gleba me transfigura, sou semente, sou pedra.
Pela minha voz cantam todos os pássaros do mundo.
Sou a cigarra cantadeira de um longo estio que se
chama Vida.
Sou a formiga incansável, diligente, compondo seus
abastos.
Em mim a planta renasce e floresce, sementeia e
sobrevive.
Sou a espiga e o grão fecundo que retornam à terra.
Minha pena é a enxada do plantador, é o arado que vai
sulcando
para a colheita das gerações.
Eu sou o velho paiol e a velha tulha roceira.
Eu sou a terra milenária, eu venho de milênios.
Eu sou a mulher mais antiga do mundo, plantada e
fecundada
no ventre escuro da terra.
OFERTA DE ANINHA
(AOS MOÇOS)
Eu sou aquela mulher
a quem o tempo
muito ensinou.
Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar na derrota.
Renunciar a palavras e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos.
Ser otimista.
Creio numa força imanente
que vai ligando a família humana
numa corrente luminosa
de fraternidade universal.
Creio na solidariedade humana.
Creio na superação dos erros
e angústias do presente.
Acredito nos moços.
Exalto sua confiança,
generosidade e idealismo.
Creio nos milagres da ciência
e na descoberta de uma profilaxia
futura dos erros e violências
do presente.
Aprendi que mais vale lutar
do que recolher dinheiro fácil.
Antes acreditar do que duvidar.