
(Paulo Sabino & seu felino enjaulado no peito, grávido de palavras.)_____________________________________________________________
eu,
paulo sabino,
sou um preto.
eu,
paulo sabino,
negro sou,
orgulhosamente bem-nascido à sombra dos palmares, orgulhosamente bem-nascido à sombra dos palmeirais do meu brasil varonil, e também orgulhosamente bem-nascido à sombra dos palmares, à sombra do quilombo que se tornou o grande símbolo da resistência negra contra a escravidão, orgulhosamente bem-nascido à sombra das tantas lutas que me possibilitam, hoje, preto, ser quem eu sou.
eu,
paulo sabino,
orgulhosamente bem-nascido à sombra da chamada grande democracia racial, ocidental, tropical…
(isso me faz lembrar que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”…)
sou bem um outdoor de preto, body and soul, com a cara para o luar (porque um alucinado pela lua, por suas fases & seu brilho prata), sou bem um outdoor de preto com a cara para o luar, como a noite (minha amante aventurosa) quando alta, sou bem um outdoor de preto (com a cara para o luar) inflando a percussão do peito, inflando a percussão trabalhada pelo músculo oco que me habita, feito um anjo feliz.
um anjo feliz.
um livre livro.
livro que escreve a sua história ao passo em que vive a sua escrita existencial, a escrita dos fatos, dos acontecimentos. nada já riscado, nada já rabiscado, como quando um quadro-negro atrás de um giz: um quadro negro atrás de um giz é um quadro-negro já riscado, já rabiscado, com linhas já delineadas em sua superfície (que também é o fundo do quadro). livro com suas linhas a serem desenhadas.
eu,
paulo sabino:
um anjo feliz.
um livre livro.
e também o sangue de outras sagas, o sangue de outras narrativas fecundas em incidentes.
e também o brilho de outros breus, o brilho de outras escuridões que necessitaram resplandecer em lágrima, resplandecer em dor, resplandecer em sangue, em solidão, para que eu, paulo sabino, um preto, possa falar, hoje, aos senhores.
negro é feito cana no moedor: sofre & tira mel da própria dor.
(vide o samba, que é a tristeza que balança — e a tristeza tem sempre uma esperança: a de, um dia, não ser mais triste, não…)
negro resiste: quanto mais me matam, mais eu sobrevivo.
e vou tocando os passos (avante!), vou tocando ginga (jogo de cintura para com a vida), vou tocando, e, com meu “toque”, vou a deitar sangue (vermelho, sangue-vida, sangue-paixão, sangue-sentimento) nos cruzamentos, vou colorindo a palidez dos que não têm cor (apesar do absurdo, os negros, ainda hoje, por alguns, são chamados de “gente de cor”), vou colorindo a palidez daqueles a quem peço piedade.
eu,
paulo sabino,
sou um preto,
sou um negro,
rigorosamente um negro, à sombra dos palmares (como já lhes disse), à sombra da grande democracia/demagogia racial, ocidental:
tropicálice!, democracia tropical à base do vinho tinto de sangue (sangue pisado, pisado por mortes sumárias & humilhações sociais), democracia tropical à base do “cale-se!”, à base do “cala boca, porra, que eu não tô a fim de ouvir discurso humanitário!”, democracia tropical à base da sentença de morte promulgada, por exemplo, por arbitrárias (abusivas, despóticas, violentas) milícias civis & do estado, democracia tropical à base de porrada na nuca de malandros pretos.
(lembrar: “a carne mais barata do mercado é a carne negra”…)
mas negro resiste: quanto mais me matam, mais eu sobrevivo.
negro é feito cana no moedor: sofre & tira mel da própria dor.
mel da própria dor:
dentro da jaula do peito, meu coração é um leão faminto, leão ávido a devorar tudo o que vê & encontra pela frente, leão que devassa a madrugada como um felino atento à órbita da urbe, atento ao movimento da cidade capturada pelos sentidos aguçados da fera, e atento à têmpera (ao modo, ao estilo, ao gosto) do tempo, compositor de destinos, tambor de todos os ritmos.
meu coração já foi casa de marimbondos (com seus ferrões a postos), já foi covil de serpentes (com seus dentes afiados a postos), já foi um sol sob nuvens (com o mau tempo a postos, tapando o brilho do astro-rei).
mas ele, meu coração (um leão faminto que devassa a madrugada), sabe vestir a calma de uma floresta sem pássaros (aparente quietude…), enquanto rosna em sigilo, afiando as garras para o próximo salto…
meu coração é uma grande cidade com seus engarrafamentos de concreto, uma grande cidade com suas impossibilidades de circulação, coração entupido, coração repleto do que não consegue espaço para locomoção, e ali fica, inerte. para o que “poderia ter sido” não há portas de emergência, não há saídas possíveis.
falharam todos os despachos em prol de saídas ao que “poderia ter sido”. falharam todos os medicamentos.
o que “poderia ter sido” permanece estagnado no meu coração como as coisas nos engarrafamentos de concreto de uma grande cidade.
o que “poderia ter sido”: estagnado, em estado estacionário, paralisado: no peito aprisionado, feito assombração.
como um soldado no front, como um soldado na linha de frente de combate, tenho os meus medos, as minhas inseguranças. tenho medos, inseguranças, de viver determinados perigos existenciais. estes, naturalmente, permanecem enjaulados no peito, não seguem adiante (no front), são postos para fora de combate.
porém,
eu,
paulo sabino,
um preto,
acumulo assombramentos e, com eles, também palavras.
por sorte — quis a vida — estou grávido de palavras.
estou carregado de palavras.
estou prenhe de todas elas.
e contra os engarrafamentos & ressentimentos & envenenamentos que possam surgir:
palavras!
(elas me salvam de todo mal.)
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: A cor da palavra. autor: Salgado Maranhão. editora: Imago.)
NEGRO SOUL
Para Edimilson de Almeida Pereira e Éle Semog
sou um negro,
orgulhosamente bem-nascido
à sombra dos palmares,
da grandemocracia
racial
ocidental
tropical.
sou bem um outdoor
de preto
com a cara pro luar
inflando a percussão
do peito
feito um anjo feliz.
sou mais que um quadro-negro
atrás de um giz: um livre livro.
e sangue de outras sagas;
e brilho de outros breus:
quanto mais me matam
mais eu sobrevivo.
(negro é feito cana no moedor,
sofre e tira mel da própria dor.)
vou tocando passos,
vou tocando ginga,
vou tocando, vou
a deitar sangue
nos cruzamentos,
colorindo a palidez
dos que não têm cor.
sou um negro,
rigorosamente um negro,
à sombra dos palmares
da grandemagogia
racial
ocidental
tropicálice!
FELINO
dentro da jaula do peito
meu coração é um leão faminto
que devassa a madrugada
como um felino atento
seguindo a órbita da urbe
e a têmpera do tempo.
já foi casa de marimbondos,
já foi covil de serpentes,
já foi um sol sob nuvens.
vez em quando veste a calma
de uma floresta sem pássaros,
enquanto rosna em sigilo,
afiando as garras para o próximo salto.
ESTADO DE ÂNIMO
meu coração é uma grande cidade
com seus engarrafamentos de concreto.
não há portas de emergência
para o que poderia ter sido.
falharam todos os despachos.
falharam todos os medicamentos.
como um soldado no front
morro de assombração
diante do perigo.
e estou grávido de palavras.