COISA EM SI
16 de maio de 2015

Ovo
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toda & qualquer coisa é composta de outras tantas coisas.

não existe “coisa em si”.

toda & qualquer coisa forma uma identidade. identidade que se forme, que se molde, que se construa, sem que tenda para alguma coisa, sem que sofra a influência de alguma coisa, sem que penda para algum lado, sem que dependa de alguma outra coisa, não existe.

tudo tende, pende, depende.

tudo, até as palavras: não há nenhuma palavra que exista “em si”, que exista sem que haja, nela, algo que também forme, também molde, também construa, outras palavras: tende / pende / depende.

palavra puxa palavra.

o mar, que molha a ilha, molha o continente.

o ar que se respira traz o que recende, o que exala, o que se espalha. o ar que injetamos nos pulmões é o mesmo que, livre, toca o cheiro das coisas & o traz, de longe, até nós.

tudo é rente, é próximo, é contíguo. tudo é tangente, é tocável, é acessível. tudo é inerente, é dependente, é inseparável.

tudo é rente, tangente, inerente.

tudo, até as palavras: não há nenhuma palavra que exista “em si”, que exista sem que haja, nela, algo que também forme, também molde, também construa, outras palavras: rente / tangente / inerente.

palavra puxa palavra.

não existe coisa assim: isenta, sem ambiente, coisa partida do seu próprio pó, sem mistura, coisa sem sombra na parede, coisa sem margem ou afluente que a alcance, que a toque: as coisas existem & necessariamente, obrigatoriamente, estabelecem inter-relações: não há coração sem mente, não há paraíso sem serpente. não existiria som se não houvesse o silêncio. não haveria luz se não fosse a escuridão.

a vida é mesmo assim: dia & noite, não & sim.

“coisa em si” inexiste.

só existe o que se sente, só existe o que é percebido através dos sentidos. uma coisa, mesmo que exista, se não for sentida por nós, isto é, se não for percebida por nós, essa coisa não existe para nós. para que exista para nós, portanto, as coisas precisam, as coisas dependem, as coisas necessitam, as coisas carecem, existir, antes, para os nossos sentidos.

tudo tende, pende, depende. tudo é rente, tangente, inerente.

não existe “coisa em si”.

a miscigenação, a mistura, a mesclagem, a influência, a tendência, a confluência, sempre foi & sempre será o caminho de toda & qualquer coisa.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: ET  Eu  Tu. poemas: Arnaldo Antunes. fotos: Marcia Xavier. editora: Cosac & Naify.)

 

 

coisa em si
não existe

tudo tende
pende
depende

o mar que molha
a ilha molha
o continente

o ar que se
respira traz
o que recende

coisa em si
não existe

tudo é rente
tangente
inerente

pedra
assemelha
semente

sol nascente:
sol poente

coisa em si
não existe

mesmo que
aparente

coisa em si
coisa só
partida do seu
próprio pó

sem sombra
sobre
a parede

sem mar
gem
ou afluente

não existe
coisa assim

isenta
sem ambiente

não há coração
sem mente

paraíso
sem serpente

coisa em si
inexiste

só existe
o que se
sente

NOVÍSSIMO ORFEU
11 de novembro de 2014

Orpheus (1894)_Károly Ferenczy (Húngaro)

(Na foto, o quadro Orpheus, 1894, do pintor húngaro Károly Ferenczy.)
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 para Murilo, novíssimo Orfeu, que chegará ao mundo em dezembro

 

 

(do: Dicionário da mitologia grega e romana. autor: Pierre Grimal. editora: Bertrand Brasil.)

 

 

ORFEU. Orfeu é unanimemente reconhecido como filho de Eagro (v. Eagro). As tradições divergem no que respeita ao nome da mãe: passa, mais vulgarmente, por filho de Calíope, que detém a mais alta dignidade entre as Musas; mas por vezes, em vez desta é referida Menipe, filha de Tâmiris. Orfeu é de origem trácia. Como as Musas, habita perto do Olimpo, onde é geralmente representado, cantando, vestido com os trajos dos Trácios. Os mitógrafos fazem dele o rei desta região: dos Bístones, dos Odrísios e dos Macedónios, etc. Orfeu é o Cantor por excelência, o músico e o poeta. Toca lira e “cítara”, instrumento cuja invenção lhe é atribuída. Quando esta honra lhe é negada, admite-se que foi ele que aumentou o número de cordas do instrumento, que não seriam inicialmente mais do que sete e passaram a ser nove, “tantas quanto as Musas”. Seja como for, Orfeu sabia cantar melodias tão suaves que até as feras o seguiam, as árvores e as plantas se inclinavam na sua direcção e os homens mais rudes se acalmavam.

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novíssimo orfeu:

vou onde a poesia me chama, vou onde a poesia me clama.

o amor é minha biografia, o amor é minha história de vida, texto de argila & fogo.

o amor: texto de argila & fogo: de argila, pois, segundo a mitologia cristã, o homem veio do barro, veio da terra, e para a terra retornará, e é na terra que o homem constitui a sua história, a sua biografia; de fogo, elemento que existe a partir da combustão de um corpo, que desprende luz & calor, corpo que arde, que queima, que aquece, que ilumina.

aves contemporâneas, pássaros dos dias atuais, largam do meu peito, alçando vôos & levando recado aos homens, meus irmãos na terra: o amor é dos sentimentos o mais nobre; belezas nasceram para serem complementares & não excludentes; apesar dos pesares, a vida vale o sorriso & o brilho no olhar.

o mundo alegórico se esvai, o mundo repleto de simbolismo & elementos figurados se dissipa, o mundo recheado de mitologias desfalece, o uso da razão & a ciência derrubam as alegorias mundanas & as crenças fantásticas, fica esta substância de luta, real, permanece esta matéria de batalha que travamos por uma existência mais frutífera, menos tacanha, de onde a eternidade se descortina, de onde o tempo se revela.

a estrela azul familiar vira as costas, foi-se embora…

(estrela azul: estrela de luminosidade intensa, de temperatura altíssima, com massa que pode ser até 18 vezes maior que a massa solar, associada, a sua aparição no céu, a épocas de bonança, a momentos de prosperidade, a tempos de mansuetude.)

a estrela azul conhecida, familiar, disse adeus…

mesmo assim, mesmo sem a estrela azul familiar no céu, ainda que esta não mais aponte épocas de bonança, momentos de prosperidade, tempos de mansuetude, a poesia, musa maior na vida, sopra onde quer.

apesar dos pesares, apesar da substância de luta de onde se descortina a eternidade, de onde a realidade se revela, a poesia sopra o seu vento lírico, a poesia sopra o seu vento onírico, a poesia sopra o seu vento alegórico, a fim de que a vida vivida ganhe um brilho ainda mais vívido, ainda mais colorido, ainda mais definido.

salve o sopro sortido & sagaz da poesia!

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Antologia poética. autor: Murilo Mendes. editora: Cosac Naify.)

 

 

NOVÍSSIMO ORFEU

 

Vou onde a Poesia me chama.

O amor é minha biografia,
Texto de argila e fogo.

Aves contemporâneas
Largam do meu peito
Levando recado aos homens.

O mundo alegórico se esvai,
Fica esta substância de luta
De onde se descortina a eternidade.

A estrela azul familiar
Vira as costas, foi-se embora…
A poesia sopra onde quer.