(Na foto, o poeta Eucanaã Ferraz.)
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note-se: o nome “eucanaã”, além de iniciar com o pronome da primeira pessoa do singular, “eu”, significa, em hebraico, “terra prometida”, a terra que, segundo a bíblia, deus assegurou aos descendentes de abraão — “canaã”.
esta placa: o nome do poeta: “eucanaã”, que é como se ele mesmo dissesse: “eu, canaã! eu, terra prometida!”
é como se ele próprio afirmasse — afinal, começa com “eu” o nome do poeta — que ele é o que o nomeia: “eu, canaã! eu, terra prometida!”
“canaã”, que é o mesmo que “terra prometida”: lugar de não ser ainda, solo tão só prometido, projeto de geografia para depois de amanhã, para um dia (quem sabe).
o nome do poeta, “terra prometida”, não é o poeta agora, pois ele não é terra que se prometeu a alguém ou a algum feito & a terra que forma o seu nome é uma terra ainda no mundo das promessas, isto é, no mundo futuro.
o poeta não existe no seu nome (o poeta não é terra que se prometeu a alguém ou a algum feito). o nome é uma coisa que vive sem ele.
o nome, terra prometida (“canaã”), se diz sendo o poeta, este nome que o afirma (“eu, canaã!”), mas o que nele — no nome — aponta o poeta é também o que o acusa de não ser o que o nome diz: o poeta não é o que seu nome diz que ele é: terra que se prometeu a alguém ou a algum feito.
o poeta queria viver sem nome, ser o que ele é: ao invés de “eu-canaã”, ao invés de “eu-terra prometida”, ser “eu-ninguém”.
chamarem-no — ei, você! — & o poeta se reconheceria perfeitamente não sendo senão uma coisa livre do que jamais prometeu.
mas à cara, mas no rosto, do poeta está colada esta placa (certas tintas, como as do nome, não se apagam), “eu-canaã”, este engano à beira de “ele-estrada”, esta placa à beira do poeta, que se vê estrada, que se vê caminho & que se faz caminho no andar dos passos.
se terra, como aponta o seu nome, o poeta é terra a terra, como os passos (passo a passo), o poeta é o agora, é o já, é o neste instante, sem vaticínios — sem previsões, sem profecias — de um norte, de um lugar na terra, em que mel & leite jorrassem fáceis, sem dor.
o poeta não existe no nome, não é terra que se prometeu a alguém ou a algum feito. o poeta só existe em chão estreito, em chão delgado, em chão apertado, em chão onde cabem uns versos de amor & morte, palavras ditas no escuro: fósforo (a luz mínima que conseguimos acender com o conhecimento mínimo que alcançamos da existência escura), poço (lugar escuro, sem saída), você (o outro, lugar também escuro, repleto de mistérios).
o poeta é o exilado do nome que carrega, sem ter nunca visto a pátria que mente (a tal “terra prometida”) toda vez que responde: “como é que você se chama?”
o poeta vai aos livros, não encontra a pátria que mente. o poeta pergunta. não está no atlas.
e o infinito infinito: o solo que não é encontrado nos livros, no atlas, a pátria que o poeta mente, a terra para sempre prometida no nome & que nunca se realizará, a terra que não consta em mapa algum.
a terra está cumprida, a terra está efetivada, a terra está realizada, quando estiver concluída, quando estiver terminada, quando estiver acabada. então, o poeta morrerá ali, por sob a terra, dentro dela, sem ser “eu” (sem ser o que o poeta é), sem “eu” (sem a terra-corpo onde todos pousamos enquanto vivos), puro “não ser”.
sem ser eu, sem eu, não ser mais: eu-canaã.
antes disso, antes de o poeta ir morar por sob a terra, antes de o poeta ir morar dentro dela, que esta sua placa continue a indicar caminhos luminosos a quem quer que a encontre estradafora.
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Escuta. autor: Eucanaã Ferraz. editora: Companhia das Letras.)
ESTA PLACA
Como se eu mesmo dissesse,
como se eu próprio afirmasse
(começa com eu, meu nome)
que sou o que me nomeia:
lugar de não ser ainda,
solo tão só prometido,
projeto de geografia
para depois de amanhã.
Meu nome não sou agora,
moro no mundo futuro.
Meu pai me deu esse nome
sem que eu pudesse fazê-lo.
Mal posso escrevê-lo certo
nos documentos que o pedem.
Não existo no meu nome,
coisa que vive sem mim.
Ele se diz sendo eu,
este nome que me afirma,
mas o que nele me aponta
é também o que me acusa
de eu não ser o que ele diz.
Queria viver sem nome,
ser o que sou: eu-ninguém.
Me chamarem — ei, você! —
e eu me reconheceria,
perfeitamente não sendo
senão uma coisa livre
do que jamais prometi.
Mas à cara está colada
(certas tintas não se apagam)
esta placa, este engano
à beira de mim-estrada.
Se terra, sou terra a terra,
o agora sem vaticínios
de um norte em que mel e leite
jorrassem fáceis, sem dor.
Só existo em chão estreito,
nuns versos de amor e morte,
palavras ditas no escuro,
fósforo, poço, você.
Sou o exilado do nome
que carrego, vice-versa,
sem ter nunca visto a pátria
que minto quando me digo
toda vez que respondo:
como é que você se chama?
Vou aos livros, não encontro.
Pergunto. Não está no atlas.
E o infinito infinito.
A terra estará cumprida
quando estiver concluída.
Então, morrerei ali,
sob ela, dentro dela,
(Na foto, o quadro Orpheus, 1894, do pintor húngaro Károly Ferenczy.)
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para Murilo, novíssimo Orfeu, que chegará ao mundo em dezembro
(do: Dicionário da mitologia grega e romana. autor: Pierre Grimal. editora: Bertrand Brasil.)
ORFEU. Orfeu é unanimemente reconhecido como filho de Eagro (v. Eagro). As tradições divergem no que respeita ao nome da mãe: passa, mais vulgarmente, por filho de Calíope, que detém a mais alta dignidade entre as Musas; mas por vezes, em vez desta é referida Menipe, filha de Tâmiris. Orfeu é de origem trácia. Como as Musas, habita perto do Olimpo, onde é geralmente representado, cantando, vestido com os trajos dos Trácios. Os mitógrafos fazem dele o rei desta região: dos Bístones, dos Odrísios e dos Macedónios, etc. Orfeu é o Cantor por excelência, o músico e o poeta. Toca lira e “cítara”, instrumento cuja invenção lhe é atribuída. Quando esta honra lhe é negada, admite-se que foi ele que aumentou o número de cordas do instrumento, que não seriam inicialmente mais do que sete e passaram a ser nove, “tantas quanto as Musas”. Seja como for, Orfeu sabia cantar melodias tão suaves que até as feras o seguiam, as árvores e as plantas se inclinavam na sua direcção e os homens mais rudes se acalmavam.
vou onde a poesia me chama, vou onde a poesia me clama.
o amor é minha biografia, o amor é minha história de vida, texto de argila & fogo.
o amor: texto de argila & fogo: de argila, pois, segundo a mitologia cristã, o homem veio do barro, veio da terra, e para a terra retornará, e é na terra que o homem constitui a sua história, a sua biografia; de fogo, elemento que existe a partir da combustão de um corpo, que desprende luz & calor, corpo que arde, que queima, que aquece, que ilumina.
aves contemporâneas, pássaros dos dias atuais, largam do meu peito, alçando vôos & levando recado aos homens, meus irmãos na terra: o amor é dos sentimentos o mais nobre; belezas nasceram para serem complementares & não excludentes; apesar dos pesares, a vida vale o sorriso & o brilho no olhar.
o mundo alegórico se esvai, o mundo repleto de simbolismo & elementos figurados se dissipa, o mundo recheado de mitologias desfalece, o uso da razão & a ciência derrubam as alegorias mundanas & as crenças fantásticas, fica esta substância de luta, real, permanece esta matéria de batalha que travamos por uma existência mais frutífera, menos tacanha, de onde a eternidade se descortina, de onde o tempo se revela.
a estrela azul familiar vira as costas, foi-se embora…
(estrela azul: estrela de luminosidade intensa, de temperatura altíssima, com massa que pode ser até 18 vezes maior que a massa solar, associada, a sua aparição no céu, a épocas de bonança, a momentos de prosperidade, a tempos de mansuetude.)
a estrela azul conhecida, familiar, disse adeus…
mesmo assim, mesmo sem a estrela azul familiar no céu, ainda que esta não mais aponte épocas de bonança, momentos de prosperidade, tempos de mansuetude, a poesia, musa maior na vida, sopra onde quer.
apesar dos pesares, apesar da substância de luta de onde se descortina a eternidade, de onde a realidade se revela, a poesia sopra o seu vento lírico, a poesia sopra o seu vento onírico, a poesia sopra o seu vento alegórico, a fim de que a vida vivida ganhe um brilho ainda mais vívido, ainda mais colorido, ainda mais definido.
salve o sopro sortido & sagaz da poesia!
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Antologia poética. autor: Murilo Mendes. editora: Cosac Naify.)
NOVÍSSIMO ORFEU
Vou onde a Poesia me chama.
O amor é minha biografia,
Texto de argila e fogo.
Aves contemporâneas
Largam do meu peito
Levando recado aos homens.
O mundo alegórico se esvai,
Fica esta substância de luta
De onde se descortina a eternidade.
A estrela azul familiar
Vira as costas, foi-se embora…
A poesia sopra onde quer.
(Nas fotos, a Estrada Real & o seu mapa.)
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“Em meados do século XVIII já eram muitos os caminhos que conduziam às minas de Minas Gerais, mas também muitos eram os seus descaminhos. Para evitar estes descaminhos a Coroa Portuguesa determinou que o ouro e os diamantes deixassem as terras mineiras apenas por trilhas outorgadas pela realeza, que receberam o nome de Estrada Real.
Inicialmente, o caminho ligava somente a cidade de Paraty às províncias auríferas do interior de Minas, a antiga Villa Rica, hoje Ouro Preto (Caminho Velho). No entanto, a Coroa Portuguesa percebeu a necessidade de um trajeto mais seguro e rápido ao porto do Rio de Janeiro, surgindo então o caminho novo.”
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do mar ao sertão: do estado litorâneo do rio de janeiro ao ser-tão do cerrado mineiro, em diamantina: tão rico, tão encantador, tão diverso, tão quente, tão seco.
nos descaminhos, um caminho enfeitado de ouro & cravado de diamante: a estrada real, caminho que liga minas ao rio, estrada utilizada para o escoamento de ouro & diamante encontrados na região.
do rio a minas, de minas ao rio: num rio de minas, de águas doces & claras, o viageiro buscou as riquezas gerais de janeiro a janeiro, o viageiro buscou as riquezas gerais o ano inteiro.
do rio ao minas, de minas ao rio: no trajeto rio-minas, o viageiro buscou as riquezas (das minas) gerais de janeiro (viageiro vindo de lugar chamado rio de janeiro) a janeiro.
nas estradas da vida, carroça & cavalo. da mata (litorânea, no rio) ao cerrado (mais árido, em minas), areia & barro.
na montanha, uma cruz, um “orai por nós” (no topo do paredão de pedra situado na frente da cidade mineira de diamantina, onde começa a estrada real, uma cruz, que à noite se acende, como se abençoando a cidade). na arte (barroca), um “reino a vós”, um reino ao divino, ao deus católico (diamantina é uma cidade que data do período colonial brasileiro, portanto, cidade cercada de arte sacra por todos os lados).
em tudo na cidade de diamantina, os costumes de uma cidade pequena do interior mineiro: no café com maria, um “bom dia, seu joão”. na cozinha, casinha de terra no chão.
“real”, mais que a estrada que leva esse nome, é sua lida, é seu dia-a-dia de lutas, e seu arroz com feijão: a luta dos garimpeiros, repletos de sonhos de riquezas & conquistas, viageiros que saíam do mar (do rio de janeiro) em busca de ser-tão (nas minas gerais).
beijo todos!
paulo sabino.
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(da publicação: Boletim poético Sempre-Viva — edição especial Diamantina. autora do poema: Ana Ribeiro Barbosa. pesquisa & organização: Sílvio Neves. realização: Espaço de Criação Literária do Ponto de Leitura — Milho Verde, MG.)
DO MAR AO SERTÃO
Nos descaminhos
um caminho
de ouro enfeitado
e diamante cravado
Num Rio de Minas
buscou o viageiro
as riquezas Gerais
de Janeiro a janeiro
Nas estradas da vida
carroça e cavalo
da mata ao cerrado
areia e barro
Na montanha, uma cruz
Um orai por nós
Na arte, o sagrado
Um reino a vós
No café com Maria
Um bom dia, Seu João
Na cozinha, casinha
de terra no chão
Real é sua lida
e seu arroz com feijão
Garimpeiros de sonhos
do mar ao sertão
Ecce homo: segundo o evangelho, palavras ditas por Pilatos ao apresentar Jesus Cristo (flagelado, atado & com a coroa de espinhos) ao povo judeu, nada satisfeito com os seus feitos. Em português significa: “eis o homem”.
Na iconografia cristã (iconografia: “estudo descritivo da representação visual de símbolos e imagens, sem levar em conta o valor estético que possam ter”, dicionário Houaiss), “Ecce homo” é como se chamam as representações de Jesus Cristo em sofrimento.
Suave mari magno: a expressão “mari magno” foi utilizada pelo poeta latino Lucrécio para definir o prazer experimentado por alguém quando este se percebe livre dos perigos a que outros estão expostos.
Machado de Assis possui um poema célebre intitulado “Suave mari magno”, onde são narrados a morte de um cão, na rua, por envenenamento & o prazer silencioso de alguns transeuntes em assistir à triste morte do pobre cão.
Schadenfreude: expressão alemã, empregada em diversas línguas do ocidente, para designar o sentimento de alegria ou satisfação que uma pessoa pode apresentar perante o infortúnio ou tristeza de uma outra pessoa. É a felicidade que algumas pessoas sentem por ver a infelicidade de alguém.
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não ser quem não se é, isto é, ser exatamente o que se é, na justa medida, é coisa trabalhosa.
ser exatamente o que se é (que é o mesmo que não ser quem não se é) é coisa trabalhosa.
pois, para não ser quem não se é, exige-se a disciplina austera & rigorosa de quem, achando pouco simplesmente ser (ser exatamente o que se é), requer o luxo adicional de “parecer”.
as aparências enganam, e as essências também.
as essências enganam porque uma pessoa pode parecer ser essencialmente uma coisa que não é. uma pessoa pode parecer ser, por exemplo, essencialmente delicada & não ser exatamente essencialmente delicada.
e a pessoa que, por exemplo, parece ser essencialmente delicada pode acreditar na própria mentira ao ponto de afirmá-la como uma verdade inquestionável.
as essências enganam, e o “eu” é tão escasso, o “eu” é tão pouco, o “eu” é tão rasteiro, que há que ocupar com alguma coisa tanto espaço (o tanto de espaço que sobra & que acaba por ser preenchido pelo que não se é, pelo que é aparência), e nada como a “negação da negação” para efetuar tão delicada operação.
a delicada operação de ocupar com alguma coisa (já que o “eu” é muito escasso) tanto espaço: a “negação da negação”: ocupar um espaço com aquilo que não se é (a negação do ser, o “não-ser”) & acreditar nessa negação (acreditar naquilo que não se é) é, no fundo, negar a negação: a aparência (que é a “negação” do ser) é negada pelo ser como “aparência” & afirmada como “verdade inquestionável”.
o ser afirma-se na aparência, o ser, portanto, afirma-se na sua negação (no “não-ser”).
afirmando-se na aparência, o ser acaba por negar a aparência como “aparência”, e veste a máscara, e acredita na mentira que inventa (de si) para si: a negação da negação.
e pronto: está completo: o homem feito do ser & do “não-ser”: pronto, completo, no ponto.
o homem essencialmente delicado na aparência, assim como um andróide (autômato de figura humana), apresenta-se imune a suave mari magno & Schadenfreude.
o homem-robô, o homem previamente programado, o homem que obedece aos comandos previamente arquitetados por sua mente: o homem mais o andróide (autômato que tem figura de homem, cujos movimentos imita): ambos imunes a suave mari magno & Schadenfreude: o ser & o não-ser dentro do homem, na mais perfeita sintonia.
o homem: ser & não-ser no mais harmonioso convívio: o ser a ser viço, a ser energia, a ser força, ao não-ser. o ser a serviço, à disposição, do não-ser. o ser a con-viver com a aparência que projeta (de si) para si.
use & abuse (da aparência, do não-ser): a coisa vem com garantia: a “coisa”: aquilo que se projeta (de si) para si: a “coisa”: o não-ser, a aparência.
use & abuse: a “coisa” (o “não-ser”, a “aparência”) vem com garantia; usando & abusando, a “coisa” vem certamente.
use & abuse: a “coisa” vem com garantia: o homem pronto de fábrica, o homem pré-programado, o homem que age sob comandos pré-determinados, o homem feito um produto pré-fabricado (feito um andróide, que é um autômato de figura humana): o luxo adicional de parecer algo que não se é, a procura por alguma coisa que preencha o seu espaço vazio, o homem imune a sentimentos difíceis, complicados, perturbadores, o homem imune a suave mari magno & Schadenfreude.
eu, estudante empírico, estudante que experimenta & observa, fecho o livro. e contemplo.
a contemplação, a observação, do entorno, daquilo onde somos & estamos.
a história humana nos mostra que o conhecimento é fruto da observação & experimentação do mundo.
eis o globo: o planisfério terrestre, o planisfério celeste, o horizonte, redondo, a ilusão dos firmamentos (dos céus, do que enxergamos deles aqui da terra), a ilusão dos firmamentos (de tudo aquilo que usamos de sustentação, de fundamento, alicerce, aos nossos conhecimentos), e a nossa existência, em meio a tudo…
eis o compasso, o esquadro, que traçam, projetam, linhas & desenhos, caminhos exatos, eis a balança, eis a pirâmide, o cone, o cilindro, o cubo, eis o peso, a forma, o volume, a proporção, as equivalências, das coisas no mundo.
e o nosso itinerário, sem régua, compasso ou esquadro, caminhos inexatos, sem uma forma precisa, sem que saibamos ao certo muitas coisas no mundo.
saem os mistérios das suas caixas: desenrola-se o mapa do esqueleto, com os ossos & seus nomes; o mapa do corpo, com suas veias & artérias, vasos que se ramificam e formam tipos de galhos, árvores, e o sangue, de cor azul na página, desenhando sua floresta; o mapa do corpo, com seus órgãos diversos & suas funções diferenciadas, além de enigmáticas: os órgãos são como esfinges certeiras, e certeiras porque, ainda que enigmáticas, cumprem o seu trabalho em prol do funcionamento harmônico do organismo.
hoje, os dinossauros são carros de triunfo, enormes, pesados, suntuosos, reduzidos à armação (ao esqueleto). enquanto isso, no olho profundo do microscópio, a célula se anuncia, e anuncia a vida, o início, alfa, o surgimento.
e o nosso destino…
(será que, um dia, o mesmo destino dos dinossauros? será que, um dia, a humanidade reduzida à sua armação?…)
o professor escreve no quadro: alfa & ômega.
alfa & ômega: respectivamente, a primeira & a última letras do alfabeto grego clássico, letras que, simbolicamente, representam o princípio & o fim, isto é, a totalidade das coisas, a sua durabilidade.
o todo. o eterno.
alfa & ômega: o cristianismo associa a figura de jesus às letras gregas, simbolizando a eternidade de cristo, que: está no começo de tudo (alfa) & tudo acompanha, até o fim do mundo (ômega).
alfa & ômega: o todo. o eterno. o universo.
a luz de sírius, estrela mais brilhante no céu, ainda lança, com seu brilho & as histórias sobre seu brilho, escadas em contínua cascata.
lentamente, subo (as escadas lançadas por sírius), fecho os olhos e lanço-me no espaço & na sua imensa escuridão, onde cabem todos os mistérios do universo, e sonho saber o que não se sabe simplesmente acordado.
simplesmente acordado, e atento, não basta para saber o que não se sabe.
o mundo fala uma língua muda, que a nada responde:
o alfa (o princípio) & o ômega (o fim): de onde? para onde? a que propósito? com que finalidade? alguma? será?
silêncio…
grande aula, a do silêncio.
ensina-nos a ver de longe a vida, sem interrogá-la.
a noite: uma escuridão tão envolvente, parece um exercício de morte:
tudo vai desaparecendo (sem a luz artificial para clareá-la). desaparecemos dos outros, e desaparecemos de nós.
a noite: a escuridão: o sono que nos assalta e que, como a noite, nos envolve num exercício de morte.
o sono é um tipo de noite que nos assalta & envolve.
apenas respiramos. basta cortar esse último fio, fio que nos mantém conectados, fio da respiração, e o tear que somos (tantas as tramas urdidas com os fios da existência) se imobiliza.
a noite esconde a terra, o céu, a casa, os rostos dos senhores.
quando de noite, quando no sono, em que entranha me animo? onde se enrola o novelo da minha memória, em que cofre fica trancafiado?…
(nossas asas estão docemente fechadas e nossos olhos moram no pensamento, longe da realidade mundana que os circunda.)
cada um tem a sua noite. cada coisa.
o dia é um bailarino com sinos & espelhos: a dançar, chamando a atenção de todos para si, balançando os sinos para alardear-se, e refletindo a vida viva, em todos os cantos, nos seus espelhos.
de repente: acordamos. de repente: interrompemos a treva onde aprendíamos, com os sonhos, lembranças; e somos, de repente, uns falsos acordados, porque, ainda que acordados, continuamos a sonhar, fincamos pés no reino das ilusões.
a vida: um palco de ilusões sobrepostas.
que, nesse palco, saibamos bem representar os papéis que nos cabem, e que tais papéis nos levem, sempre, ao encontro de um feliz final.
Sempre pensara em ir
caminho do mar.
Para os bichos e rios
nascer já é caminhar.
Eu não sei o que os rios
têm de homem do mar;
sei que se sente o mesmo
e exigente chamar.
(trecho do poema “o rio”, de joão cabral de melo neto, do livro “serial e antes”.)
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as tantas escrituras sacras que tentam dar conta de explicar o mundo e a existência humana:
os vedas, escritos sagrados do hinduísmo,
o evangelho, obra sagrada do cristianismo,
o alcorão, livro sagrado do islamismo,
mais os livros dos mongóis, seguidores do budismo,
ergueram, juntos, uma pira de poeira rasteira & estrume seco. por sobre a pira, pousaram. e ali permaneceram.
ergueram as escrituras sacras uma pira de poeira rasteira & estrume ressequido: pira que, pelo menos a mim, não serve. (creio que nem para “nada” sirva.)
somente um livro deve ser lido, um único livro consegue dar conta do assunto em questão.
o gênero humano é o leitor do livro.
um livro único, cujas páginas são maiores que o mar, tremem como asas de borboletas (viúvas brancas).
um livro em cujas folhas a baleia salta quando a águia, dobrando a página no canto, desce sobre as ondas, para, após, repousar no leito de um falcão marinho.
nesse livro, lições de uma lei divina: a lei da vida, a lei da natureza, das mudanças constantes, imorredouras.
sobre tudo,
o olhar dos homens, o olhar de cada qual a ler os seus rios, sempre a passar, o olhar peculiar de cada um a vivenciar os seus rios, as suas águas a seguir.
é só pensarmos nos grandes rios do planeta e nos seus homens, e nos seus modos de existir junto a eles, junto aos rios:
o volga, o maior rio da europa; o danúbio, o segundo maior do continente; o yang-tze-kiang, também chamado rio azul, o maior rio da ásia; o nilo, na áfrica, que só perde em extensão para o amazonas; o mississípi, o segundo maior dos estados unidos, que, juntamente ao rio missouri, forma a maior bacia hidrográfica do país; o ganges, um dos principais rios da índia; o zambeze, rio da áfrica austral, que possui as maiores quedas d’água do mundo, as cataratas vitória; o rio óbi, o quarto mais longo da rússia, rio que deságua no mar ártico; o tâmisa, que passa por londres e desemboca no mar do norte, rio de grande importância para a região.
todos esses grandes rios & os seus homens com os seus modos de existir, com a leitura que fazem das suas existências hídricas.
o gênero humano é o leitor do livro, é o leitor do mundo que corre aos seus olhos, é o leitor do mundo que enxerga, e que o abriga. na capa do livro, o timbre do artífice, do criador: o nome de cada um, em caracteres azuis, cor celestial.
o livro único: anos, países, povos, fogem no tempo, como água corrente. a natureza é um espelho móvel. e os deuses: visões da treva.
leiamos com cuidado, carinho & atenção o livro único, volume onde escrevemos os nossos enredos.
já disse o poeta casimiro de brito:
Único livro que não se pode reler: o da vida.
grande beijo!
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Poesia Russa Moderna. organização e tradução: Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman. editora: Perspectiva.)
(autor: Vielimir Khlébnikov.)
Anos, países, povos
Fogem no tempo
Como água corrente.
A natureza é espelho móvel,
Estrelas — redes; nós — os peixes;
Visões da treva — os deuses.
(tradução: Augusto de Campos.)
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O ÚNICO LIVRO
Vi que os negros Vedas,
o Evangelho e o Alcorão,
mais os livros dos mongóis
em suas tábuas de seda
— como as mulheres calmucas todas as manhãs —
ergueram juntos uma pira
de poeira da estepe
e odoroso estrume seco
e sobre ela pousaram.
Viúvas brancas veladas numa nuvem de fumo,
apressavam o advento
do livro único,
cujas páginas maiores que o mar
tremem como asas de borboletas safira,
e há um marcador de seda
no ponto onde o leitor parou os olhos.
Os grandes rios com sua torrente azul:
— o Volga, onde à noite celebram Rázin;
— o Nilo amarelo, onde imprecam, ao Sol;
— o Yang-tze-kiang, onde há um denso lodo humano;
— e tu, Mississípi, onde os ianques
trajam calças de céu estrelado,
enrolando as pernas nas estrelas;
— e o Ganges, onde a gente escura são árvores de ciência;
— e o Danúbio, onde em branco homens brancos
de camisa branca pairam sobre a água;
— e o Zambeze, onde a gente é mais negra que uma bota;
— e o fogoso Óbi, onde espancam o deus
e o voltam de olhos para a parede
quando comem iguarias gordurosas;
— e o Tâmisa, no seu tédio cinza.
O gênero humano é o leitor do livro.
Na capa, o timbre do artífice —
meu nome, em caracteres azuis.
Porém tu lês levianamente;
presta mais atenção:
és por demais aéreo, nada levas a sério.
Logo estarás lendo com fluência
— lições de uma lei divina —
estas cadeias de montanhas, estes mares imensos,
este livro único,
em cujas folhas salta a baleia
quando a águia dobrando a página no canto
desce sobre as ondas, mamas do mar,
e repousa no leito do falcão marinho.
pessoa responsável pela existência, em termos práticos, deste espaço, “o prosa em poema”,
este post é dedicado inteiramente a você.
devo esta publicação ao chico há muito tempo; ela foi prometida no início de tudo, e só foi “existir” agora (rs).
mas é aquela tal história: paulo sabino: um homem que tarda, mas não falha (rs).
chicão, finalmente (rs)!
eu e o francisco ferraz somos apaixonados pela canção, e, principalmente, por este poema-canção.
estas linhas, que considero primorosas, traduzem a minha visão acerca do brasil. enxergo este país exatamente desta maneira.
caetano veloso parte dos olhares estrangeiros, dos olhares que vêm de fora, dos olhares alheios, estranhos, não nativos, para a construção dos versos que acabam por desnudar o seu olhar.
através dos olhares estrangeiros, o seu olhar é desfraldado.
enquanto o pintor paul gauguin e o compositor cole porter, em visita à baía de guanabara, sentiram-se deslumbrados, porque a enxergaram como bela, o antropólogo claude lévis-strauss detestou-a; pareceu-lhe, a baía, uma boca banguela.
para um tipo de olhar, bela; para outro, o inverso, banguela.
bela & banguela: adjetivos antagônicos utilizados para a qualificação da baía de guanabara.
daí, a pergunta: mas o que seria, exatamente, uma coisa bela?
caetano interroga-se a respeito do seu sentimento pela guanabara: “e eu, menos a conhecera, mais a amara?”
e por que ” menos a conhecera, mais a amara”? ama-se mais quanto menos se conhece? a intensidade do amor aumenta quanto menos conhecido aquilo que se ama?
há a célebre sentença que diz: o amor é cego. isto significa afirmar que o amor enxerga: nada.
mas será? será que o amor enxerga: nada?
o amor é cego (falam). e ray charles também é cego. stevie wonder, outro cego. e o albino hermeto (pascoal) não enxerga mesmo muito bem.
três exemplos para se dizer que, na cegueira, enxerga-se muito. (afinal, como desdizer que ray charles, stevie wonder & hermeto pascoal, grandes homens de visão, grandes visionários?)
a constatação, portanto, de que, mesmo amando, isto é, mesmo com o grande amor que nutre pela baía, caetano não deixa de enxergar bem, não deixa de ser um visionário.
e segue: o que seria uma coisa bela? uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem, uma arara?… o quê?
de qualquer modo, fica a verificação, a averiguação, de caetano sobre a baía que tanto ama, baía que o deixa cego de tanto vê-la & tê-la estrela: ao mesmo tempo bela & banguela.
ele parte da baía de guanabara para traçar a sua visão acerca do brasil: belo & banguela, feito a guanabara.
assim, com o olhar mergulhado em adjetivos antagônicos para com a baía, para com o brasil, inicia a revelação de um raro pesadelo, de um sonho ruim, que busca, sempre: o belo & o amaro, isto é, os adjetivos antagônicos.
junto ao sonho, a imagem que não foi sonhada (ainda que, no sonho, utilizada): a praia de botafogo, um cenário lindo, que agrega à sua paisagem o pão de açúcar, era uma esteira de areia branca & óleo diesel sob os tênis. tudo quanto havia de aurora no cenário: o morro famoso o menos óbvio possível, com umas arestas insuspeitadas (o morro visto como se pela primeira vez, visto como se por um olhar forasteiro, por um olhar estrangeiro); o morro banhado na áspera luz laranja contra a “quase-não-luz” do branco das areias e das espumas (escurecido, degradado o branco, pelo tanto de óleo diesel).
verificar uma paisagem tão encantadora, e, ao mesmo tempo, tão maltratada: tudo quanto havia, então, de aurora…
caetano prossegue o sonho e afirma ser um “cego às avessas”: não necessita olhar para trás a fim de saber o que acontece; vê absolutamente tudo o que deseja.
às suas costas, nas areias da praia de botafogo (com o pão de açúcar ao fundo), descreve um velho com cabelos nas narinas & uma menina ainda adolescente e muito linda.
do velho & da menina, mesmo podendo, caetano não deseja ver aquilo que, neles, não lhe agrada: o terno negro (do velho) e os dentes “quase-não-púrpura” (da menina). e pede que o ouvinte/leitor pense a imagem de modo impressionista (como pensava o pintor francês georges seurat), que trabalha com as formas naturais e sua disposição diante da incidência de luz, elaborando contrastes com as cores. alerta, o compositor, para que a paisagem do sonho não seja encarada no termo surrealista, que mexe com o irracional; pois o surrealismo é uma outra “onda”, outra “viagem”, é uma outra história.
o cenário pintado (a praia de botafogo, um velho de terno negro com cabelos nas narinas & uma menina ainda adolescente e muito linda às costas do compositor) é delineado em tons impressionistas, com a paisagem natural (praia e morro), com seus jogos de luzes & cores, com os contrastes cromáticos, e o claro-escuro, o belo-feio, tudo junto, amalgamado, e não em tons surrealistas. não há surrealismo nenhum aqui (mesmo tratando-se de um total devaneio).
segue caetano, dizendo que ouve vozes, dizendo que os dois (o velho & a menina) lhe dizem, num duplo som, como que sampleados num sinclavier, as seguintes sentenças:
— é chegada a hora da reeducação do cristianismo & suas religiões, para que estes arrebanhem ainda mais cordeiros para os seus rebanhos (!);
— o certo é louco tomar eletrochoque (!);
— o certo é saber que o certo é certo, ou seja: engolir sem questionar (!);
— o macho (o homem heterossexual, de cunho procriativo) adulto, branco, sempre no comando, mandando & desmandando conforme seus desejos (!);
— e para o resto, que é a escória, para o resto, que são os que não interessam, o resto (!);
— reconhecer o valor necessário do ato hipócrita, isto é, reconhecer o valor indispensável do ato falso, do ato mentiroso, do ato enganador (!);
— riscar os índios (!), nada esperar dos pretos (!);
frente a todos os horrores proferidos pelo velho & pela menina, afirma caetano seguir ainda mais sozinho, caminhando contra o vento, nadando contra a maré, e entender o centro, o núcleo, a idéia principal, do que dizem aquele cara (o velho) e aquela (a menina):
o que disseram é um desmascaro. o que disseram é um singelo grito:
“o rei está nu!”
o que disseram, aquele cara & aquela, desmascara um brasil que existe por trás da terra boa & gostosa, terra da morena sestrosa. por trás do “meu brasil-brasileiro”, do brasil bom & gostoso, existem setores da sociedade brasileira que pensam exatamente o que está no “desmascaro”, o que está no “singelo grito”, do velho & da menina (que, para mim, representam vozes saídas de dentro do brasil: o velho, a figura de um brasil antigo, arcaico, preso a conservadorismos; a menina ainda adolescente & muito linda, a figura de um país do futuro, um país que tem tudo para tornar-se uma grande potência).
setores da sociedade brasileira que pensam assim, mas que não têm a coragem de confessar: instituições religiosas cristãs, racistas, sexistas, homofóbicos, corruptos, organizações tradicionalistas.
o rei está nu, o rei foi desmascarado.
e o rei, nu, é mais bonito; ante sua nudez, tudo se cala.
aqui, a compreensão de que, acima de tudo, a lucidez para os reconhecimentos: o rei não é somente belo como também não é somente banguela. o rei é, ao mesmo tempo, belo & banguela; o rei abriga, em si, os adjetivos antagônicos, o rei abriga lindezas & feiúras.
brasil: terra boa & gostosa, da morena sestrosa, porém, terra também de corruptos, de homofóbicos, conservadores & sexistas.
o reconhecimento mais abrangente da figura do rei torna-o mais bonito.
é melhor que assim seja: ser o lobo do lobo do homem.
(eu também sinto dessa forma. não me vejo amando menos o brasil porque reconheço as suas mazelas. não. reconhecê-las, e amando-o, me estimula a extirpá-las.)
e avança caetano em seu caminho, amando o azul, o púrpura e o amarelo, amando cores celestiais, e entre o seu ir, isto é, entre a sua jornada, entre o seu caminhar, e o caminho do sol, há um aro, há um elo que os une.
apostar na luz, no brilho, apostar no elo, no aro que se configura com o astro-rei, luminoso, caloroso: o sol. afinal, gente é para brilhar, não é para morrer de fome.
pronto, chicão! publicação todinha sua (rs). (e para quem mais a desejar.)
sigamos lúcidos & amorosos!
beijo nos senhores!
um outro, especialíssimo, em você, francisco ferraz!
Os trechos seguem porque, de vez em quando, ao conversar com queridos amigos, estes suscitam vários dos meus questionamentos e questões.
Às vezes, percebo que um leitor “leigo”, ao ler um clássico ou autor reconhecido pela “intelectualidade acadêmica”, tende, pode tender, a concordar com TUDO o que dizem as linhas, por sentir o peso do respeito que o “nome” pode ter, como se tudo o delineado fossem dogmas, conceitos com os quais deve-se concordar, como se os conceitos, no livro, fossem sagrados, como se o livro fosse um “livro sagrado”, qual a Bíblia para os cristãos.
Só que devemos ter em mente, ao ler qualquer autor, que ele, por mais brilhante, inteligente e divisor de águas que seja, em determinados aspectos pode cometer alguns equívocos, enunciar idéias que mereçam refutação. É o caso, ao meu ver, de quase todos, senão de todos, os autores das Ciências Sociais e Filosofia.
Nietzsche, grande filósofo, extraordinário pensador, não foge à regra. Contribuiu muito com a sua obra, defendendo o uso da razão crítica e a extinção do que se projete de forma obscurantista, como ocorre com as religiões cristãs e seus preceitos. Todavia, ao mesmo tempo, junto com as infinitas e imprescindíveis contribuições e achados, eu, por exemplo, lendo alguns trechos de textos ou textos inteiros, possuo uma penca de críticas e reavaliações, uma série de discordâncias.
O que pretendo com este texto é somente alertá-los para o fato de que, por mais bacana, respeitado, unânime e bem intencionado o autor, a sua obra deve ser lida com o senso crítico em puro estado de atenção, porque ninguém está aqui, neste mundo, para escrever “bíblias”, isto é, para escrever livros que não possam ser contestados (contestados completamente ou em determinadas idéias), “livros-dogmas”. Afinal, como reter a verdade no olhar?
Por isso, para ilustrar o que escrevi, trago trechos de três textos do genial Fernando Pessoa, apresentados a mim pelo meu super “guru” Antonio Cicero, algumas verificações do bardo, com as quais concordo inteiramente, sobre o pensador em questão.
Entendam, queridos: não estou, nem desejo, não é esta a intenção, diminuir a importância de nada nem de ninguém, e sim salientar que as leituras, por mais pertinente o assunto, devem ser feitas com cuidado e senso crítico aguçados. Isso tem a ver com a formação nossa, com a construção nossa, com a estruturação das nossas personas.
Ronaldo Pelli, meu queridíssimo amigo, meu amado, o Nietzsche, na minha cuca, devo a você, devo a uma conversa que mantivemos há um bom tempo sobre ele.
Beijo em todos!
O preto.
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“‘A alegria’, diz Nietzsche, ‘quer eternidade, quer profunda eternidade’. Não é nem nunca foi assim: a alegria não quer nada, e é por isso que é alegria. A dor, essa, é o contrário da alegria, como a concebia Nietzsche: quer acabar, quer não ser. O prazer, porém, quando o concebemos fora da relação essencial com a alegria ou com a dor, como o concebe o autor deste livro, esse, sim, quer eternidade; porém quer a eternidade num só momento”.
De: PESSOA, Fernando. “Antônio Botto e o ideal estético em Portugal” (1922). In: Textos de Crítica e de Intervenção. Lisboa: Ática, 1980. _______________________________
“O ódio de Nietzsche ao cristianismo aguçou-lhe a intuição nestes pontos. Mas errou, porque não era em nome do paganismo greco-romano que ele erguia o seu grito, embora o cresse; era em nome do paganismo nórdico dos seus maiores. E aquele Diónisos, que contrapõe a Apolo, nada tem com a Grécia. É um Baco alemão. Nem aquelas teorias desumanas, excessivas tal qual como as cristãs, embora em outro sentido, nada devem ao paganismo claro e humano dos homens que criaram tudo o que verdadeiramente subsiste, resiste e ainda cria adentro do nosso sistema de civilização.”
De: PESSOA, Fernando. “Prefácio de Ricardo Reis”. In: Páginas íntimas e de auto-interpretação. Lisboa: Ática, 1996.
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“O próprio Nietzsche asseverou que uma filosofia não é senão a expressão de um temperamento.
Não é assim, suficientemente. As teorias de um filósofo são a resultante do seu temperamento e da sua época. São o efeito intelectual da sua época sobre o seu temperamento. Outra coisa não podia suceder (ser).
Assim, pois, a filosofia de Friedrich Nietzsche é a resultante do seu temperamento e da sua época. O seu temperamento era o de um asceta e de [um] louco. A sua época no seu país era de materialidade e de força. Resultou fatalmente uma teoria onde um ascetismo louco se casa com uma (involuntária que fosse) admiração pela força e pelo domínio. Resulta uma teoria onde se insiste na necessidade de um ascetismo e na definição desse ascetismo como um ascetismo de força e de domínio. Donde a assumpção da atitude cristã da necessidade de dominar os seus instintos, tornada aqui – mercê da contribuição fornecida pela loucura do autor – a necessidade de dominar toda a espécie de instintos, incluindo os bons, torturando a própria alma, o próprio temperamento (noção delirante).”
De: PESSOA, Fernando. Páginas de Estética e de Teoria Literárias. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1966.
estes poemas seguem porque me fizeram refletir sobre questões que dizem respeito ao modo de vida que levamos.
drummond alerta sobre, põe em xeque, algumas “regras” estabelecidas por uma maneira judaico-cristã de ver e entender o mundo. culpa, pecado, castigo, justiça divina, a existência de um deus, todos esses conceitos, de uma maneira ou de outra, estão inseridos no nosso quotidiano e na convivência nossa com o resto do mundo.
até que ponto ser uma boa pessoa, aos olhos de um sistema cristão, garante algum bônus (espiritual e material)?, garante a existência de uma justiça divina?, um bem-estar nesta nossa vida?
até que ponto devemos anular desejos e aspirações em prol de alguma recompensa provinda dos céus?
as hipóteses para que um deus, supondo a existência deste, criasse um mundo como o nosso são como plumas: tão delicadas, tão difíceis de se sustentarem, que é bem possível que este deus, que nem ele saiba por que isso tudo foi gerado, a que finalidades atende. portanto, tais hipóteses, como plumas, caem, despencam.
então, já que a vida se desnuda sem razão de ser, sem sentido, sem norte – são tantas as possibilidades, tantos os (divergentes) caminhos tomados para se fazer valer uma existência… -, estejamos preocupados em viver, simplesmente viver, respeitando-nos, ou seja, respeitando as nossas vontades e aspirações, e as vontades e aspirações alheias. de resto, é viver e deixar viver. até hoje, que eu saiba, ninguém bateu à porta dos que habitam este planeta, dizendo “cá estou, muito prazer, me chamo deus”, como bem escreveu fernando pessoa.
antonio cicero, amigo e poeta de que muito gosto, possui versos que declaram:
Ninguém vai nos trazer
nem recompensa, nem conta,
no final.
Ninguém vai nos dizer,
pra nós, o que é que conta,
e, afinal,
pra esclarecer:
prefiro pôr as cartas sobre
a mesa:
não dou meu desejo a Deus.
Feroz é a natureza;
feroz, todo céu.
(Próxima Parada, composição de Marina Lima e Antonio Cicero)
uma poeta, também por mim muito admirada, sophia de mello breyner, escreveu que há muito do divino no real. ou seja, se quisermos, não precisamos procurar a divindade na transcendência. não; a divindade encontra-se aqui, no plano da matéria, está ao nosso lado, é de carne, osso e carvão. basta olhar o mundo, admirar a maravilha que é o que, aqui, entre nós, está. o mais, não tem sentido, pois não há “razão de ser”.
sejamos bacanas na vida por respeito ao outro e não por um lugar ao lado do senhor, em sua morada, tão longe de nós.
enfim. aproveitem bastante as linhas que seguem. são de uma sabedoria…