SOMOS TROPICÁLIA — 50 ANOS DO MOVIMENTO — 3º CICLO: JULIANA LINHARES, MIHAY, HELIO MOULIN E SALGADO MARANHÃO — PARQUE INDUSTRIAL (TOM ZÉ)
25 de abril de 2017

(Os participantes com Gal e Caetano)

(Os participantes — em pé: Salgado Maranhão e Juliana Linhares, sentados: Helio Moulin e Mihay — com o busto do Guilherme Araújo e a fotografia da Gal — Todas as fotos: Elena Moccagatta)

(Na “Agenda da semana” do caderno cultural do jornal O Globo, um dia antes da estréia)

(Na coluna “Gente Boa”, do caderno cultural do jornal O Globo)
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Alô alô! Alegria alegria! É chegada a hora! Amanhã, quarta-feira (26/04), estréia da 3ª etapa de encontros do projeto “Somos Tropicália”, com a atriz e cantora Juliana Linhares (cantora e integrante da banda “Pietá” e do projeto “Iara Ira”, ao lado das cantoras Júlia Vargas e Duda Brack), o cantor, compositor e videomaker Mihay (o Mihay já cantou com o Chico César, excursionou com o João Donato, e tem, no seu segundo disco, participação da Tulipa Ruiz, Mariana Aydar, do Robertinho Silva, Kassin, e do próprio João Donato, entre outros), o instrumentista-violonista Helio Moulin (o Hélio é filho do monstro violonista e guitarrista da música popular brasileira e do jazz Helio Delmiro, que tocou com Elis Regina, Clara Nunes, Milton Nascimento, a diva da música norte-americana Sarah Vaughan, entre outros), e o poeta vencedor do prêmio Jabuti de poesia (o mais importante prêmio literário, pelo seu belíssimo livro “Ópera de nãos”) Salgado Maranhão.

Abaixo: o serviço completo (datas, horário, local), um vídeo feito pelo Mihay depois de um dos ensaios que ele, a Juliana Linhares (a musa do vídeo) e o Helinho Moulin fizeram para as apresentações, e um poema-canção de um gênio tropicalista.

Venham todos!

 

Serviço:

Gabinete de Leitura Guilherme Araújo apresenta –

SOMOS TROPICÁLIA – 50 anos do movimento

Juliana Linhares, Mihay, Helio Moulin e Salgado Maranhão / Pocket-show e leitura de poesias
Dias 26/04 (4ª-feira) e 27/04 (5ª-feira)
A partir das 19h30
Rua Redentor, 157 Ipanema
Tel infos. 21-2523-1553
Entrada franca c/ contribuição voluntária
Lotação: 60 lugares
Classificação: livre

Link do evento no Facebook: http://www.facebook.com/events/1881892262099199/
Página do projeto no Facebook: http://www.facebook.com/somostropicalia/

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(do site: Youtube. projeto: Somos Tropicália. participações: Juliana Linhares, Mihay, Helio Moulin e Salgado Maranhão. vídeo: Mihay. no vídeo: Juliana Linhares.)

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parque industrial: área urbanizada destinada a indústrias. mas, sob a luz tropicalista, “parque industrial” pode ser entendido como um lugar de diversão (a que são destinados os parques não-industriais), um lugar de distração, porém distração tamanha que chega a ser alienante.

parque industrial: lugar de desenvolvimento tecnológico, porém, no brasil, sob a luz tropicalista, um lugar de desenvolvimento subdesenvolvido, capenga, deficitário, pois abandona a sua população à miséria e ao subdesenvolvimento.

o “parque” industrial, o avanço da industrialização, como a salvação da lavoura: é o que vem trazer nossa redenção, nossa salvação.

temos as propagandas da indústria, enganosas, vendendo felicidade em prestações a perder de vista, distribuindo alegria padronizada e enlatada, produzindo alienação com seus reality shows e seus debates que em nada interessam.

a revista moralista, veja você, a revista lida e mantida pelo cidadão de bem, traz uma lista dos pecados da vedete, mulher que cantava e dançava nos antigos teatros-revistas e musicais. porém, não lista a violência que escorre solta nas páginas dos jornais (um banco de sangue encadernado), a violência, essa, sim, capaz de machucar, maltratar, torturar, sangrar, matar.

e, no fim das contas, tudo isso, todos os (d)efeitos colaterais são feitos aqui, no brasil, ou, como se coloca nos produtos industrias a fim de identificar a sua origem de fabricação, “made in brazil”, feito no brasil, todos os (d)efeitos colaterais desse tipo de organização econômica (que acaba por ditar a social) são produzidos pelo avanço industrial, pelo parque industrial, por esse tipo de organização consumista, onde tudo, no fim das contas, não passa de “venda e compra”.

o parque industrial: vem trazer nossa redenção?…

beijo todos!
paulo sabino.
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(do encarte do álbum: Tropicália ou Panis et circenses. autor: Tom Zé.)

 

 

PARQUE INDUSTRIAL

 

Retocai o céu de anil
Bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação
Despertai com orações
O avanço industrial
Vem trazer nossa redenção

Tem garotas-propaganda
Aeromoças e ternura no cartaz
Basta olhar na parede minha alegria
Num instante se refaz

Pois temos o sorriso engarrafado
Já vem pronto e tabelado
É somente requentar e usar
É somente requentar e usar
Porque é made, made, made, made in Brazil

Retocai o céu de anil
Bandeirolas no cordão
Grande festa em toda a nação
Despertai com orações
O avanço industrial
Vem trazer nossa redenção

A revista moralista
Traz uma lista
Dos pecados da vedete
E tem jornal popular
Que nunca se espreme
Porque pode derramar

É um banco de sangue encadernado
Já vem pronto e tabelado
É somente folhear e usar
É somente folhear e usar

Porque é made, made, made, made in Brazil
Porque é made-made-made-made in Brazil
Porque é made-made-made-made in Brazil
Made in Brazil
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(do site: Youtube. álbum: Tropicália ou Panis et circenses. artista: Vários. canção: Parque Industrial. autor: Tom Zé. intérpretes: Gilberto Gil, Gal Costa, Caetano Veloso e Mutantes. gravadora: PolyGram.)

ELEGIA (1938)
10 de setembro de 2014

Pessoas na rua

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elegia: poema lírico de tom terno & triste.

uma elegia feita ao ano de 1938 & transportada ao ano de 2014:

tu, pessoa comum, de carne & osso & coração assim como eu, trabalhas sem alegria, sem ânimo, para um mundo caduco, trabalhas sem alegria para um mundo demente, insano, decrépito, onde as formas — formas de trabalho, modelos de relação, estilos de vida — & as ações — o que priorizar, o que valorizar, o que desprezar, o que aniquilar — não encerram nenhum exemplo, onde as formas & as ações não encerram, não contêm, não incluem, nenhum exemplo.

tu, pessoa comum, de carne & osso & coração assim como eu, praticas laboriosamente, praticas sofridamente, triste, angustiado, os gestos universais, os gestos comuns a todos nós, seres de carne & osso & coração, sentes calor & frio, sentes a falta de dinheiro, fome & desejo sexual.

tu, pessoa comum, de carne & osso & coração assim como eu, praticas laboriosamente os gestos universais, os gestos comuns a todos nós, enquanto heróis — os homens de destaque, homens prestigiosos, de atitudes “nobres” — enchem os parques da cidade em que te arrastas & preconizam, recomendam, alardeiam: a virtude (ser bom, aceitando o que é empurrado goela abaixo), a renúncia (abdicar de prazeres pelo trabalho, ainda que sufocante, ainda que asfixante, ainda que opressivo), o sangue-frio (manter a calma diante de toda a calamidade que é a tua vida), a concepção (acreditar & investir na criação, na formulação, na produção, deste mundo caduco).

à noite, se neblina, se chuvisca, se garoa, os heróis (os homens de destaque, homens prestigiosos, de atitudes “nobres”) abrem guarda-chuvas de bronze, guarda-chuvas tão poderosos que os protegem de todo & qualquer respingo deste mundo, ou se recolhem aos volumes de bibliotecas sinistras, bibliotecas nefastas, maléficas, assustadoras, bibliotecas que ensinam os meandros do ter mais do que ser, do capital, da riqueza, do papel-moeda, das cifras, da especulação financeira.

tu, pessoa comum, de carne & osso & coração assim como eu, amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra (à noite, dormes o teu sono profundo, cansado) & sabes que, dormindo, os problemas, os pesares todos, te dispensam de morrer. mas o terrível despertar (“terrível” porque mais um despertar em que trabalharás para este mundo caduco) prova a existência da “grande máquina” em que o mundo se transformou (provando, assim, a sua grande caducidade) & ele, o terrível despertar, te repõe, pequenino, ínfimo, limitado, em face de indecifráveis palmeiras, palmeiras altaneiras, palmeiras enigmáticas, palmeiras no mundo caduco para quê?

tu, pessoa comum, de carne & osso & coração assim como eu, caminhas entre mortos (entre os teus, que já partiram deste mundo caduco) & com eles conversas sobre coisas do tempo futuro — teus planos, teus anseios — & negócios do espírito, assuntos que dizem respeito à tua existência. a literatura, arte do livro que te livrou do mundo caduco, arte a que recorreste na tentativa de amenizar dores & dissabores, estragou as tuas melhores horas de amor, e ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear (de semear as tuas horas de amor).

tu, pessoa comum, de carne & osso & coração assim como eu, entristecido, desanimado, sentindo-se um fracassado: coração orgulhoso, coração vaidoso, coração empertigado, tens pressa de confessar tua derrota & adiar, para outro século, a felicidade coletiva.

coração orgulhoso, coração vaidoso, coração empertigado, tens pressa de confessar tua derrota & adiar, para outro século, a felicidade coletiva: confessar a própria derrota é confessar a derrota de todo um tempo, de todo um sistema, de todo um modelo, de todo um estilo, de toda uma concepção de vida, que, ao adiar a felicidade coletiva, instaura a infelicidade coletiva, instaura o mal-estar do grupo, a tristeza & o desânimo de todo & qualquer ser humano comum, de carne & osso & coração, assim como eu, assim como você, leitor.

tu, pessoa comum, de carne & osso & coração assim como eu, aceitas a chuva, a guerra, o desemprego & a injusta distribuição porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de manhattan, ilha onde se localiza wall street, rua da ilha célebre, onde se situa a bolsa de valores de nova iorque, a mais importante do mundo, por isso mesmo, ilha considerada o centro nervoso da economia mundial.

tu, pessoa comum, de carne & osso & coração assim como eu, trabalhas sem alegria para um mundo caduco, onde as formas & as ações não encerram nenhum exemplo: por isso, eu & tu, nós, temos que cavar, temos que batalhar, temos que alcançar, maneiras, modos, formas & ações que neutralizem todos os malefícios do mundo demente, insano, decrépito, para o nosso próprio bem, e porque a existência, até onde se sabe, é uma só, e é melhor que a façamos valer a pena, valer as dores & dissabores.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Antologia poética. autor: Carlos Drummond de Andrade. editora: Record.)

 

 

ELEGIA 1938

 

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

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(do site: Youtube. Caetano Veloso interpreta o poema Elegia 1938, de Carlos Drummond de Andrade.)

A CERTEZA DE UMA INCERTEZA
27 de maio de 2014

Vandeco, comigo, nas Paineiras

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hoje, que a noite pulsa tranqüila dentro do meu quarto, busco a tranqüilidade de coisa nenhuma, de coisa nenhuma porque coisa inerte, coisa inanimada, tranqüilidade como a que observamos nas pedras: sua constituição maciça, inteiriça, inerte, inanimada, silenciosa, parada no tempo, pregada ao chão.

busco a tranqüilidade de coisa nenhuma, inerte, inanimada, por sentimentos de cores apagadas: apesar de sentimentos coloridos, o colorido é sem cor, como o colorido da tranqüilidade pétrea: pois que a tranqüilidade da rocha, um ente inanimado, só exterior, sua tranqüilidade parada no tempo, pregada ao chão, gera, nela mesma, sentimentos de cores apagadas.

(tranqüilidade de coisa nenhuma só pode gerar sentimentos de cores apagadas.)

este sol que mina, este sol que se espalha, em mim, sol frio (de sentimentos de cores apagadas), este sol que se propaga por todo o resto (por tudo o que enxergo como mundo), faz-me sentir a necessidade inútil ao mundo, à humanidade — sou incapaz de evitar catástrofes nem, ao menos, de dar por elas.

a necessidade inútil ao mundo, à humanidade: não possuo o poder de decisões importantes no tabuleiro político & econômico mundano, não posso salvar vidas efetivamente, não posso assinar decretos nem leis em prol da melhoria das condições existenciais do bicho homem.

mas posso, ao menos, escrever, posso, ao menos, apresentar estas linhas, aos senhores, como faço regularmente.

compreendo, mais do que nunca, que a vida é, e sempre será, uma parte do desconhecido, uma parte do inalcançável, do impenetrável (feito tranqüilidade de pedra), assentada (a tal parte do desconhecido de que se constitui a existência) em tudo que resta & rasteja.

a certeza de uma incerteza insolúvel, incerteza sem solução: a morte? a vida? deus? o universo?

a certeza de uma incerteza insolúvel, o ponto com nó, o ponto sempre embaraçado: a morte? a vida? deus? o universo?

portanto, almejar a viagem de poder debruçar à janela (já que a mim não me foi dado o poder de direção do mundo nem tampouco o poder de direção do universo), condutor-passageiro fervoroso do caminho a ser vislumbrado, condutor-passageiro fervoroso (que exala grande calor, que denota intensidade) do caminho que sigo trilhando, dia-a-dia, com mãos & pés.

em nome dela, da vida que se renova em cada cova, em cada fenda aberta (seja para o plantio da semente de algo que florescerá, seja para o sepultamento de algo que não nos serve mais), minha poesia de navio, de barco, minha poesia itinerante, errática, minha poesia destinada a navegar sempre; em nome dela, da vida que se renova em cada cova, em cada fenda aberta, minha poesia vela, cuida, zela.

em nome dela, da vida que se renova em cada cova, em cada fenda aberta (seja para o plantio da semente de algo que florescerá, seja para o sepultamento de algo que não nos serve mais), minha poesia de navio, de barco, minha poesia “vela”, minha poesia peça de tecido usada para a propulsão eólica da embarcação em que sigo singrando os mares da vida, eu, o antinavegador de moçambiques, goas, calecutes.

beijo todos!
paulo sabino.
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(Autor: Paulo Sabino.)

 

 

A CERTEZA DE UMA INCERTEZA

 

Hoje, que a noite pulsa tranqüila
Dentro do meu quarto,
Busco a tranqüilidade de coisa nenhuma, inerte, inanimada,
Por sentimentos de cores apagadas.
Este sol que mina em mim,
Propagando-se por todo o resto,
Faz-me sentir a necessidade inútil
Ao mundo, à humanidade —
Sou incapaz de evitar catástrofes
Nem, ao menos, de dar por elas.
Compreendo, mais do que nunca,
Que a vida é e sempre será
Uma parte do desconhecido,
Assentada em tudo que resta e rasteja.
A certeza de uma incerteza
Insolúvel, o ponto com nó.
Portanto, almejar a viagem
De poder debruçar à janela,
Condutor-passageiro fervoroso,
Do caminho a ser vislumbrado.

O MENINO AZUL
27 de março de 2014

O Menino Azul

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o menino azul que me habita o peito, cansado dos desmandos & injustiças cometidos por aqueles que se consideram os donos do poder (político, econômico, de informação), sufocado pelas dores & dissabores causados por aqueles que se consideram os donos do poder (político, econômico, de informação), o menino quer um burrinho para passear. um burrinho manso, que não corra nem pule, mas que saiba conversar.

o menino azul que me habita o peito quer um burrinho que saiba dizer o nome dos rios, das montanhas, das flores — de tudo o que aparecer.

o menino azul que me habita o peito quer um burrinho que saiba inventar histórias bonitas, com pessoas & bichos & com barquinhos no mar.

e os dois, o menino azul que me habita o peito & o seu burrinho, sairão pelo mundo, que é como um jardim, apenas mais largo & talvez mais comprido & que não tenha fim.

quem souber de um burrinho desses, pode escrever à rua das casas, número das portas, carta endereçada ao menino azul que não sabe ler.

o menino azul que me habita o peito não sabe ler, sabe somente sentir.

o menino azul que me habita o peito tem apenas duas mãos & o sentimento do mundo.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Poesia completa — volume II. autora: Cecília Meireles. organização: Antonio Carlos Secchin. editora: Nova Fronteira.)

 

 

O MENINO AZUL

 

O menino quer um burrinho
para passear.
Um burrinho manso,
que não corra nem pule,
mas que saiba conversar.

O menino quer um burrinho
que saiba dizer
o nome dos rios,
das montanhas, das flores
— de tudo o que aparecer.

O menino quer um burrinho
que saiba inventar
histórias bonitas
com pessoas e bichos
e com barquinhos no mar.

E os dois sairão pelo mundo
que é como um jardim
apenas mais largo
e talvez mais comprido
e que não tenha fim.

(Quem souber de um burrinho desses,
pode escrever
para a Rua das Casas,
Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.)

 

A AÇÃO DOS BLACK BLOCS NESTA HORA
10 de setembro de 2013

Caetano Veloso_Black Bloc

Paulo Sabino_Black Bloc

(Nas fotos, o poeta-compositor Caetano Veloso & o poeta Paulo Sabino.)
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Ah, é? Então quer dizer que você SOFREU na ditadura militar, APANHOU, VIU os maiores absurdos?

Ah, é? Então quer dizer que, à época da ditadura militar, você SENTIU dor, REVOLTOU-se, CLAMOU por justiça?

Pois é, mas tudo isso no passado… Todos os verbos (que denotam AÇÃO), aqui, estão no pretérito.

Vamos parar de legitimar o que pensamos HOJE (que é o que REALMENTE importa) com ações do passado.

Ferreira Gullar também LUTOU & SOFREU na ditadura militar & hoje vai aos jornais para dizer que os empresários são, na área econômica, uma espécie de artistas no modo de conduzir o modelo econômico vigente…

Aí me dá uma tristeza imensa… Artistas?! Empresários?! Só se forem do terror, do horror, das recessões econômicas, das mazelas sociais!

O jornalista Marcelo Rubens Paiva escreveu um texto para o jornal “Estadão” no qual legitima a sua postura anti-black blocs apoiado em ações suas que ficaram no passado. Acho isso o fim.

Mobilização social, por conta de violências praticadas pelo Estado, possui uma dose de violência. Isso tem a ver com aquele conhecimento mais antigo que a vovó: gentileza gera gentileza; e violência, obviamente, violência. Não se pode esperar protestos com flores & bandeiras brancas, por parte de toda a massa que vai às ruas, quando muitos são tratados com extrema violência nos seus cotidianos, quando, TODOS, vivemos num Estado ESCROTO & FILHO DA PUTA como o Brasil em diversos aspectos.

O MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), como bem escreveu um leitor do texto do Marcelo Rubens Paiva, “com seu pleito por terra (até certo ponto muito justo), invade propriedades privadas levando nas mãos foices e enxadas e, algumas vezes, depredam a propriedade e o plantio ali feito. Isso é legítimo.”

Fico pensando: possivelmente os que bradam, veementes, contra as ações dos black blocs, se moradores do campo, ficariam indignadíssimos com a postura do campesinato ligado aos movimentos sociais em prol de uma distribuição de terras mais igualitária. Portanto, a “depredação” & o “quebra-quebra” incomodam porque acontecem do ladinho das suas confortáveis residências urbanas. É muito mais bacana apoiar a causa do MST ou a dos índios, quando também reagem de forma violenta aos abusos cometidos por grandes latifundiários, porque tais formas de protestos acontecem lááááááá no “fim do mundo”, sem o perigo & a ameaça de que o sangue jorrado respingue nos belos apartamentos da zona sul do Rio de Janeiro.

Escreve, ainda, o leitor que bem responde ao texto do Marcelo Rubens Paiva: “colocar uma máscara não é sinônimo de vandalismo. Nem todos os mascarados são vândalos. Muitos usam máscaras pra se proteger da pimenta, do gás e do FICHAMENTO CLANDESTINO feito por policiais e militares sem identificação e com seus rostos cobertos.”

Sabemos das ações pra lá de ARBITRÁRIAS, seja no campo, seja na cidade, utilizadas pelas milícias do Estado, demasiadamente VIOLENTAS.

Eu quero a paz. Eu prefiro a paz. Sou um homem de delicadezas, portanto, um homem pacífico. Mas acho a indignação extrema extremamente proporcional ao estado de violência gerado pelo Estado.

A cada ação, a sua devida re-ação.

A população é maltratada pelo Estado (ação) & isso, naturalmente, evidentemente, pode gerar, em alguns, uma re-ação na mesma medida.

Beijo todos!
Paulo Sabino.
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(do livro: Poemas escolhidos. autora: Sophia de Mello Breyner Andresen. seleção: Vilma Arêas. editora: Companhia das Letras.)

 

 

NESTA HORA

 

Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda
Mesmo aquela que é importante neste dia em que se invoca o povo
Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio
E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade

Meia verdade é como habitar meio quarto
Ganhar meio salário
Como só ter direito
A metade da vida

O demagogo diz da verdade a metade
E o resto joga com habilidade
Porque pensa que o povo só pensa metade
Porque pensa que o povo não percebe nem sabe

A verdade não é uma especialidade
Para especializados clérigos letrados

Não basta gritar povo é preciso expor
Partir do olhar da mão e da razão
Partir da limpidez do elementar

Como quem parte do sol do mar do ar
Como quem parte da terra onde os homens estão

Para construir o canto do terrestre
— Sob o ausente olhar silente de atenção —

Para construir a festa do terrestre
Na nudez de alegria que nos veste

DA FELICIDADE
24 de fevereiro de 2012

 
(Na foto, Paulo Sabino na companhia de amigos: felicidade extrema.)
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(Escrito em 23/02/2012, por volta das 23h30, aos amigos da rede social Facebook.)
 
 
Que fim de dia!
 
Na companhia dos meus amados & idolatrados (salve salve!) Chico Lobo & Patrícia Afonso, assisti a mais um (lindo!) pôr-do-sol (diferente a cada dia por conta dos inúmeros desenhos das nuvens & dos vôos dos pássaros que riscam o céu) na praia de Ipanema. Muita conversa boa & divertida & muita contemplação, como costuma acontecer com estes meus dois queridos.

Quando a Pati & o Chicote resolveram ir (por volta das 20h30), decidi não voltar logo para casa. Como estava também na companhia do Orlando (meu camelo), rumei para o Arpoador, para ver a paisagem da ponta do litoral. Chegando, qual a minha surpresa ao encontrar, apesar do horário para mergulho em águas gélidas, um bom número de banhistas no mar. Resolvi deixar o Orlando fincado na areia, como costuma ficar, admirando o ser-azul a bater seus braços líqüidos na barra do areeiro.

Ao entrar na água, outra surpresa: contrariando a temperatura das últimas semanas, fria fria fria toda vida!, no Arpoador o mar estava mais quente, realmente agradável & convidativo. Delícia. Passei “horas” boiando & observando as estrelas.

Feliz por esse presente noturno, peguei o Orlando & com ele fui dar uma circulada, fazer algum exercício. Fui do Arpoador ao Leblon, observando a paisagem, as pessoas, o movimento de vida daquele momento, para, em seguida, voltar a casa.

Agora aqui estou, no recanto do lar, sentindo-me suave, sereno, feliz.

Uma boa conversa com grandes amigos, contemplação da paisagem, mergulho de mar, passeio com Orlando, observação do meio circundante: percebo que isso me basta para me sentir feliz, para me sentir de bem com a vida.

E quando penso no que me basta para me sentir feliz, para me sentir de bem com a vida, vejo que a felicidade pode estar bem ao alcance das mãos. Vejo que, dentro das possibilidades que me atingem (as descritas aqui, por exemplo), a felicidade não precisa, e nem deve, ser difícil.

Algumas pessoas dificultam demais o encontro com a felicidade. É um aprendizado, um exercício diário. Porque a vida não é mole; a vida tem a sua face empedernida. No entanto, temos que ter olhos às possibilidades que nos rondam. E, se não satisfeito com elas, brigar por mudanças.

No mais, o que me fica é o entendimento de que eu não preciso de muito para ser feliz. O que me faz feliz envolve uma certa dose de dinheiro (afinal, ser classe média bem mediana, e morando na zona sul carioca, está LONGE de ser moleza para mim), mas não envolve a dose mais gostosa, a dose que considero a principal.

E o que também me fica, no fundo, é a sensação de que todas essas constatações moldam o supra-sumo da minha sofisticação.

Ilustrando o que vos digo, senhores, este belo poema do mestre Mario Quintana, que me ronda a cabeça desde que comecei estas linhas:

 
DA FELICIDADE

Quantas vezes a gente, em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura,
Tendo-os na ponta do nariz!

 
 
Beijo todos!
Paulo Sabino.

HOMEM COMUM
24 de janeiro de 2012

 
(Na foto, a resistência na comunidade do Pinheirinho, em São José dos Campos — SP.)
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eu,
 
paulo sabino,
 
sou um homem comum, de carne & de memória, de osso & esquecimento.
 
ando a pé, de ônibus, de táxi, de avião, e a vida sopra dentro de mim, pânica, a vida sopra dentro de mim de modo assustador, feito a chama de um maçarico (chama ameaçadora, que pode ferir), e pode, subitamente, cessar. de uma hora a outra, sem aviso prévio, assustadoramente.
 
eu,
 
paulo sabino,
 
sou como você, feito de coisas lembradas & esquecidas, rostos & mãos, defuntas alegrias, flores, passarinhos, feito de facho de tarde luminosa, feito de nomes que já nem sei, feito de tudo isso misturado.
 
eu,
 
paulo sabino,
 
sou um homem comum: brasileiro, maior de idade, solteiro, reservista.
 
e não vejo na vida, senhores, nenhum sentido (a vida apresenta-se como um grande & silencioso absurdo do acaso), senão lutarmos juntos por um mundo melhor.
 
determinadas agruras deveriam ser extirpadas do convívio social.
 
a poesia é rara, a poesia é incomum, é extra-ordinária, e não se encontra facilmente vidafora. por isso ela não comove, nem move, o pau-de-arara. ela, a poesia, por sua raridade, por não estar disposta por aí, não comove, nem move, a pobreza, o descaso social, a poesia não comove nem move (para fora da existência) a força mantenedora de todos os dissabores mundanos injustificáveis.
 
por isso, quero falar com os senhores, de homem para homens, apoiar-me em vocês, oferecer-lhes o meu braço, que o tempo é pouco e o latifúndio está aí, matando.
 
que o tempo é pouco e aí estão sabe-se lá quantos braços do “polvo”, braços deste sistema econômico, a nos sugar a vida & a bolsa (contendo o nosso parco & suado dinheiro).
 
homem comum, igual aos senhores, cruzo a avenida sob a pressão do imperialismo.
 
sim, sob a pressão do imperialismo: sob a pressão imperiosa exercida por homens como naji nahas, um fraudador que deve milhões em impostos aos cofres públicos, contra cerca de 1.500 famílias da comunidade do pinheirinho, em são josé dos campos (são paulo), que tentam fazer cumprir a “função social da propriedade”, prevista na constituição federal desde 1988 & no estatuto das cidades desde 2001, pressão exercida por um fraudador com o aval & o apoio do estado & sua milícia arbitrária.
 
a sombra do latifúndio mancha a paisagem (de sangue), turva as águas do mar, e a infância nos volta à boca, amarga, suja de lama & fome.
 
mas somos muitos milhões de homens comuns e podemos formar uma muralha com nossos corpos de sonho, corpos de desejo de uma vida mais justa & ajustada às necessidades de cada um, corpos de sonho & margaridas.
 
após os versos, das coisas mais GENIAIS que já ouvi:
 
a canção “brasil com p”.
 
notem que quase todas as palavras que a compõem iniciam com a letra “p”. digo “quase todas as palavras” porque apenas uma única palavra da canção não inicia com a letra “p”: irmão.
 
irmão. o que somos. o que deveríamos ser.
 
letra forte, direta, crua, na medula.
 
retrato em branco & preto do nosso brasil varonil.
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Toda poesia. autor: Ferreira Gullar. editora: José Olympio.)
 
 
 
HOMEM COMUM
 
 
Sou um homem comum
               de carne e de memória
               de osso e esquecimento.
               Ando a pé, de ônibus, de táxi, de avião
e a vida sopra dentro de mim
               pânica
               feito a chama de um maçarico
e pode
subitamente
                          cessar.
 
Sou como você
                feito de coisas lembradas
                e esquecidas
                 rostos e
                 mãos, o guarda-sol vermelho ao meio-dia
                 em Pastos-Bons,
                 defuntas alegrias flores passarinhos
                 facho de tarde luminosa
                 nomes que já nem sei
                 bocas bandeiras bananeiras
                                                                          tudo
                  misturado
                                       essa lenha perfumada
                                       que se acende
                                       e me faz caminhar
Sou um homem comum
         brasileiro, maior, casado, reservista,
         e não vejo na vida, amigo,
         nenhum sentido, senão
         lutarmos juntos por um mundo melhor.
Poeta fui de rápido destino.
Mas a poesia é rara e não comove
nem move o pau-de-arara.
          Quero, por isso, falar com você,
          de homem para homem,
          apoiar-me em você
          oferecer-lhe o meu braço
                   que o tempo é pouco
                   e o latifúndio está aí, matando.
 
Que o tempo é pouco
e aí estão o Chase Bank,
a IT & T, a Bond and Share,
a Wilson, a Hanna, a Anderson Clayton,
e sabe-se lá quantos outros 
braços do polvo a nos sugar a vida
e a bolsa
                  Homem comum, igual
                  a você,
cruzo a Avenida sob a pressão do imperialismo.
                 A sombra do latifúndio
                 mancha a paisagem,
                 turva as águas do mar
                 e a infância nos volta
                 à boca, amarga,
                 suja de lama e de fome.
Mas somos muitos milhões de homens
                 comuns
                 e podemos formar uma muralha
                 com nossos corpos de sonho e margaridas.
____________________________________________________________
 
(do site: Youtube. canção: Brasil com p. autor & intérprete: GOG.)
 

SÍSIFO DESCE A MONTANHA
14 de setembro de 2011

queridos,

 como já anunciado no “prosa em poema”, a editora rocco me pediu o release, que é um texto de divulgação à mídia, para o lançamento do livro inédito de poesias sísifo desce a montanha, do GRANDE affonso romano de sant’anna.
 
abaixo do release, uma seleção poética.
 
boa leitura!
 
beijo todos!           
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(release do livro: Sísifo desce a montanha, de Affonso Romano de Sant’Anna. autor do release: Paulo Sabino.)

O mais novo livro de poesias de Affonso Romano de Sant’Anna – e o primeiro depois de Vestígios, pelo qual ganhou o Jabuti, em 2005 – já no título renova o tema, presente em toda sua obra, da construção da morte dentro da vida. Recorrendo ao mito grego de Sísifo, aquele que conseguiu driblar o seu destino e aprisionar a morte, ousadia pela qual foi condenado ao exaustivo e inútil trabalho de rolar uma grande pedra de mármore ao topo de uma montanha, o poeta explicita o desejo de refletir sobre a passagem do tempo e a finitude. A epígrafe de Clarice Lispector expondo a urgência da “deseroização de si mesmo” fala do trabalho estético e existencial deste poeta.

No percorrer das páginas, Affonso Romano de Sant’Anna aponta os seus múltiplos exercícios de relação e diálogo com o tema e com todas as questões que o cercam: as resoluções acerca da cremação já concebida, as dificuldades em lidar com a morte última, com aquela que nos arrasta a todos para todo sempre, as mudanças no olhar do poeta, no seu modo de enxergar as coisas, e uma certa melancolia.

 Porém, o olhar do poeta, que trespassa a morte, é um olhar que trespassa a vida. O poeta está vivo. Portanto, ainda que a presença da morte como tema seja evidente, o olhar do poeta volta-se e se interessa, sobretudo, pela vida que pulsa em tudo que o rodeia.

A poética de Affonso Romano de Sant’Anna continua afiada e os seus versos evidenciam o mesmo seu olhar atento, olhar arguto, às várias nuances da experiência humana, do seu “estar no mundo”: o olhar crítico e contundente ao tratar das injustiças sócio-econômicas; o olhar conciliador ao chamar o presidente dos EUA, Barack Obama, a um passeio em Cartago para narrar a destruição da cidade e contar que teme que o Afeganistão seja a Cartago dos tempos atuais; o olhar amoroso ao falar do nobre sentimento que cultiva pelos amigos, pela família e por sua mulher, a quem observa pela casa, a regar as plantas, no ritual doméstico de cada dia a fluir na sua passagem; o olhar categórico ao mostrar a sua visão de Deus, onipresente, porém diferente do Deus onipresente criado pelas religiões cristãs; o olhar aventureiro ao narrar o seu fascínio por viagens, pela história das sociedades humanas e os seus grandes acontecimentos; o olhar admirado na observação que faz dos animais, um outro fascínio do poeta, que desde que se pôs a observá-los está à beira do abismo e não para de se extasiar: com gato, com cavalo, com o sapo Alfredo, com a cachorrinha meiga e com os seres que habitam as profundezas marinhas; o olhar apaixonado ao revelar a tirania da musa, afirmando que não há escolha, escreve-se mesmo sem vontade, escreve-se porque não há alternativas: “Escravidão. / Escrevidão”. E pergunta-se: “Poesia: / — alforria? // Ou consentida / servidão?”

Sísifo desce a montanha é um livro cujo tema central é a morte – os medos, as angústias, os enigmas, as inquietações que rondam o assunto. O poema “Véspera” clarifica que não existe quem esteja preparado para a hora última, para a hora derradeira, que ninguém está à espera da morte, que ninguém está realmente pronto para o ponto final. No entanto, como pode (erroneamente) parecer, este não é um livro sobre a morte. Este é um livro sobre a vida, sobre o grande aprendizado que é viver, confirmando a máxima de que, até o último sopro de respiração, o ser humano é um eterno aprendiz. A finitude é uma das grandes questões da humanidade, senão a maior. Sísifo desce a montanhaé um livro sobre a nossa breve existência neste mundo cheio de nuances, gradações e variantes.

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(do livro: Sísifo desce a montanha. autor: Affonso Romano de Sant’Anna. editora: Rocco.)
 
 
 
COMO SE DESCE UMA MONTANHA
 
 
Não é mais fácil
nem menos perigoso
do que subir
                         — é diverso.
 
Se olhados de fora
— os gestos —
podem parecer mais lentos.
 
Para quem desce
ao contrário, a sensação
não é de vertigem
— é complemento.
 
Subir foi demorado
descer
             é outra arte.
 
É como se Sísifo
do outro lado do monte
estivesse.
 
Descer com uma pedra
nos ombros
                        — pode ser leve.
 
 
 
PREPARANDO A CREMAÇÃO
 
 
1
 
Levanto-me. Vou ao cartório
autorizar minha cremação. Autorizar
que transformem
minhas vísceras, sonhos e sangue
em ficção.
 
O que pode haver
de mais radical?
Assinar este papel
tão simples
                               tão fatal.
Autorizar a solução final
de todos os poemas.
 
2
 
Faz um belo dia. Do terraço
vejo o mar:
pescadores cercam um cardume
banhistas seguem
se expondo à vida, ao sol.
Olho a trepadeira de jasmim
os vasos de begônia e gerânios
margaridas brancas e a azaléia:
— a vida continua viva dentro
e ao redor de mim.
 
Poetas antes e depois de Homero
tentaram cantar a morte
(Nos consolaram).
Hamlet (cioso)
dialogou com uma caveira
de antemão.
Olho cada parte de meu corpo
que vai se desintegrar:
mexo os dedos, vejo as veias
e no espelho esse olhar
que nada mais verá.
 
Irei à praia daqui a pouco
mas antes passarei pelo cartório.
 
3
 
Há muito venho me preparando
me despedindo do sorriso da mulher, das filhas
da rua onde diariamente passo
me despedindo dos livros
vizinhos e paisagens.
 
Não sou só eu. Minha mulher
antes de mim no mesmo cartório foi
e ainda mostrou-me o documento.
 
Olho-a neste terraço: lá está ela, viva!
ligada nas plantas e planos. Olho-a:
acabou de fazer um vestido novo.
Como imaginá-la no jamais?
 
Ao lado, o barulho de um túnel que estão cavando:
— é a nova estação do metrô.
Há um alarido de crianças na escola vizinha
e eu saio
                numa esplêndida manhã de sol
para cuidar de minhas cinzas.
Tenho muito que dialogar com a morte
e a vida ainda.
 
 
 
RITUAL DOMÉSTICO
 
 
Toda noite
acendo algumas velas na sala
enquanto minha mulher prepara o jantar.
Somos nós dois
e essa cachorrinha meiga
com seu estoque inesgotável de afeto.
 
Comemos, conversamos
                                                                   (as velas em torno)
elogio a comida surpreendente
que ela sempre faz.
 
Falamos do mundo. De nós mesmos.
Volta e meia, ela diz: “Vou te dizer uma coisa
que só posso dizer para você”
e faz uma revelação, como se abrisse um poema.
 
Calmamente o jantar chega ao fim.
Vou tirando as louças
e começo a apagar as velas uma a uma
enquanto soam os últimos acordes barrocos.
 
Menos um dia, uma noite
                                                                              — a mais.
 
Junto à porta, a cachorrinha
ora deita-se estirada
ora late para o nada.
 
 
 
PAREM DE JOGAR CADÁVERES NA MINHA PORTA
 
 
Parem de jogar cadáveres na minha porta.
 
Tenho que sair
                                       — respirar.
Estou seguindo para os jardins de Allambra
a ouvir o que diz a água daquelas fontes
e acompanhar o desenho imperturbável dos zeligues.
 
Não me venham com jornais sangrentos sob os braços.
Parem de roubar meu gado, de invadir meu teto
e de semear pregos por onde passo.
 
Estou em Essaouira, na costa do Marrocos
olhando o mar. Ou em Minas
contemplando as montanhas de Diamantina.
 
Não me tragam o odorento lixo da estupidez urbana.
Parem de atirar em minha sombra
e abocanhar meu texto.
Estou tornando a Delfos
naquela manhã de neblinas
ouvindo o que me diz o oráculo em surdina.
 
Ainda agora embarquei para o Palácio Topkapi,
frente ao Bósforo,
quando tentaram me esfaquear na esquina.
Jamais permitirei que quebrem as porcelanas
e roubem a gigantesca esmeralda na real vitrina.
 
Não me chamem para a reunião de condomínio.
Estou nos campos da Toscana
onde a gigante mão de Deus penteia os montes
e minha alma se sente pequenina.
 
Dei de mão comendas e insígnias
não tenho mais que na praça erguer protestos
e distribuir esmolas não é mais a minha sina.
Acabo de entrar no Pavilhão da Harmonia Preservada
e me liberto
                                  — na Cidade Proibida na China.
 
Não adianta o clamor de burocráticos compromissos
nem vossa ira. Tenho oito anos
saí para nadar naquele açude atrás dos morros
e vou pescar a minha única e inesquecível traíra.
 
Parem de jogar cadáveres na minha porta
na minha mesa
                                 na minha cama
dificultando
                    que alcance o corpo da mulher que amo.
 
Afastem de mim
                                  o meu
                                                    o vosso cálice.
Impossível ficar no tempo que me coube
o tempo todo
preciso repousar num campo de tulipas
reaprendendo a ver o que era o mundo
antes de
    como um Sísifo moderno
                                                                    desesperado
julgar
          — que o tinha que carregar.
 
 
 
POÉTICA DA RESPIRAÇÃO
 
 
Poderia ficar aqui
como um carpinteiro
(eu sei fazer isto)
aplainando ferozmente
as palavras
(eu posso fazer isto).
 
Mas ao contrário
me interessa mais
o frágil sopro
do monge que
                              imóvel
liga-se ao universo
e é só respiração.
 
 
 
A FALA DE DEUS
 
 
Houve um tempo em que Deus falava hebraico.
 
Passou depois a falar latim
após um rápido estágio pelo grego.
 
Atualmente há quem afirme
que optou pelo inglês
embora em algumas tribos
xamãs se comuniquem com os seus
em incompreensíveis dialetos.
 
Isto apenas prova
que Deus é poliglota.
Se não
porque inventaria a Torre de Babel?
 
Só não entendo porque alguns se apresentam
como seus tradutores e intérpretes
quando ele claramente fala
pela voz dos pássaros e das flores
 
ou quando pela boca das bactérias
destrói (silencioso)
                                          — nossa empáfia verbal.
 
 
 
HIERÓGLIFOS
 
 
Teus olhos contemplam hieróglifos no meu corpo
que tua língua decifra prazerosa.
 
Cleópatra não és,
Íbis não és.
No entanto, abro-te minha alma
como um papiro
e das margens desse leito
transbordo como o Nilo.
 
 
 
OUTRA POÉTICA
 
 
Com os egípcios aprendo
lição milenar:
para o obelisco saltar da pedra
— ou o poema
                              surgir da página
na forma lisa e perfeita —
não basta a força
de instrumentos de metal
(a razão).
É a madeira umedecida
com óleo ou água
(a emoção)
que servida em pontos certos
fará saltar
da página/pedra bruta
o obelisco
— ou poema exemplar.
 
 
 
OBAMA, VENHA COMIGO A CARTAGO
 
 
Posso lhe convidar
                                                      para “a cup of coffee
ou se preferir, uma cerveja
                                                              nos jardins da Casa Branca 
como você fez com aquele professor negro e aquele policial
que equivocadamente se atritaram.
 
Mas o melhor lugar pra nosso encontro
                                                                                               — é Cartago.
 
Como dizia Garcia Lorca:
 
            Alli no pasa nada
            dos romanos matam siempre
            três cartagineses.
 
Certamente há lugares mais auspiciosos para se ir
e dialogar. A Cartago
                                                    Massada
                                                                                 ou Numância
se vai para resistir
                                                     — morrer. 
 
Na escola (quem sabe até na Palestina e Bagdá?)
nos ensinam 120 anos de “guerras púnicas”
até que na Terceira
                                                                DELENDA CARTAGO
Roma setenciou.
 
E após três anos de cerco
(como em Stalingrado
quando devorados os cães
já se devoravam os ratos)
fez-se o fiat ao revés:
por seis dias e seis noites hordas de legionários
atravessando arrasados vinhedos e olivais
se revezaram no sucessivo ataque.
 
Só Scipião Emiliano, o mais voraz
não descansava.
Alcançadas as primeiras casas de Byrsa
lançaram tábuas sobre os terraços
                                                                                           e avançavam
enquanto embaixo os estrídulos das espadas e os alaridos
das mulheres desventradas
                                                                         — lembravam My Lai. 
 
A fuga era impossível. Até as figuras imóveis dos mosaicos
se horrorizavam. Como uma lagarta incendiada
a história ardia
                                            como no Vietnam
                                            ardia a pele sob napalm.
 
Foi quando o legionário texano
— indiferente —
disse ao repórter de tevê:
— “I’m doing my job“.
 
E vieram os 10 senadores de Roma
conferir a destruição.
                                                            A pilhagem
foi liberada aos soldados,
mas o ouro, a prata, a oferenda aos deuses
e o petróleo
foram prometidos a outros nobres.
 
Nem Tanit, nem Ba’al
poderiam socorrer Aníbal
e seus 300 elefantes
como não puderam valer
a Asdrúbal — seu jovem irmão
e aos que não mais queriam a guerra.
 
Entre Cartago e Roma
(entre Dido e Enéias)
nunca foi fácil a ambígua relação:
                   O amor sempre rondou a morte
                   A morte sempre rondou o amor.
 
Entendo, enfim, porque os romanos ergueram em toda parte
tantas casas de banho
                             — era muito samgue a lavar.
 
Venha, Obama, passearemos aqui pelas ruínas
das Termas de Antonio Pius.
Não há água, não há chuva que lave
tanto remorso petrificado.
 
Agora, enquanto lhe escrevo, estou em Roma
a dez metros do portentoso Panteão
e olho o crepúsculo tingindo de ouro e sangue
as cúpulas e telhados.
Alguns pombos pousam sobre o templo de Agripa e Adriano
como se saídos da arca de Noé
ou daquele pôster de Picasso.
 
E eu, Romano, que ontem, em Cartago,
fiz o jejum de Ramadan
e cercado de oleandros e jasmins
contemplei a história dos altos jardins de Sidi Bou Said,
venho a Roma
acertar contas com Catão
e toda prole de Scipião o Africano.
 
Você não poderia ficar fora deste assunto, Obama
— “you are the man
E depois do que Catão e Scipião
fizeram no Iraque
temo que a próxima Cartago    
é o Afeganistão.
 
Os símbolos e as ruínas me perseguem.
Olho essa Lua islâmica, aquele alfanje afiando sua lâmina
na crispada torre barroca de Borromini.
 
Temos que conversar, Obama
you are the man 
 
E o melhor lugar, posto que o mais terrível
é Cartago: 
 
                  Alli no pasa nada

                 dos romanos matam siempre
                 três cartagineses.
 
 
 
NO FUNDO DO MAR
 
 
Desde que me pus a observar os animais
estou na beira do abismo
e não paro de me extasiar.
 
Outro dia desci a 2 mil metros no oceano
e até agora
                                   — não pude regressar.
 
Ali
                 bizarros, violentos
                 e soturnos seres
                 estáticos e deslizantes
se procuram, se perseguem
se destróem no escuro.
 
Chocado, vejo-os na TV.
 
Vivo em terra firme
embora frequente o mar.
 
Deveria estar mais tranquilo
porque os civilizados estabelecem limites
e sinais.
 
Mas meu predador me ilude
e me ataca uma vez mais.
 
 
 
ESCRAVIDÃO POÉTICA
 
 
Escravidão.
Escrevidão.
 
Poesia:
               — alforria?
 
Ou consentida
servidão?

CANTO ÓRFICO
9 de agosto de 2011

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o canto é minha explicação.
 
a poesia é o que dá sentido ao meu rumo.
 
o poema é o meu grande guru.
 
(quem faz um poema salva um afogado.)
 
mesmo quando digo o que não sei, o canto é minha explicação: afinal, somos repletos de saberes & de desconhecimentos.
 
em verdade, nas vivências, mais não sabemos que sabemos.
 
o mundo, o entorno, é um absoluto silêncio, e esse silêncio soa-nos como uma absoluta incógnita.
 
sou o sentido do que se transforma, sou a rota do que se modifica, sou o norte do que se reconfigura, sou o sentido, sou a orientação, do que resiste à petrificação, do que não se cristaliza (o sempre ser para todo o sempre), e não conheço o declínio.
 
não conheço o declínio porque, na minha vida, o tombo é, no fundo, um passo a mais na trajetória de constante aprendiz: afinal, com os tombos aprende-se muito; as quedas principiam novas veredas, apontam setas inéditas, caminhos não imaginados não fossem os tombos.
 
vocês, que ouvem o que lhes digo:
 
saibam que tudo repara o tempo, em tudo o tempo dá jeito, tudo o tempo reinventa.
 
somos agentes, seres históricos, construímos, fazemos a História.
 
a existência é árdua. crises econômicas, pobreza, matança, extermínio, extinção, destruição. pessoas jurídicas, corporações nocivas ao convívio social, que destroem o que lhes atravesse o caminho, agindo, aqui & ali, lá & cá, diagnosticadas, inclusive, como “sociopatas”.
 
a existência é árdua. mas podemos repará-la.
 
(somos agentes, seres históricos, construímos, fazemos a história.)
 
tudo o tempo repara, menos a morte, mensageira do escuro, do oculto, do que finda, poderosa, que põe nos corações, desde o princípio, o seu germe vingador.
 
diz o dito popular: “para morrer, basta estar vivo”.
 
a morte coloca o seu germe vingador em nós desde o princípio: seja homem, mulher, jovem, velho, preto, branco, triste, feliz, saudável, doente, sensível, endurecido, hetero, gay, solteiro, casado, honesto, ladrão, crente, ateu, seja quem for, seja o que for, a morte, mensageira do escuro, implacável, poderosa, acerta-nos seu golpe, impiedoso, a qualquer hora do dia ou da noite, em momentos os mais variados possíveis.
 
nenhum sustento, nenhum amparo, nenhum apoio, nenhum suporte, nenhum sustentáculo, é eterno, ainda que tal sustento, que tal amparo, que tal apoio, que tal suporte, que tal sustentáculo, seja extraído da seiva que arde nas veias grossas do mundo.
 
nada é eterno. somos mortais. nada nos é dado sem o cobro, sem a cobrança, dos deuses — um dia, a seiva que arde nas veias grossas do mundo nos é negada, e chega ao fim a nossa jornada neste chão que pisamos…
 
por isso, ouçam:
 
aos senhores, estimo a insubmissão do amor, aos senhores, estimo a capacidade revolucionária do amor, de transformar realidades, de romper barreiras, de apagar fronteiras,  aos senhores, estimo o desígnio divino do amor, de querer o bem-estar de tudo o que pulsa & compõe a sua paisagem.  
 
aos senhores, também estimo a dor, pois a dor representa um modo de aprendizado. a dor é uma das dimensões existenciais; não existe vida sem insatisfações, sem inquietações, e sem cólera.
 
que a insatisfação & a dor & a cólera os salvem deste destino de todos, menor & implacável, que é: a morte.
 
(se sofremos, se a dor existe, é porque amamos. a dor está incluída no pacote. portanto, dêem-se por satisfeitos em abrigar a dor de amar.)
 
já que, um dia, nos será negada a seiva que arde nas veias grossas do mundo:
 
aproveitemos enquanto há tempo.
 
aos senhores, o amor & a sua dor!
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Antologia poética. autora: Marly de Oliveira. organização: João Cabral de Melo Neto. editora: Nova Fronteira.)
 
 
 
1.
 
O canto é minha explicação,
mesmo que diga o que não sei.
Sou o sentido do que se transforma,
do que resiste à petrificação
 
e não conheço o declínio. Ó vós que ouvis
o que vos diz Orpheu, sabei que tudo
repara o tempo, salvo a morte,
mensageira do escuro, poderosa,
que põe nos corações desde o princípio
seu germe vingador. Nenhuma Fúria
se lhe compara, nenhum sustento é eterno,
mesmo se subtraído à seiva que arde
nas veias grossas do mundo. Sois mortais
e vosso sacrifício há de ser grande,
que nada nos é dado sem o cobro
dos deuses.
 
       Ouvi, no entanto, vós, que a ilusão
buscais  sempre na vã agitação:
eu vos ensino a insubmissão do amor,
a inquietude que leva até o inferno
 
em vida, o êxtase, o delírio. Eu vos ensino
a dor e vos ensino a cólera,
que ela vos salve de vosso destino
menor e implacável. E vos ensino a glória.    

UM MUNDO DENTRO DO MUNDO
28 de junho de 2011

benvindos,
 
deixo-os com estas comoventes & emocionadas palavras do escritor uruguaio eduardo galeano.
 
o mundo, a vida, as coisas são feitas de possibilidades. nada é determinado para sempre; a natureza nos mostra que tudo está em constante mutação, em permanente transformação. como o mundo, nós operamos mudanças com o passar do tempo.
 
nada é determinado para sempre — fora a morte, que é o oposto de tudo o que vive —.
 
há um mundo, melhor, a ser gestado dentro deste mundo cheio de entraves & dificuldades.
 
vamos juntos atrás desse mundo melhor, vivendo o “é”, vivendo o presente, e deixando o “porvir” (o futuro) ao porvir, e que, nele, no mundo melhor a ser gestado dentro deste mundo, a poesia dite/diga os passos.
 
creiam: com poesia os passos são mais bem firmados.
 
beijo todos!
paulo sabino.
___________________________________________________________________________________________________________
 
(do site: Youtube. palavras de: Eduardo Galeano.)