A RAIZ DA RUIZ / HAI-KAIS
5 de agosto de 2009

queridos e queridas, 

uma das coisas que, apesar de já tê-las vivido diversas e diversas vezes, me impressionam, em alguns momentos, é a capaciadade que os amigos possuem de aguçar a sensibilidade nossa. quando converso com vocês, a troca abastece os impulsos da minha sensibilidade (parafraseando, muito mal [rs], ezra pound), como acontece com a literatura. 

depois de um tempo que me permite a saudade, reencontrei um amigo que, com sua prosa, sua inteligência & sensibilidade, me faz atento – sou todo olhos e ouvidos em estado de alarme, tamanha a atenção dispensada – enquanto fala. nunca, acho, tornei esta minha satisfação tão explícita pra ele, mas, aqui, eis a ocasião: por conta deste ‘coroa’ (rs), o grande grande tio gerardinho, ou lulu, ou luciano lucas, segue esta mensagem para vocês. 

entre muitos dos assuntos tratados em sua companhia, a poesia não faltou. e, com ela, o nome e o trabalho de uma poeta por quem somos, eu e o gerardo de lucas, apaixonados: alice ruiz. 

o que acho fabuloso em alice é a sua capacidade de concentrar tanto tanto tanto (sentidos, significados, jogos de palavras) com tão pouco, com linhas mínimas. 

a seguir, parte da definição de hai-kai retirada do dicionário aurélio:

1.Arte Poética. Poema japonês constituído de três versos (…): “É o haicai japonês, pequeno poema de três versos, (…) que resumem uma impressão, um conceito, um drama, um poema, às vezes deliciosamente, não raro profundamente.” (Afrânio Peixoto, Miçangas, pp. 234-235.) 

sobre o trabalho de alice ruiz, na orelha do seu livro chamado “desorientais”, arnaldo antunes escreve: 

Uma faísca um pingo uma semente um grão uma lágrima um átomo um átimo um piscar de olhos uma célula um ácido uma sílaba um transistor um chip uma estrela um cristal. Um objeto concentrado não é um objeto qualquer. 

e, de fato, um objeto concentrado não é um objeto qualquer. 

poderia passar horas escrevendo sobre os exuberantes achados, as inúmeras belezas que encontro nos hai-kais que seguem nesta seleção, mas escolhi um – dos meus prediletos – apenas para ilustrar o que vem sendo escrito. ei-lo: 

lesma  no  vidro

procura  uma  sombra

que  seja  ela  mesma

atentem: neste, aparentemente, uma simples descrição de caso: uma lesma, no vidro, que deseja ser a própria sombra. 

agora, atentem mais um pouquinho: a lesma não deseja ser a própria sombra, ou seja, ela mesma, apenas no sentido imagético. a lesma consegue, na organicidade das palavras, ou seja, na composição sólida das palavras, que vem a ser feita de letras, ser a tão almejada sombra: as letras que a compõem, l – e – s – m – a, são as que, também, compõem a sua sombra: e – l – a     m –  e –  s – m – a. no papel, com a ‘composição orgânica’ das palavras (ou seja, com as letras), alice ruiz conseguiu traduzir a vontade da lesma de, ela mesma, a sua sombra ser. isso é genial, é maravilhoso — ela consegue não apenas dar sentido imagético ao que diz, como cria este sentido na justa-posição das palavras —. é, meus caros, não é pra qualquer um não (rs)…   

isso, vocês poderão concluir com os próprios olhos. 

aqui, mais um tanto da raiz da ruiz: um cacho, dos bons, dos seus hai-kais. 

fartem-se! 

beijo bom & carinhoso em todos,

paulinho.

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 (todos os hai-kais extraídos do livro desorientais, de alice ruiz, editora iluminuras)

primeiro  vagalume
assim  começa
o  fim  do  ano
 
 
 
primeira  estrela  Vésper
véspera  do  que  se  espera
vira  primavera
 
 
 
nuvens  de  mosquito
o  ar  se  move
vento  nenhum
 
 
 
mosquito  morto
sobre  poemas
asas  e  penas
 
 
 
árvore  da  felicidade
folha  a  mais  folha  a  menos
vai  vivendo
 
 
 
dentro  do  jardim
o  dia  chega  mais  cedo
ao  fim
 
 
 
quem  ri  quando  goza
é  poesia
até  quando  é  prosa
 
 
 
gesto  antigo
gostar  de  você
parecer  comigo
 
 
 
sêde  a  sede  do  meu  ser
cesse  a  minha  sede
de  ceder
 
 
 
o  relógio  marca
48  horas  sem  te  ver
sei  lá  quantas  para  te  esquecer
 
 
 
lembra  aquele  beijo
corpo  alma  e  mente?
pois  eu  esqueci  completamente
 
 
 
dentro  do  sono
o  corpo  se  descobre
sem  dono
 
 
 
por  você
eu  esperava
por  mim  não
 
 
 
rede  ao  vento
se  torce  de  saudade
sem  você  dentro
 
 
 
ia  sendo
não  fosse  entre  nós
o  extintor  de  incêndio
 
 
 
teu  sol
me  dis-sol-vendo
até  minha  raiz
 
 
 
circuluar
sonho  ímpar
acordo  par
 
 
 
folha  seca
sobre  o  travesseiro
acorda  borboleta
 
 
 
entre  uma  estrela
e  um  vagalume
o  sol  se  põe 
 
 
 
velha  lua
ao  ver-me  a  vê-la
vermelha
 
 
 
o  amarelo  sai  do  céu
e  corre  ao  vento
outono  dentro
 
 
 
À  beira  do  insuportável
essa  qualidade  rara
ser  insubordinável
 
 
 
pensar  letras
sentir  palavras
a  alma  cheia  de  dedos
 
 
 
cai  a  tarde
flor  no  pessegueiro
cai  o  inverno
 
 
 
ontem  hoje  amanhã
trabalho  pra  madrugada
noites  tardes  manhãs
 
 
 
voltando  com  amigos
o  mesmo  caminho
é  mais  curto
 
 
 
velhos  amigos
depois  da  despedida
continuam  andando  juntos
 
 
 
não  fique  confuso
muso  de  alguma  obra-prima
pode  ser  tudo  amor
                            à  rima