NA CALADA, A SECURA DE UM REI DE MARACATU
16 de junho de 2015

Vendedor de cangas

Maracatu Rural
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o vendedor, na praia, lembra um rei de maracatu em meio ao colorido das cangas.

o manto multicor de um rei de maracatu, o vendedor de cangas em meio ao colorido das peças.

entretanto, apesar da semelhança, o vendedor de cangas samba — dança, agita-se, caminha o seu passo de baile — no compasso da mercadoria que está ali para ser vendida, que está ali para garantir o pão de cada dia, o vendedor de cangas não brinca maracatu.

o vendedor de cangas, em meio ao colorido da mercadoria, trabalha duro, pesado:

afinal, a vida não é alegoria, a vida não é metáfora, não é simbologia (o manto multicor de um rei de maracatu — o colorido das cangas do vendedor).

afinal, a vida não é maracatu (a dança, a música, a alegria), a vida é mandacaru (planta espinhenta, que resiste à secura, à aspereza, do ambiente em que vive).

a vida não é maracatu: é mandacaru. mandacaru lá do nordeste, lá do sertão: tão seco, tão áspero.

o vendedor de cangas, sem dançar maracatu, com sua vida que não é alegoria, é trabalho duro, pesado, tem o semblante carregado por ossos protuberantes & terminações nervosas nada conclusivas, nada definitivas, terminações nervosas abespinhadiças, o semblante coberto de pêlos, que indicam trinta anos ou mais, mas que não chegaram, ainda, a idade de (jimi) hendrix, que morreu aos 27 anos (completaria 28 anos em 2 meses).

o vendedor de cangas, sem dançar maracatu, com sua vida que não é alegoria, é trabalho duro, pesado, tem suporte de óculos & das marcas amargas — as suas vivências em condições precárias de vida — moldado pela poeira pesada, dos seus dias pesados, em meio ao suor dos poros fechados para o riso, fechados para a alegria, fechados para o bem-querer.

como manter os poros abertos ao riso, os poros abertos à alegria, os poros abertos ao bem-querer, se, na calada da noite, o vendedor de cangas se dana?

como manter os poros abertos ao riso, os poros abertos à alegria, os poros abertos ao bem-querer, se, na calada, na surdina, a casa do vendedor de cangas é acordada, em meio à madrugada, pelo bico do coturno estatal — a violência, promulgada pela polícia militar, que invade casas em favelas sem o mínimo de respeito aos moradores — & tem gavetas com peças puídas & armários vazios revirados?

(a justificativa dos policiais militares, para ações tão truculentas, e que acontecem cotidianamente nas favelas, é de que procuram a boca de fumo, local onde drogas — ilícitas — são vendidas. a grande questão é que, na busca pela boca, muitas casas são invadidas arbitrariamente, inclusive a casa do vendedor de cangas.)

como manter os poros abertos ao riso, os poros abertos à alegria, os poros abertos ao bem-querer, se, na calada, na surdina, a casa é acordada, em meio à madrugada, pelo bico do coturno estatal & tem a sua destruição garantida pelo braço legal do estado?

ninguém sabe, ninguém viu (além da boca — de fumo — procurada pela polícia militar), no chão, os dentes fora da boca, os dentes que não são encontrados quando falamos ou sorrimos, os dentes da arcada forjada, inventada, criada, no ódio rangendo revanche, no ódio rilhando vingança.

a toda & qualquer ação, uma re-ação na mesma medida.

afinal: como manter os poros abertos ao riso, os poros abertos à alegria, os poros abertos ao bem-querer, se, na calada, na surdina, a casa é acordada, em meio à madrugada, pelo bico do coturno estatal & tem a sua destruição garantida pelo braço legal do estado?

ninguém gosta de receber, em casa, pessoa inconveniente, que apareça, por exemplo, sem ter sido convidada.

imagine o que seja ter a casa invadida à base de pontapé,  gritos & tapas!…

respeitar para ser respeitado.
cuidar para ser cuidado.
amar para ser amado.

eis a base de tudo.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Dentro da betoneira. autor: Thiago Cervan. apoio cultural: Incubadora de artistas.)

 

 

o vendedor
na praia
lembra um
rei de maracatu
em meio ao
colorido das cangas

o vendedor de cangas
samba no compasso
da mercadoria
e não brinca maracatu:

nego, a vida
não é alegoria

é mandacaru

 

 

SECO

 

o sembante carregado
por ossos protuberantes e terminações nervosas
………………………………………………nada conclusivas

coberto de pelos que indicam trinta ou mais
mas que não chegaram ainda a idade de hendrix

suporte de óculos e marcas amargas
moldado pela poeira pesada em meio ao suor
dos poros fechados para o riso

 

 

NA CALADA

 

a casa acordada em
meio à madrugada
pelo bico do coturno
estatal tem gavetas
com peças
puídas e armários
vazios revirados.
procuram a boca.
vira-latas latem
luzes vizinhas
acendem à procura
de decifrar o enigma.
ninguém sabe
ninguém viu no chão
os dentes fora da boca

arcada forjada no ódio
rangendo revanche

SEI LÁ, NÃO SEI…
9 de junho de 2015

Cine Olaria_PB

Cine Olaria_2015

(Na primeira foto, o Cine Olaria, em funcionamento, como o conheci na infância & parte da adolescência; na segunda foto, o Cine Olaria nos dias atuais, desativado & abandonado.)
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Dias atrás, pensei com os meus botões: se existe uma vantagem em nascer em bairro do subúrbio, bairro periférico, portanto, bairro mais pobre, e eu enxergo outras tantas vantagens, é a oportunidade, mais contundente, de entender, através da razão & do sentimento, que a riqueza material — a grana, as ações, as apólices — nada tem a ver com a riqueza de sentimentos que se pode ter para doar.

Toda vez que escuto este poema-canção, toda vez que leio os seus versos, me vem à cabeça Olaria, bairro onde, depois de nascido (no Estácio) & saído do hospital, fui morar.

Um suburbano coração.

Os versos deste poema-canção me vêm à cabeça porque, quando penso em determinada área de Olaria, área que não acho esteticamente bonita mas que ao mesmo tempo acho bela, feliz, aprazível ao olhar, consigo me ver nas linhas poéticas, me espelho na voz do poeta, me digo nos versos do poema-canção.

Porque determinados lugares, que, a princípio, não agradam esteticamente, podem conter uma atmosfera, uma sintonia, uma espécie de “calmaria” & “alegria”, indescritíveis, que não estão na arquitetura, que não estão propriamente na “matéria”, nas construções avistadas.

Em Olaria, a poesia, feito o mar, se alastrou; e a beleza de um lugar no bairro, para entender, tem que se achar que a vida não é só isso que se vê; a vida é um pouco mais do que o percebido pelos olhos, a vida é um pouco mais do que o tocado pelas mãos, a vida é um pouco mais do que o pisado pelos pés.

A beleza de certo local do lugar não me parece “palpável”, “material”. Eu vejo, sinto, percebo, determinado trecho de Olaria em todo o poema-canção.

A incerteza, a dúvida, o desconhecimento da razão de tamanho sentimento por um lugar, em Olaria, que esteticamente seria julgado como feio: sei lá, não sei… Não sei se, toda a beleza de que lhes falo, sai tão-somente do meu coração. Em Olaria, a poesia, num sobe & desce constante, anda descalça, de pé no chão, pobre, primordial, ensinando um modo novo de viver, de sonhar, de pensar, e sofrer.

Olaria: a sua calmaria, o seu silêncio, as suas muitas ruas de casarões, a sua face interiorana, a sua face feia & feliz, a sua pobreza, a sua despreocupação, me formam, me moldam, me conduzem.

Olaria é tão grande que nem cabe explicação.

Beijo todos!
Paulo Sabino.
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(do livro: De onde vêm as palavras. autor: Deonísio da Silva. editora: Lexikon.)

 

 

FAVELA: é controvertida a origem deste vocábulo. Pode ter vindo do latim “favilla”, cinza quente, ou de “favu”, o conjunto de alvéolos de uma colmeia, que também se chama cortiço. Nos dois casos, alude-se, por metáfora, a conjuntos de habitações precárias. Quanto à origem, na clássica oposição entre cru e cozido, que segundo alguns teóricos definiu as civilizações, a cinza quente lembra o fogo feito no chão, com o fim de assar ou cozinhar. Os antecessores dos modernos fogões a gás ou elétricos, feitos de ferro, substituíram os fogões de pedra. Mas entre uns e outros dominou um tipo especial de fogão de correntes, afixadas num tripé ou no teto das cozinhas. Ganchos apropriados serviam para que panelas e chaleiras fossem ali dependuradas, embaixo das quais crepitava o fogo do chão, depois tornado brasa e cinza. Vistos de longe, pelas frestas dos barracos ou ao ar livre, onde também eram feitos, esses fogos teriam dado àquele amontoado de casas a aparência de uma colmeia. Outra explicação para o significado de habitação popular é dada por Antenor Nascentes e acolhida pelo “Dicionário Houaiss”: na campanha de Canudos, os soldados ficaram instalados no Morro da Favela, localidade daquela região assim chamada porque ali havia grande quantidade da planta que leva este nome (favela). Quando voltaram ao Rio de Janeiro, “pediram licença ao Ministério da Guerra para se estabelecerem com suas famílias no alto do Morro da Providência e passaram a chamá-lo Morro da Favela.”
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(autor: Hermínio Bello de Carvalho.)

 

 

SEI LÁ, MANGUEIRA

 

Vista assim do alto
Mais parece um céu no chão
Sei lá…
Sei lá, em Mangueira a poesia
Feito um mar se alastrou
E a beleza do lugar
Pra se entender
Tem que se achar
Que a vida não é só isso que se vê
É um pouco mais
Que os olhos não conseguem perceber
E as mãos não ousam tocar
E os pés recusam pisar

Sei lá, não sei…
Sei lá, não sei…
Não sei se toda a beleza de que lhes falo
Sai tão somente do meu coração
Em Mangueira a poesia
Num sobe e desce constante
Anda descalça ensinando
Um modo novo da gente viver
De sonhar, de pensar e sofrer

Sei lá, não sei…
Sei lá, não sei, não…
A Mangueira é tão grande
Que nem cabe explicação

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(do site: Youtube. do álbum: Cantoria. canção: Sei lá, Mangueira. versos: Hermínio Bello de Carvalho. música: Paulinho da Viola. intérprete: Caetano Veloso. Participação especial: Paulinho da Viola / Chico Buarque. gravadora: Biscoito Fino.)

ORAÇÃO PARA NOSSA SENHORA DA BALA PERDIDA
10 de junho de 2014

Balas com sangue

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descontentamento pelos gastos exorbitantes com projetos muito mal executados & com toda a (des)organização do mundial de futebol 2014, manifestações, greves, favelas pacificadas à meia boca (depois da cobertura jornalística sensacionalista & piegas da rede globo de televisão, em parceria com a polícia militar do estado do rio de janeiro, na instalação das unidades de polícia pacificadora em algumas comunidades pobres da cidade), favelas pacificadas muito mal & porcamente (todo dia temos notícia de troca de tiros entre policiais militares & traficantes, todo dia temos notícia de balas perdidas, em favelas, a princípio, “pacificadas”), faz-se prudente pedir proteção à santa!

portanto, uma oração:

nossa senhora da bala perdida, mãe, afaste, de mim, essa bala, esse dardo inflamável, essa seta diuturna, seta que se prolonga no tempo, seta duradoura (a porta que tal bala abre, no corpo que atinge, jamais se fecha), nossa senhora da bala perdida, mãe, afaste, de mim, esse terror sem rumo, esse projétil alado & raso, projétil retilíneo que voa longe, pois, já que elas, as balas perdidas, não cessam, que, pelo menos, nos errem.

nossa senhora da bala perdida, rogai por nós, os passantes, os transeuntes, os pedestres, os motoristas, as crianças e, principalmente, as mães: não nos faça alvos fáceis desta chuva de petardo (chuva de peça carregada de material explosivo, portátil) que desaba por sobre a cidade do rio de janeiro, não nos faça alvos fáceis desta chuva de balas perdidas, nossa senhora da bala perdida, rogai por nós, que tal chuva não nos atinja o corpo nem a alma nem os prantos.

eu, que faço o bom combate.

nossa senhora da bala perdida, protegei as nossas vísceras das emboscadas bandidas, dos acertos entre quadrilhas rivais, do fogo amigo (quando um aliado ataca um dos seus) ou da polícia (violenta, corrupta, déspota).

só te peço, ó mãe amiga, santa do cotidiano, poupe-nos o banho de sangue, de passagem tão insana, banho de passagem demente, insensata.

que assim seja, hoje & sempre.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Qtais. autor: Luis Turiba. editora: 7Letras.)

 

 

ORAÇÃO PARA NOSSA SENHORA
DA BALA PERDIDA

 

Mãe,
Afaste de mim esta bala
Este dardo inflamável
Esta seta diuturna
Este terror sem rumo
Este projétil alado e raso
Pois já que elas não cessam
Que pelo menos nos errem

Rogai por nós os passantes
Os transeuntes os pedestres
Os motoristas e as crianças
E principalmente as mães

Não nos faça alvos fáceis
Desta chuva de petardo
Não nos atinja o corpo
Nem a alma nem os prantos

Que veloz, não me alcance
Que sua força não me curve
Que seu fogo não me queime
Que o acaso não me derrube
Eu que diariamente passo
Por favelas becos vielas
Por túneis curvas células
Eu que faço o bom combate

Protegei as nossas vísceras
Das emboscadas bandidas
Dos acertos entre quadrilhas
Do fogo amigo ou polícia

Só te peço oh mãe amiga
Santa do cotidiano
Poupe-nos o banho de sangue
De passagem tão insana