O EXTRA DO ORDINÁRIO, O LIRISMO DO COTIDIANO
18 de janeiro de 2010

meninos & meninas,
 
abaixo, uma seleção de poesias daquele com o olhar voltado às coisas triviais do dia-a-dia.
 
a matéria de sua poética são as metáforas, as imagens, criadas com a linguagem no seu manejo diário. são pinçadas invenções imagéticas nossas com a língua, revelando-se, assim, o lirismo criado no uso cotidiano dos vocábulos, no uso ordinário das palavras. mostra-se, desse modo, o que existe de extra–ordinário no que é comum, no que é usual. porque o que é comum, o que é usual, como bem atenta o vate num poema, é também fantástico, isto é, é também fantasia, uma vez que o usual — o nosso mundo — é fruto de interpretações nossas, é uma criação cotidiana, de cada um, uma fantasia, um delírio.  
 
junto a este trabalho poético, o requinte & o cuidado de um artesão dos versos, que sabe, como ninguém, agrupar, num mesmo caldeirão, simplicidade & sofisticação.
 
a seguir, o extra do ordinário, o lirismo do cotidiano, traçado em linhas do super-super chico alvim. 
 
os poemas selecionados integram um livro seu lançado em 2000, chamado elefante. e o primeiro poema desta minha escolha será uma das epígrafes do livro que pretendo lançar este ano. quando o li, quando li o poema, não acreditei. pensei: “feito sob medida!” (rs) 
 
vistam as suas melhores fantasias a fim de embrenharem-se no real da poesia, que é a luz de dentro, fora. 
 
beijo grande em todos!
o preto.
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(do livro: Poemas [1968-2000]. autor: Francisco Alvim. editora: 7Letras / Cosac & Naify.)
 
 
OLHA
 
Um preto falando
com toda clareza
e simpatia humana
 
 
CARNAVAL
 
Sol
 
Esta água é um deserto
 
O mundo, uma fantasia
 
O mar, de olhos abertos
engolindo-se azul
 
Qual o real da poesia?
 
 
ESPELHO
 
Meu deus como é triste
Olhar a noite nos olhos
O som da treva ecoa
no brejo mais fundo
 
Lembrar a montanha
a tarde cheia de sinos
a menina — névoa no azul
o menino
 
Uma luz
que afastasse este breu
para além da estrela remota
 
Olho e vejo um furo
no escuro — um lago?
Aviões partem
Para que deserto?
 
 
HOMMAGE À OSWALD
 
Bandas marciais
executam a sinfonia da pátria
ao pé do lábaro estridente
Os Ministérios verrumam
Na boutonnière do azul
cintila o espírito público
 
 
OS DIAS PASSAM
 
Lembra daquela água verde
onde os dois mergulhavam
e todos olhavam?
 
Tua pele suava
na água
Teu olhar preto
afogava
 
A vida era tanta —
deslembrava
 
 
NOME
 
Cortaram o rabo
Puseram o nome de Descoberto
 
 
SOMBRA
 
Chove nos edifícios
e na erma galeria
de esquadrarias de vidro
sujo
 
Chove nos edifícios
e também em tua sombra
de bípede que palmilha
esta e mais outra trilha
 
Aquele edifício negro
na sombra amarela, imensa
assombra toda a cidade
 
A ti, não
 
 
O GÊNIO DA LÍNGUA
 
Corno manso
Bobo alegre
 
 
POEMA [a Carlos Drummond de Andrade]
 
Há muitas sombras no mundo
Elas ventam nas nuvens
e no ar
brilham solitárias como topázios —
gotas de luz apagadas
 
Os astros ventam
A sombra é o vento dos astros
 
No fundo das águas prisioneiras
de lagos e açudes
há um vento de águas —
sombras
 
No mar
refratam-se submersas
viageiras
em meio a florestas de alga —
sombra das sombras emersas
 
São feitas — as sombras — de ar
escuro
Lembram o tudo e o nada
 
O vôo das sombras
gira em torno de uma coluna
sonora, o poema —
luz de dentro
 
Fora
 
 
CÉU
 
Um céu, que não existe
ou talvez exista na França de Poussin
refratado nos interiores de Chardin
talvez em Turner
talvez em Guignard
certamente em Dante
ao chegar à praia do Purgatório
A felicidade que a luz traz
solta, nua neste céu
ou pensada
 
 
QUER VER?
 
Escuta
 
 
TIA ROSINHA
 
Ela não batia, não bradava
O olhar era bastante:
segurava
Fitava a vítima (o eleito)
adulto ou criança
com aqueles olhos que chispavam
Uma autoridade
bruta e mansa
 
 
FORMIGAS
 
Pau oco
Cheio de formigas
ah que pena que me deu
mas fui
que nem o terremoto na Armênia
não sobrou uma
 
 
DESCARTÁVEL
 
vontade de me jogar fora
 
 
IRRITADOS E PREOCUPADOS
 
consegui deixá-los
— Se levar um tiro
nem vou ao enterro
— Ele não é doido
— Mas fez coisa de
— Ele devia ter ficado
quietinho
 
 
LUÍSA
 
— Vim também saber se você
já leu o livro
— Li. Tão romântico. Parece coisa de adolescente.
Fecha a gavetinha à chave.
Sandália florida blusa amarela
braços morenos
 
 
CRIATURA
 
Vai embora não
Vem cá
Não me põe doente não
Se não era pra ficar
pra que que veio?
 
 
FUNDO
 
No dia seguinte
tratei ela muito bem
Ela nem olhou pra minha cara
Não liguei
Mas no fundo
 
 
GEMIDO
 
Este mundo
custa tanto a passar
a gente sofre tanto
 
 
 
O ser humano é o seguinte
 
 
ESCOLHO
 
Parado
 
Na plataforma superior
 
Entre as pernas
no chão
as compras num plástico
 
Longe do verso perto da prosa
Sem ânimo algum
para as sortidas sempre —
enquanto duram —
venturosas da paixão
 
Longe tão longe
do humor da ironia
das polimorfas vozes
sibilinas
transtornadas no ouvido
da língua
 
Ali onde o chão é chão
as pernas, pernas
a coisa, coisa
e a palavra, nenhuma
Onde apenas se refrata
a idéia
de um pensamento exaurido
de movimento
 
Entre dois trajetos
dois portos
(duas lagunas)
duas doenças
 
Sublimes virtudes do acaso
por que não me tomais
por dentro
e me protegeis do frio de fora
da incessante, intolerável, fuga do enredo?
da escolha?
 
 
GUAPURUVU
 
Linha oceânica da testa
repensar das ventanias
lenho sem sombra
funesto
pilar de toda a alegria
 
Horizonte que pulsa
vertigem
Serpente que retesa as manhãs
Razão inconclusa
tormento
adorno do Estige — manhã
 
 
TORRE
 
Nuvem e sino
Ouro na treva
da hora adversa
 
A luz perdoa
 
Na alma a coroa
de espinhos
da dor mais profunda
desfaz-se na tarde
 
A torre refaz
o azul, a aragem
 
 
NUM ADRO
 
Nuvens passam
O olhar não percebe o barulho dos astros
 
 
PSIU
 
volto já