O ESTRANGEIRO
8 de outubro de 2010

francisco ferraz,
 
amigo querido, do qual muitas saudades sinto,
 
pessoa responsável pela existência, em termos práticos, deste espaço, “o prosa em poema”,
 
este post é dedicado inteiramente a você.
 
devo esta publicação ao chico há muito tempo; ela foi prometida no início de tudo, e só foi “existir” agora (rs).
 
mas é aquela tal história: paulo sabino: um homem que tarda, mas não falha (rs).
 
chicão, finalmente (rs)!
 
eu e o francisco ferraz somos apaixonados pela canção, e, principalmente, por este poema-canção.
 
estas linhas, que considero primorosas, traduzem a minha visão acerca do brasil. enxergo este país exatamente desta maneira.
 
caetano veloso parte dos olhares estrangeiros, dos olhares que vêm de fora, dos olhares alheios, estranhos, não nativos, para a construção dos versos que acabam por desnudar o seu olhar.
 
através dos olhares estrangeiros, o seu olhar é desfraldado.
 
enquanto o pintor paul gauguin e o compositor cole porter, em visita à baía de guanabara, sentiram-se deslumbrados, porque a enxergaram como bela, o antropólogo claude lévis-strauss detestou-a; pareceu-lhe, a baía, uma boca banguela.
 
para um tipo de olhar, bela; para outro, o inverso, banguela.
 
bela & banguela: adjetivos antagônicos utilizados para a qualificação da baía de guanabara.
 
daí, a pergunta: mas o que seria, exatamente, uma coisa bela?
 
caetano interroga-se a respeito do seu sentimento pela guanabara: “e eu, menos a conhecera, mais a amara?”
 
e por que ” menos a conhecera, mais a amara”? ama-se mais quanto menos se conhece? a intensidade do amor aumenta quanto menos conhecido aquilo que se ama?
 
há a célebre sentença que diz: o amor é cego. isto significa afirmar que o amor enxerga: nada.
 
mas será? será que o amor enxerga: nada?
 
o amor é cego (falam). e ray charles também é cego. stevie wonder, outro cego. e o albino hermeto (pascoal) não enxerga mesmo muito bem.
 
três exemplos para se dizer que, na cegueira, enxerga-se muito. (afinal, como desdizer que ray charles, stevie wonder & hermeto pascoal, grandes homens de visão, grandes visionários?)
 
a constatação, portanto, de que, mesmo amando, isto é, mesmo com o grande amor que nutre pela baía, caetano não deixa de enxergar bem, não deixa de ser um visionário.
 
e segue: o que seria uma coisa bela? uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem, uma arara?… o quê?
 
de qualquer modo, fica a verificação, a averiguação, de caetano sobre a baía que tanto ama, baía que o deixa cego de tanto vê-la & tê-la estrela: ao mesmo tempo bela & banguela.
 
ele parte da baía de guanabara para traçar a sua visão acerca do brasil: belo & banguela, feito a guanabara. 
 
assim, com o olhar mergulhado em adjetivos antagônicos para com a baía, para com o brasil, inicia a revelação de um raro pesadelo, de um sonho ruim, que busca, sempre: o belo & o amaro, isto é, os adjetivos antagônicos.
 
junto ao sonho, a imagem que não foi sonhada (ainda que, no sonho, utilizada): a praia de botafogo, um cenário lindo, que agrega à sua paisagem o pão de açúcar, era uma esteira de areia branca & óleo diesel sob os tênis. tudo quanto havia de aurora no cenário: o morro famoso o menos óbvio possível, com umas arestas insuspeitadas (o morro visto como se pela primeira vez, visto como se por um olhar forasteiro, por um olhar estrangeiro); o morro banhado na áspera luz laranja contra a “quase-não-luz” do branco das areias e das espumas (escurecido, degradado o branco, pelo tanto de óleo diesel).
 
verificar uma paisagem tão encantadora, e, ao mesmo tempo, tão maltratada: tudo quanto havia, então, de aurora…
 
caetano prossegue o sonho e afirma ser um “cego às avessas”: não necessita olhar para trás a fim de saber o que acontece; vê absolutamente tudo o que deseja.
 
às suas costas, nas areias da praia de botafogo (com o pão de açúcar ao fundo), descreve um velho com cabelos nas narinas & uma menina ainda adolescente e muito linda.
 
do velho & da menina, mesmo podendo, caetano não deseja ver aquilo que, neles, não lhe agrada: o terno negro (do velho) e os dentes “quase-não-púrpura” (da menina). e pede que o ouvinte/leitor pense a imagem de modo impressionista (como pensava o pintor francês georges seurat), que trabalha com as formas naturais e sua disposição diante da incidência de luz, elaborando contrastes com as cores. alerta, o compositor, para que a paisagem do sonho não seja encarada no termo surrealista, que mexe com o irracional; pois o surrealismo é uma outra “onda”, outra “viagem”, é uma outra história.
 
o cenário pintado (a praia de botafogo, um velho de terno negro com cabelos nas narinas & uma menina ainda adolescente e muito linda às costas do compositor) é delineado em tons impressionistas, com a paisagem natural (praia e morro), com seus jogos de luzes & cores, com os contrastes cromáticos, e o claro-escuro, o belo-feio, tudo junto, amalgamado, e não em tons surrealistas. não há surrealismo nenhum aqui (mesmo tratando-se de um total devaneio). 
 
segue caetano, dizendo que ouve vozes, dizendo que os dois (o velho & a menina) lhe dizem, num duplo som, como que sampleados num sinclavier, as seguintes sentenças: 
 
— é chegada a hora da reeducação do cristianismo & suas religiões, para que estes arrebanhem ainda mais cordeiros para os seus rebanhos (!);
— o certo é louco tomar eletrochoque (!);
— o certo é saber que o certo é certo, ou seja: engolir sem questionar (!); 
— o macho (o homem heterossexual, de cunho procriativo) adulto, branco, sempre no comando, mandando & desmandando conforme seus desejos (!);
— e para o resto, que é a escória, para o resto, que são os que não interessam, o resto (!);
— reconhecer o valor necessário do ato hipócrita, isto é, reconhecer o valor indispensável do ato falso, do ato mentiroso, do ato enganador (!);
— riscar os índios (!), nada esperar dos pretos (!);
 
frente a todos os horrores proferidos pelo velho & pela menina, afirma caetano seguir ainda mais sozinho, caminhando contra o vento, nadando contra a maré, e entender o centro, o núcleo, a idéia principal, do que dizem aquele cara (o velho) e aquela (a menina):
 
o que disseram é um desmascaro. o que disseram é um singelo grito:
 
“o rei está nu!”
 
o que disseram, aquele cara & aquela, desmascara um brasil que existe por trás da terra boa & gostosa, terra da morena sestrosa. por trás do “meu brasil-brasileiro”, do brasil bom & gostoso, existem setores da sociedade brasileira que pensam exatamente o que está no “desmascaro”, o que está no “singelo grito”, do velho & da menina (que, para mim, representam vozes saídas de dentro do brasil: o velho, a figura de um brasil antigo, arcaico, preso a conservadorismos; a menina ainda adolescente & muito linda, a figura de um país do futuro, um país que tem tudo para tornar-se uma grande potência). 
 
setores da sociedade brasileira que pensam assim, mas que não têm a coragem de confessar: instituições religiosas cristãs, racistas, sexistas, homofóbicos, corruptos, organizações tradicionalistas.
 
o rei está nu, o rei foi desmascarado.
 
e o rei, nu, é mais bonito; ante sua nudez, tudo se cala.
 
aqui, a compreensão de que, acima de tudo, a lucidez para os reconhecimentos: o rei não é somente belo como também não é somente banguela. o rei é, ao mesmo tempo, belo & banguela; o rei abriga, em si, os adjetivos antagônicos, o rei abriga lindezas & feiúras.
 
brasil: terra boa & gostosa, da morena sestrosa, porém, terra também de corruptos, de homofóbicos, conservadores & sexistas.
 
o reconhecimento mais abrangente da figura do rei torna-o mais bonito.
 
é melhor que assim seja: ser o lobo do lobo do homem.
 
(eu também sinto dessa forma. não me vejo amando menos o brasil porque reconheço as suas mazelas. não. reconhecê-las, e amando-o, me estimula a extirpá-las.)
 
e avança caetano em seu caminho, amando o azul, o púrpura e o amarelo, amando cores celestiais, e entre o seu ir, isto é, entre a sua jornada, entre o seu caminhar, e o caminho do sol, há um aro, há um elo que os une.
 
apostar na luz, no brilho, apostar no elo, no aro que se configura com o astro-rei, luminoso, caloroso: o sol. afinal, gente é para brilhar, não é para morrer de fome.
 
pronto, chicão! publicação todinha sua (rs). (e para quem mais a desejar.)
 
sigamos lúcidos & amorosos!
 
beijo nos senhores!
um outro, especialíssimo, em você, francisco ferraz!
 
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Letra Só. autor: Caetano Veloso. organização: Eucanaã Ferraz. editora: Companhia das Letras.)
 
 
O ESTRANGEIRO
 
O pintor Paul Gauguin amou a luz na Baía de Guanabara
O compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela
A Baía de Guanabara
O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou
                                [a Baía de Guanabara
Pareceu-lhe uma boca banguela
E eu, menos a conhecera, mais a amara?
Sou cego de tanto vê-la, de tanto tê-la estrela
O que é uma coisa bela?
O amor é cego
Ray Charles é cego
Stevie Wonder é cego
E o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem
Uma baleia, uma telenovela, um alaúde, um trem?
Uma arara?
Mas era ao mesmo tempo bela e banguela a Guanabara
Em que se passara passa passará um raro pesadelo
Que aqui começo a construir sempre buscando o belo
                                                              [e o Amaro 
Eu não sonhei:
A praia de Botafogo era uma esteira rolante de areia
                                              [branca e óleo diesel
Sob meus tênis
E o Pão de Açúcar menos óbvio possível
À minha frente
Um Pão de Açúcar com umas arestas insuspeitadas
À áspera luz laranja contra a quase não luz, quase não púrpura
Do branco das areias e das espumas
Que era tudo quanto havia então de aurora
Estão às minhas costas um velho com cabelos
                                                  [nas narinas
E uma menina ainda adolescente e muito linda
Não olho pra trás mas sei de tudo
Cego às avessas, como nos sonhos, vejo o que desejo
Mas eu não desejo ver o terno negro do velho
Nem os dentes quase-não-púrpura da menina
(Pense Seurat e pense impressionista
Essa coisa da luz nos brancos dente e onda
Mas não pense surrealista que é outra onda)
E ouço as vozes
Os dois me dizem
Num duplo som
Como que sampleados num Sinclavier:
“É chegada a hora da reeducação de alguém
Do Pai, do Filho, do Espírito Santo, amém
O certo é louco tomar eletrochoque
O certo é saber que o certo é certo
O macho adulto branco sempre no comando
E o resto ao resto, o sexo é o corte, o sexo
Reconhecer o valor necessário do ato hipócrita
Riscar os índios, nada esperar dos pretos”
E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento
Sigo mais sozinho caminhando contra o vento
E entendo o centro do que estão dizendo
Aquele cara e aquela:
É um desmascaro
Singelo grito:
“O rei está nu”
Mas eu desperto porque tudo cala frente ao fato de que
                                               [o rei é mais bonito nu
E eu vou e amo o azul, o púrpura e o amarelo
E entre o meu ir e o do sol, um aro, um elo
(“Some may like a soft brazilian singer
But I’ve given up all attempts at perfection”)

CAMINHO
15 de janeiro de 2010

moças & rapazes,
 
a poesia que segue, de minha autoria, é dedicada a um grande amigo pelo seu aniversário. ela vai para o responsável, em termos práticos, pela existência do “prosa em poema”. um menino lindo, inteligente, com quem adoro conversar, que sempre me diz muito com suas colocações. possuímos sentimentos grandes de carinho e de respeito mútuos. apesar do pouco tempo, a nossa amizade já mostrou que veio para ficar.
 
francisco ferraz, este post, hoje, é inteirinho seu (rs)!
 
gosto um bocado destas linhas porque elas traduzem um tanto do que espero de mim no meu caminho. é um hino à vida, um canto de resistência, de vigor, um elogio à existência, apesar dos seus perigos, apesar dos seus pesares. se há uma coisa que temo é a desistência de mim. isso eu não quero de jeito nenhum!
 
afirma clarice lispector:
 
Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma.
 
tudo o que é vida me incita, senhores. e me incita porque, nela, na vida, não existe um caminho “certo” a ser seguido. são muitas as maneiras de se fazer valer uma existência, são várias as verdades para se constituir uma rota. por isso, tento não me atropelar com as divergências, com as discordâncias, que são naturalmente geradas. assento, vivo o meu alento enquanto tenho tempo, enquanto é tempo, enquanto há tempo. querendo ou não, na trilha, tudo passa (para o bem e para o mal). e justamente porque tudo passa, que não me amassa a desgraça de nada. a graça da vida, para mim, reside nisto: as desditas, as desventuras, aprimoram-me para as conquistas, para as vitórias. através dos insucessos, ganho gana para correr atrás dos triunfos, dos êxitos.  
 
se o que há para viver é turbilhão, é a luz anêmica na escuridão, é a blusa com falta de botão, se o que se tem em mãos é um grande & robusto quisto, vamos que vamos, sem parar: conduzo-me pelo que foi e é dito a vocês — disse e digo: tudo o que é vida me incita / a desgraça de nada me amassa / tudo, um dia, passa —, pondo mais peito, mais garra, no que me insisto. é assim que atravesso quaisquer turbilhões, é assim que transponho a escuridão com sua luz anêmica, é desse modo que visto qualquer blusão com falta de botão.
 
cravo a minha vitória com ou sem gol, isto é, venço a todo custo, até mesmo quando fracasso. pois o fracasso muito me ensina, muito me mostra, sobre a arte de viver. não é bom, não é bacana fracassar, errar, contudo, faz parte do jogo. aceito, em mim, todas as nuances da aposta. 
 
assim eu sigo, assim eu vou, assim eu sou.
 
e espero contar com você, francisco!, nas venturas e desventuras, sempre disposto, disponível, sempre a fim de mais & mais & mais.
 
é com fome de vida que conseguimos mudanças efetivas.
 
beijo em todos!
um outro especial em você, chicão!
o preto,
paulo sabino / paulinho.
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CAMINHO  (Paulo Sabino)
 
tudo  o  que  é  vida
me  incita
—  à  sua  luz,
pele  pupila  papila  narina,
tudo  se  potencializa  —.
a  verdade  destituída
de  verdade:
no  fundo,  puro  embate.
por  isso  assento,
vivo  o  meu  alento
enquanto  há  tempo:
pois  que  tudo  passa,
e,  passando,  de  nada
me  amassa  a  desgraça.
 
(aí  está  da  vida  a  graça:
as  desditas
aprimoram-me
às  conquistas.)
 
o  que  há  para  viver?  turbilhão?
uma  luz  anêmica  na  escuridão?
a  blusa  com  falta  de  botão?
 
mas  a  minha  vida  é  isto!:
por  maior,  por  mais  robusto  o  quisto,
conduzo-me  pelo  que  foi  e  é  dito,
pondo  mais  peito  no  que  me  insisto.
sem  mais  história:
o  lance  é  cravar  a  vitória
com  ou  sem  gol.
assim  eu  vou.