VIRGEM
1 de novembro de 2011

Farol da ilha de Porer (Croácia)

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INOCENTES DO LEBLON   (Carlos Drummond de Andrade)

 

Os inocentes do Leblon
não viram o navio entrar.
Trouxe bailarinas?
trouxe imigrantes?
trouxe um grama de rádio?
Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram, 
mas a areia é quente, e há um óleo suave
que eles passam nas costas, e esquecem.

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praia de ipanema. posto 9. horário de verão. 19h10.

caminhando na areia, há poucos dias, tendo, às costas, as pedras do arpoador, à frente, os morros dois irmãos & a favela do vidigal, atrás dos dois irmãos, a pedra da gávea, à direita, na beira-mar, o hotel marina, e tendo o sol, já caído atrás das montanhas, pintando o céu azul em tons de alaranjado, este verso brotou na minha garganta, ganhando a minha voz, que o repetiu alto, numa espontaneidade genuína:

“as coisas não precisam de você”.

logo em seguida, o seguinte:

“quem disse que eu tinha que precisar?”

as luzes brilham no vidigal & não precisam de você.

as luzes das casas, das ruas, cintilam no morro do vidigal, compondo o cenário, lindas, e não precisam de você para brilhar, não precisam de você para cintilar.

não precisam de você, não precisam de ninguém, não precisam de nada.

os (morros) dois irmãos, e sua beleza, e sua imponência frente à paisagem, também não precisam de você para serem belos & imponentes.

o hotel marina, à beira-mar, aceso por volta das 19h10 do horário de verão carioca, quando acende, não é por nós dois nem lembra o nosso amor.

os inocentes do leblon, a que se refere drummond no poema citado, os inocentes do leblon, ignorantes imersos em suas pequenas questões, imersos no óleo suave que passam nas costas, para relaxamento, quando dispostos na areia quente & fofa, os inocentes do leblon, que não vêem nada, que não vêem o navio entrar nem tampouco saberiam que tipo de carga o navio carrega, que , na verdade, não se interessariam em ver ou saber da entrada do navio, os inocentes do leblon, que esquecem tudo que não esteja ao alcance do seu umbigo & dos seus interesses, estes não sabem de você, nem vão querer saber.

as coisas não precisam de você, não precisam de ninguém, não precisam de nada.

as coisas, no mundo, existem independentes de mim, independentes de vocês, independentes de nós.

e isso, no fundo, é bom. isso, no fundo, é o melhor, pois significa que, para ser feliz, para estar bem, para admirar o belo que me cerca, não dependo de nada nem de ninguém.

dependo de mim.

a vida gosta de quem gosta da vida.

as belezas estão no mundo, dispostas, disponíveis, a quem quiser sorvê-las, a quem souber aproveitá-las.

(os dois irmãos, as luzes no vidigal, o hotel marina aceso na orla, as luzes alaranjadas do pôr do sol, as gaivotas & fragatas que partem na direção das pedras, e mais o que houver.)

a constatação de que o bem-estar, a felicidade, dependem apenas de nós, dependem de bancarmos as nossas escolhas, doam a quem doer, em prol do nosso bem-estar, em prol da nossa felicidade, em prol das coisas que verdadeiramente nos fazem bem.

virgem: virgo: o sexto signo do zodíaco, relativo aos que nascem entre 23 de agosto & 22 de setembro.

virgem: o que é puro, intocado. desconhecido. o que não foi usado. o que é isento. o que é:

livre.

(as coisas não precisam de você, não precisam de ninguém, não precisam de nada.)

a constatação de que dependemos apenas de nós, seres solitários que somos, ainda que tenhamos o sentimento do mundo, no percurso de buscar & lutar por aquilo que nos encanta os olhos, espelhos da alma.

e o meu farol, o farol desta ilha que sou (território-império em meio a um mar de possibilidades), o farol da ilha só gira agora por outros olhos & armadilhas:

o farol da ilha procura, agora, outros olhos & armadilhas…

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Guardar. autor: Antonio Cicero. editora: Record.)

 

 

VIRGEM

 

As coisas não precisam de você:
Quem disse que eu tinha que precisar?
As luzes brilham no Vidigal
E não precisam de você;
Os dois irmãos
Também não.
O Hotel Marina quando acende
Não é por nós dois
Nem lembra o nosso amor.
Os inocentes do Leblon,
Esses nem sabem de você
Nem vão querer saber
E o farol da ilha só gira agora
Por outros olhos e armadilhas:
O farol da ilha procura agora
Outros olhos e armadilhas.

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(do site: Youtube. áudio extraído do álbum: Virgem. artista & intérprete: Marina Lima. canção: Virgem. Letra: Antonio Cicero. Música: Marina Lima. gravadora: Universal Music.)

ARTE DAS GAIVOTAS
20 de abril de 2011

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as gaivotas:

elas sentem familiaridade com os dois planos: o alto das rotas & o refúgio nas marés baixas.

as gaivotas:

elas sentem familiaridade com os dois planos: as nuvens acima & os cardumes embaixo.

como as gaivotas sentem familiaridade com dois planos, a sua arte não pode ser compreendida como um buquê de flores aéreas. afinal, as flores mantêm-se suspensas, presas às suas devidas hastes, enquanto as gaivotas abismam-se no mar profundo, à cata de alimento.

as gaivotas, além de suspensas no ar, despencam “setas” na linha que traçam no ar, mar adentro.

se as gaivotas comovem é porque não apenas em suspensão, como as flores, mas porque também em descensão.

se as gaivotas comovem é porque se mostram indecisas entre o alto das rotas & o refúgio das marés baixas.

ao elevarem-se, as gaivotas possuem o movimento do respiro dos ares; as asas, que ditam a direção do vôo, seguem na intuição, seguem no instinto, seguem no faro, das frescas folhagens.

por isso, por conta desse seguir a intuição na direção das frescas folhagens, e por conta do mergulhar nas marés baixas, as direções do vôo das gaivotas se assemelham ao elevar & abismar-se da clássica forma de um coração.

um coração voa alto, como as gaivotas, para, logo em seguida, como as gaivotas, a procura por alimento no fundo, entregue (o coração) ao abismo onde queda, onde mata a sede, onde sacia a fome.

ponteiam para o alto, as gaivotas, mas logo encurvam o sentido & o arremetem a uma procura descendente, isto é: as aves apontam para o alto, para o céu, mas logo encurvam, mudando a direção, & avançam com ímpeto, avançam com arrojo, para o mar, abismo abaixo (procura descendente), mergulho em queda livre, feito seta certeira.

as gaivotas: mudam de “interesse”, ou seja, mudam “a sua atenção” (ora elas desejam o vôo alto, ao sabor das folhagens frescas, ora desejam o contrário, desejam o mergulho de cabeça, em queda livre), sem, todavia, perder o “estilo”, isto é, sem perder “a maneira de mostrar interesse por algo” — maneira intensa, maneira vigorosa, veemente, enérgica.

a arte das gaivotas: a arte do coração.

beijo todos!
paulo sabino.
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(da revista: Inimigo Rumor. número: 14. autor: Fernando Paixão. organização: Vários (comitê editorial). editoras: 7Letras / Cosac Naify.)

 

ARTE DAS GAIVOTAS

Se a arte das gaivotas consolida um território para os sentimentos, não se pode cair na pieguice de compreendê-las por um buquê de flores aéreas. Seus volteios e maneirismos guardam sim uma haste vertical, a partir dos olhos, mas espetada numa água que só se faz escapar. Água.

Se as gaivotas comovem é porque se mostram indecisas entre o alto das rotas e o refúgio das marés baixas. Há nuvens acima e cardumes embaixo; elas sentem familiaridade com os dois planos e entre eles escrevem uma carta pessoal e única.

Debaixo das primeiras luzes da manhã rabiscam o inquieto conhecimento das rochas próximas e não têm medo de serem frias as águas de um espelho, onde elas devem mergulhar e procurar alimento.

E também faz parte do movimento das gaivotas o respiro dos ares, as asas entregues à intuição de folhagens frescas. Por isso as direções do vôo tanto se assemelham ao elevar e abismar-se da clássica forma de um coração. Ponteiam para o alto, as gaivotas, mas logo encurvam o sentido e o arremetem a uma procura descendente. Muda o interesse ao sabor da linha, mas sem perder o estilo.