DISTRIBUIÇÃO DA POESIA: CONVITE PARA A ILHA
4 de junho de 2014

Ilha Maldivas

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mel silvestre tirei das plantas, sal tirei das águas, luz tirei do céu.

escutai, meus irmãos: poesia tirei de tudo para oferecer à vida, para oferecer à força criadora que move este mundo.

não tirei ouro da terra nem sangue de meus irmãos.

estalajadeiros, que são os donos de estalagem, não me incomodeis.

bufarinheiros, que são vendedores ambulantes de bufarinhas (coisas bobas, insignificantes), e banqueiros, sei fabricar distâncias para vos recuar.

a vida está malograda, está fracassada, está malsucedida, e eu creio nas mágicas da força criadora do universo.

os galos não cantam, a manhã não raiou: a vida está malograda, está fracassada, está malsucedida.

vi navios irem & voltarem (não completando a sua viagem), vi infelizes irem & voltarem (não completando a sua viagem), vi ziguezagues na escuridão: a vida está malograda, está fracassada, está malsucedida.

capitão-mor, governador de capitania hereditária, homem de conhecimentos, onde é o congo? me diz, capitão-mor, governador de capitania hereditária, homem de conhecimentos, onde é a ilha de são brandão?

capitão-mor, governador de capitania hereditária, que noite escura!

(os galos não cantam, a manhã não raiou: a vida está malograda, está fracassada, está malsucedida.)

uivam molossos, uivam cães de aspecto robusto & ameaçador, na escuridão.

ó indesejáveis, ó indivíduos cuja presença não é desejável por mostrarem-se perniciosos aos interesses dos demais irmãos de terra, qual o país, qual o país que desejais?…

(os indesejáveis só sabem denegrir a vida, os indesejáveis só sabem obscurecer os caminhos dos demais irmãos de terra.)

mel silvestre tirei das plantas, sal tirei das águas, luz tirei do céu: só tenho poesia para vos dar.

abancai-vos, meus irmãos!

para vos dar, só tenho: poesia: e um convite para a ilha:

não digo em que signo se encontra esta ilha, não falo sob que forma avista-se a ilha, mas ilha mais bela não há no alto-mar.

o peixe cantor existe por lá.

ao norte dá tudo: baleias azuis, o ouriço vermelho, o boto voador.

a leste da ilha há o gêiser gigante (gêiser: fonte termal que lança no ar jatos de água ou vapor em intervalos regulares), deitando água morna. quem quer se banhar?

há plantas carnívoras sem gula, que amam & não devoram.

ao sul o que há? há rios de leite, há terras bulindo, mulheres nascendo, raízes subindo, lagunas tremendo, coqueiros gemendo, areias se entreabrindo.

a oeste o que há? não há o ocidente nem coisa de lá: a terra está nova: devemos olhar o sol se elevar.

convido os rapazes & as raparigas para ver esta ilha, correr nos seus bosques, nos vales em flor, nadar nas lagunas, brincar de esconder, dormir no areal, caçar os amores que existem por lá.

o sol da meia-noite, a aurora boreal, o cometa de halley, as moças & moços nativos, podeis desfrutar.

partamos todos, enquanto esta ilha não vai afundar, enquanto não chegam guerreiros das terras, enquanto não chegam piratas do mar.

(os indesejáveis só sabem denegrir a vida, os indesejáveis só sabem obscurecer os caminhos dos demais irmãos de terra.)

as noites! que noites de imenso luar! podeis, todos vós, no céu da ilha, contemplar constelações: a ursa maior, a lira, a órion, a luz de altair, estrelas cadentes correndo no espaço, a estrela dos magos — a tão célebre estrela de belém, que guiou os três reis magos do ocidente até o recanto onde nascera o redentor — parada no ar.

que noites de imenso luar!

e as sestas? e as horas de descanso após o almoço? que sestas! a brisa é tão mansa! há redes debaixo dos coqueirais, sanfonas tocando, o sol se encobrindo, as aves cantando canções de ninar.

partamos todos, que as noites de escuro não tardam, não demoram, a chegar na ilha.

(partamos todos, enquanto não chegam guerreiros das terras, enquanto não chegam piratas do mar.)

partamos todos! mas onde fica a ilha? em que parte exatamente do oceano? então que é da ilha, da ilha mais bela que há pelo mar & onde se pode sonhar com os amores que nunca na vida nos hão de chegar?

o jeito é partir em busca desta ilha, o jeito é partir em busca do meu paraíso aqui na terra, o jeito é partir em busca do recanto que desejo a mim, que desejo ao meu bem-estar, sem mapa ou bússola para orientar. simplesmente partir, singrando os mares da vida.

eu, o antinavegador de moçambiques, goas, calecutes.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Melhores poemas. seleção: Gilberto Mendonça Telles. autor: Jorge de Lima. editora: Global.)

 

 

DISTRIBUIÇÃO DA POESIA

 

Mel silvestre tirei das plantas,
sal tirei das águas, luz tirei do céu.
Escutai meus irmãos: poesia tirei de tudo
para oferecer ao Senhor.
Não tirei ouro da terra
nem sangue de meus irmãos.
Estalajadeiros não me incomodeis.
Bufarinheiros e banqueiros
sei fabricar distâncias
para vos recuar.
A vida está malograda,
creio nas mágicas de Deus.
Os galos não cantam,
a manhã não raiou.
Vi os navios irem e voltarem.
Vi os infelizes irem e voltarem.
Vi homens obesos dentro do fogo.
Vi ziguezagues na escuridão.
Capitão-mor, onde é o Congo?
Onde é a ilha de São Brandão?
Capitão-mor que noite escura!
Uivam molossos na escuridão.
Ó indesejáveis, qual o país,
qual o país que desejais?
Mel silvestre tirei das plantas,
sal tirei das águas, luz tirei do céu.
Só tenho poesia para vos dar.
Abancai-vos meus irmãos.

 

 

CONVITE PARA A ILHA

 

Não digo em que signo se encontra esta ilha
mas ilha mais bela não há no alto-mar.
O peixe cantor existe por lá.
Ao norte dá tudo: baleias azuis,
o ouriço vermelho, o boto voador.
A leste da ilha há o Gêiser gigante
deitando água morna. Quem quer se banhar?
Há plantas carnívoras sem gula que amam.
Ao sul o que há? — há rios de leite,
há terras bulindo, mulheres nascendo,
raízes subindo, lagunas tremendo,
coqueiros gemendo, areias se entreabrindo.
A oeste o que há? — não há o ocidente nem coisa de lá:
a terra está nova: devemos olhar o sol se elevar.
Convido os rapazes e as raparigas
pra ver esta ilha, correr nos seus bosques,
nos vales em flor, nadar nas lagunas,
brincar de esconder, dormir no areial,
caçar os amores que existem por lá.
O sol da meia-noite, a aurora boreal,
o cometa de Halley, as moças nativas,
podeis desfrutar. Meninas partamos
enquanto esta ilha não vai afundar,
enquanto não chegam guerreiros das terras,
enquanto não chegam piratas do mar.
As noites! Que noites de imenso luar!
Podeis contemplar a Ursa maior,
A Lira, a Órion, a Luz de Altair,
estrelas cadentes correndo no espaço,
a estrela dos magos parada no ar.
Que noites, meninas, de imenso luar!
E as sestas? Que sestas! A brisa é tão mansa!
Há redes debaixo dos coqueirais,
sanfonas tocando, o sol se encobrindo,
as aves cantando canções de ninar.
Meninas partamos que as noites de escuro
não tardam a chegar. Então que é da ilha,
da ilha mais bela que há pelo mar
e onde se pode sonhar com os amores
que nunca na vida nos hão de chegar?

POEMA DE NATAL
24 de dezembro de 2013

Luzes de Natal

 

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eis outra vez o fim.

mais um ano que finda.

tudo termina & os meses só se mostram no final, no choro do menino ou da menina (pois somente depois de passados 9, os meses revelam o seu rosto, os meses revelam a sua forma: se 9 meses moldados em choro de menino ou se 9 meses moldados em choro de menina), e na roda de samba do natal, depois de passados 12.

ao final de 12 meses, o rosto, a forma, de 1 ano cumprido. o fim de um, início de outro.

portanto, tudo termina ou tudo recomeça? quem desvenda as imagens das horas, quem desvenda o que a vida nos desenhará de acontecimentos, no papel em branco? quem é capaz de nos traçar, no papel, os passos exatos que engendraremos ao longo dos 12 meses que moldam o rosto, a forma, de 1 ano?

como nada nem ninguém é capaz de nos traçar, no papel, os passos exatos que engendraremos ao longo dos 12 meses que moldam o rosto, a forma, de 1 ano, mais vale acompanhar a moenda do tempo (moenda: conjunto de peças, num engenho, que serve para moer ou espremer certos produtos, como a cana-de-açúcar, por exemplo), mais vale beber o caldo que a moenda do tempo nos oferece cotidianamente, dia após dia, mais vale decifrar o mel, descobrir o doce, existente no caldo que a moenda do tempo nos entorna cotidianamente, dia após dia, mais vale graduar, mais vale dosar, o álcool (aquilo que entorpece, aquilo que entontece, aquilo que embebeda) do líquido que nos entorna a moenda do tempo, que o tempo tem o seu jogo (de acasos & surpresas) & desabafa seu canto de mistério (com as tantas peças & artimanhas que nos prega) & canto pastoril (pois, com o seu canto de mistério, o tempo nos guia & nos leva, como o pastor que conduz o seu rebanho caminhos afora).

ao fim de mais 1 ano que finda, melhor será juntar os nossos cansaços, vestir o nosso lar de caracol, isto é, fazer do nosso lar a nossa concha, concha onde possamos estar bem, possamos estar protegidos, confortáveis, e acompanhar os íntimos compassos, compassos que vão dentro de nós, do que é, em nós, silêncio (quietude paz reflexão) & amor (dos sentimentos o mais nobre).

assim, até o azul — cor do meu delírio — que vem de dentro deste poema que vos ofereço como presente natalino, azul que vem de dentro da rima em “-ul” (formada pelo poema), será o vosso mundo, que já não tem centro (e que nem precisa de um centro. que, no vosso mundo, sejam muitos os focos & interesses), será o azul que vem de dentro deste poema o vosso caminho, já sem norte & sul (e que nem precisa de uma direção. que, no vosso mundo, sejam muitas as setas & os descaminhos).

aceitai o azul deste poema que vos ofereço & o desejo de 12 meses de realizações felizes, para que se revele, ao cabo desses 12 meses, o rosto bonito & sereno de 1 ano bem vivido.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Melhores poemas. seleção: Luiz Busatto. autor: Gilberto Mendonça Teles. editora: Global.)

 

 

POEMA DE NATAL

A Joaquim Inojosa

 

Eis outra vez o fim. Tudo termina
e os meses só se mostram no final,
no choro do menino ou da menina
e na roda de samba do Natal.

Termina ou recomeça? Quem desvenda
as imagens das horas no papel?
Mais vale acompanhar sua moenda,
beber seu caldo, decifrar seu mel

e graduar seu álcool na garrafa
ou nas tábuas de cedro do barril,
que o tempo tem seu jogo e desabafa
seu canto de mistério e pastoril.

Melhor será juntar nossos cansaços,
vestir o nosso lar de caracol
e acompanhar os íntimos compassos
do que é silêncio e amor, sob o lençol.

Assim, até o azul que vem de dentro
deste poema e desta rima em -ul
será teu mundo, que já não tem centro,
e teu caminho, já sem norte e sul.

O FUNCIONÁRIO & A COISA / VIDA
22 de março de 2012

(Dedos no computador, na rotina do ofício tedioso.)

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no escritório,

trabalhando burocracias,
 
o funcionário:
 
entre papéis & letras na rotina do ofício, entre papéis & letras na rotina das funções desempenhadas, na rotina dos ofícios (tipo de documento) a serem apreciados, o funcionário assiste à fossilização, isto é, o funcionário assiste à petrificação, dos seus dedos na mesa.
 
dedos petrificados, dedos paralisados, dedos inertes, dedos imóveis.
 
dedos mortos.
 
na rotina do ofício, morreu o tempo.
 
na rotina do ofício, justificam-se as mais absurdas, as mais estapafúrdias lendas, as lendas mais sem sentido, lendas de tédio & eternidade (lendas de tédio eterno): na rotina do ofício, as horas se despiram do suave segredo, do suave mistério, do suave encanto que nos surpreende, na rotina do ofício, as horas se despiram dos seus acontecimentos-imprevistos, as horas se despiram dos seus acasos.
 
na rotina do ofício, não há espaço para surpresas. a rotina do ofício é previsível, sem surpresas, sem maiores possibilidades; os mesmos sempre ofícios, as mesmas sempre funções.
 
já não há mais ponto, já não há mais lugar, para a conversa lírica dos atores (cada qual, no escritório, representando o seu papel dentro das devidas atribuições profissionais) no palco da vida funcionária.
 
as mãos gordas passeiam seus cachorros (decorativos) na mesa de plástico ou de verniz:
 
que pássaro se oculta nesta paisagem erma?
 
que vento, acaso tímido (bem ventinho), brincará nestas árvores rasteiras do escritório?
 
que horizonte, dentro da rotina do ofício (onde assiste o funcionário à fossilização dos seus dedos), que distância, devolverá o grito do funcionário, sua voz alta, a voz que berra os seus reais desejos? 
 
na rotina do ofício, o sempre mesmo tédio eterno das burocracias & dos processos possessos à espera da consideração de olhares silenciosos, à espera da consideração de olhares que não dizem nada, de olhares que: nada.
 
(flor nenhuma, ou flora, belezas que importam ao funcionário, belezas que, dependendo do olhar que se tenha, podem fazer uma grande diferença na existência, flor nenhuma — ou flora — considera, flor nenhuma — ou flora — atenta para, flor nenhuma — ou flora — leva em conta, a atonia — a fraqueza geral, a falta de tônus, de vigor — da máquina dinâmica, máquina ágil, máquina ligeira, máquina dinâmica a datilografar os processos possessos & os ofícios com seus despachos rotundos, despachos gordos, despachos corpulentos, à consideração de olhares silenciosos. flor nenhuma — ou flora — se importa com a agilidade da máquina dinâmica na rotina do ofício.)   
 
que imprevisto, que surpresa, que imponderável, rodeia o telefone utilizado na rotina do ofício do funcionário?
 
os dedos continuam a caça, os dedos permanecem à procura, procura sem acaso. os dedos continuam a caça pelo “imprevisto” numa rotina sem acaso…
 
e, assim, nesse estado, estado de procura pelo “imprevisto”, pelo “imponderável”, os dedos são cabos de tormenta, os dedos são “cabos” atormentados, os dedos são cabos de tormenta (inclusive na forma física — cabo: ponta ou porção do continente que avança mar adentro. os dedos são pontas ou porções do corpo-continente que avançam vida adentro), os dedos são adamastores (adamastor: gigante que representa as formas da natureza sob a forma de terríveis tempestades, ameaçando a ruína de quem tentasse dobrar o cabo da boa esperança, também conhecido como cabo das tormentas, localizado ao sul do continente africano, para ganhar o oceano índico, região, segundo a mitologia greco-romana, tida como de domínio do gigante), os dedos, que trabalham burocracias na rotina do ofício, são simples traços esferográficos em inúteis rubricas assinadas nos ofícios & processos possessos.
 
os dedos, na rotina massante & massacrante do ofício, são potros que se desligam do seu sereno mister, potros que se desligam da sua serena profissão, de garanhões amando nas pastagens.
 
os dedos são potros que se desconectam da sua função de amantes das pastagens da escrita — no caso, as folhas de papel em branco.
 
pálidos polvos plásticos: as mãos & seus dedos-tentáculos; plásticos, artificiais, polvos, porque falseados os dedos (do funcionário na rotina do ofício), artificiais, plásticos, os polvos, porque falsas as intenções dos dedos diante da rotina do ofício, pálidos polvos plásticos (os dedos) jogados nas cavernas da mesa, moluscos que se encolhem & se distendem para gestos vagos de angústia.
 
os dedos do funcionário se cansaram dos contatos de sempre. não querem mais (os dedos do funcionário) as suas mesmas tediosas funções profissionais de todo dia.
 
os dedos do funcionário já não desenham, por exemplo, plantas nas páginas desertas, nem cavalgam (os dedos do funcionário) no dorso das frases mais rebeldes; os dedos do funcionário (habituados à rotina do ofício) não mais montam nas costas das frases indomáveis, frases-cavalos selvagens, frases que dão coice, frases arredias, arrojadas.
 
conformados (os dedos do funcionário à rotina do ofício), apenas se trancam, sonolentos, nas grades dos chavões, nas grades das obviedades & mesmices de idéias, nas grades dos chavões que, neste ensejo, que, neste momento propício, nesta oportunidade, parto em mil pequenas partes de protestos, parto em mil pequenas partes de reclamações, em prol da estima & da consideração à vida que se perde com o estilo de vida do funcionário & sua tediosa rotina profissional, em prol da estima & da consideração à vida que se perde vendo o processo de fossilização dos dedos, dedos que, cada vez mais, servem cada vez menos.
 
em prol da estima & da consideração à vida que se perde com o estilo de vida do funcionário & sua tediosa rotina profissional: 
 
vida / coisa: coisa / vida: a vida & as coisas :
 
as coisas (da vida) não me falam de improviso. elas me falam a partir de re-apresentações: a pedra, o rio, o pássaro, a cor que toma a nuvem no final da tarde, as coisas primeiro se eternizam nos meus olhos. depois de eternizadas, as coisas se reinventam, as coisas se reapresentam, as coisas se revelam, serenas no seu verbo inusitado, serenas no seu discurso inesperado, discurso (das coisas) brotado da minha relação com a pedra, da minha relação com o o rio, da minha relação com o pássaro, da minha relação com a cor que toma a nuvem no final da tarde.
 
e cada qual (a pedra, o rio, o pássaro, a cor que toma a nuvem no final da tarde) me abrasa com seu lume, sopra nos meus ouvidos seu mistério, seu discurso de música & silêncio (as coisas & os seus sons, sons que nada esclarecem, que nada explicam, sons que apenas: sons).
 
por isso é que me perco & me desnudo como um apaixonado pelas coisas (coisas que me abrasam com seu lume, coisas que sopram nos meus ouvidos seus mistérios), desdobrado de mim em mil angústias, desmembrado de mim em mil desejos, desenrolado de mim em mil quereres, e pronto para o acaso, e pronto para o imponderável, e pronto para a surpresa, que descubro triturando, acaso que descubro moendo, como também triunfando(!), meu sonho contra o tempo, no desespero & alucinação de viver & amar.
 
(atenção à fossilização dos dedos!)
 
(mais estima & mais consideração à vida que se perde!)
 
beijo todos!
paulo sabino.  
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(do livro: Melhores poemas. autor: Gilberto Mendonça Teles. seleção: Luiz Busatto. editora: Global.)
 
 
 
O FUNCIONÁRIO
 
 
Entre papéis e letras
na rotina do ofício
(e telegrama), assisto
à fossilização
de meus dedos na mesa.
 
(Morreu o tempo aqui.
Aqui se justificam
as mais absurdas lendas
de eternidade e tédio:
as horas se despiram
do suave segredo
de seu encantamento,
e já não há mais ponto
para a conversa lírica
dos atores, no palco
da vida funcionária.)
 
As mãos passeiam gordas
seus cachorros na mesa
de plástico ou verniz.
Que pássaro se oculta
nesta paisagem erma?
que vento acaso tímido
brincará nestas árvores
rasteiras? que distância,
que horizonte sem éter
devolverá meu grito?
 
Uivam unhas-de-fome
nos processos possessos
de despachos rotundos
à consideração
de olhares silenciosos.
Mas flor alguma (ou flora)
considera a atonia
da máquina dinâmica.
(Que imprevisto rodeia
o telefone?)
 
Os dedos continuam
a caça sem acaso.
São cabos de tormenta,
adamastores, simples
traços esferográficos
em rubricas inúteis.
Potros que se desligam
de seu mister sereno
de garanhões enxutos
amando nas pastagens.
 
Pálidos polvos plásticos
nas cavernas da mesa,
moluscos que se encolhem
nas esponjas de nylon
e distendem molhados
gestos vagos de angústia.
 
Meus dedos se cansaram
dos contatos de sempre.
Já não desenham plantas
nas páginas desertas,
nem cavalgam no dorso
das frases mais rebeldes,
apenas, conformados,
se trancam sonolentos 
nas grades dos chavões
que, neste ensejo, parto
em mil pequenas partes
de protestos de estima
e consideração
à vida que se perde.
 
 
 
COISA / VIDA
 
 
As coisas não me falam de improviso:
a pedra, o rio, o pássaro, a cor
que toma a nuvem no final da tarde,
primeiro se eternizam nos meus olhos,
depois se reinventam, se revelam
serenas no seu verbo inusitado.
 
E cada qual me abrasa com seu lume,
sopra nos meus ouvidos seu mistério,
seu discurso de música e silêncio.
 
Por isso é que me perco e me desnudo
desdobrado de mim em mil angústias
e pronto para o acaso que descubro
              triturando meu sonho contra o tempo
              no desespero de viver e amar.

A LINGUAGEM (CLARA) DO POETA: O SEU DILEMA VITAL
3 de julho de 2011

o dilema vital do poeta:
 
ter o sangue aventureiro, isto é, gostar de aventuras, gostar de aventurar-se, e ter um amor (imenso) à terra que o sonho lhe deu.
 
o dilema vital do poeta:
 
o gosto pelas aventuras e o gosto pela terra que estimula aventuras.
 
há, no poeta, tanto a vontade de partir, de navegar rotas diversas, quanto o desejo de fincar os pés na terra que desperta sua vontade de partir.
 
preso ao ideal que projeta, aprisionado ao ideal que sonha, o poeta vive as suas fantasias em terra firme, na solidão da praia derradeira.
 
o gosto do poeta de lutar contra o imprevisto, o combate do poeta ao que é imprevisível, o combate ao “elemento surpresa” da vida, fez com que o bardo se movimentasse, fez com que o bardo andasse, percorresse caminhos, o gosto de lutar contra o imprevisto fez-lhe todo de vento, elemento cujo estado fundamental é o movimento, é a andança.
 
o poeta, portanto, percorre veredas, no entanto, com os seus pés fincados em terra firme.
 
o bardo estende os olhos ao mar e pensa ter chumbos nos pés, e também pensa ter o mar, e tudo imenso:
 
com chumbos nos pés, com chumbos que fundamentam os pés do poeta em terra firme, o que lhe resta é sonhar, o que lhe resta é delirar, como um refém, um refém dos seus sonhos & delírios.
 
o que resta ao poeta é ser refém, ou seja, o que sobra ao poeta é estar aprisionado aos seus sonhos, aos seus devaneios de aventuras além-mar, e ao seu desespero bom, causado pelo dilema.
 
vivendo o seu dilema, o poeta sabe que não será ele mesmo o tempo todo, o poeta sabe que, dele, outro nascerá, e esse outro, com o passar do tempo, também trará à luz um outro “outro”, e assim sucessivamente.
 
vivendo o seu dilema, o poeta sabe do seu processo de transformação na trajetória dos seus passos indecisos.
 
naturalmente, a indecisão ante determinados caminhos & possibilidades causa medo.
 
em geral, todos nós temos medo do que não podemos controlar, temos medo do que não podemos domar, temos medo do lado imprevisível da vida, e lutamos contra ele.
 
quando isso acontecer, lutar, lutar contra o medo, e lutar sonhando.
 
lutar sonhando, lutar amando.
 
contar com amores durante a jornada.
 
contar com amores, contar com marias (maria cheia de graça, maria cheia de vida), e contar com a linguagem.
 
por entre as palavras o poeta caminha com seguridade. diante da página deserta, nas suas retinas:
 
sonhos de coisas claras, de coisas lúcidas.
 
nas retinas do poeta:
 
a construção do poema, sua arquitetura de vento & delírio, sua carne onírica, sua alma inventiva.
 
na estrutura da língua, a linguagem do poeta fala o seu segredo, a linguagem do poeta desata o próprio poeta, os dedos a dedurar, com clareza, através de imagens limpas, o ser do poeta.
 
no cio, no tesão, na vontade, no desejo, do ofício de escrever, buscar a linguagem na sua usura, buscar a linguagem no pouco que, ao escrever, o poeta consegue dela extirpar, e obter, da linguagem, sua nudez segura, absoluta canção, voz perene & inicial, primordial, primeira.
 
pois, assim, a vida do poeta será o seu bem precioso, e, fiel ao seu destino, com o mesmo ideal de um cavaleiro-andante, o poeta, todo feliz, leva-a como um diamante inimitado
& por demais valioso.
 
tenta o poeta sentir a vida, tenta o poeta compreendê-la um pouco, sem, no entanto, buscar-lhe a luz de seus inúmeros segredos. afinal, o poeta sabe que a vida nada pode dizer, o poeta sabe que a resposta está além dos deuses.
 
a vida tem a sua dimensão difícil, uma dimensão mais árdua, e também uma dimensão inexplicável, dimensão de mar que se lança, e lança suas espumas, contra rochedos, duros, ásperos, serenos.
 
todavia, ao poeta não incomoda essa dimensão. ele sabe que assim o é, que assim o foi, e que assim será.
 
sigamos.
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Melhores poemas. seleção: Luiz Busatto. autor: Gilberto Mendonça Teles. editora: Global.)
 
 
 
DILEMA
 
Tenho o sangue da gente aventureira
e o amor à terra que me deu o sonho.
Mas me encontro parado na fronteira,
sem saber se recuo, ou se a transponho.
Aprisionado pelo ideal que sonho
na solidão da praia derradeira,
risco na areia o poema que suponho
ficará na memória a vida inteira.
 
O gosto de lutar contra o imprevisto
fez-me todo de vento e não resisto
ao desespero bom de ir mais além.
Estendo os olhos para o mar, e penso:
“— Tenho chumbo nos pés e o mar e imenso:
só me resta sonhar como um refém.”
 
 
 
O OUTRO
 
Já não serei eu mesmo, serei outro
quando me virem segurando as horas
e desenhando pássaros barrocos
nas pétalas das conchas e das rosas.
Se, deslumbrado pela luz da aurora,
eu caminhar sem rumo, como um louco,
sabei que levo estrelas na memória
e me contemplo velho, sendo moço.
Diante dos homens gritarei comícios
e arrastarei por onde for o bando
que me seguir os passos indecisos.
E quando a noite vier rolando o medo,
eu dormirei nas pedras como um santo
e sonharei nas ruas como um bêbado.
 
 
 
MARIA
 
Maria, há tanta Maria
cantando na minha vida.
Maria cheia de graça,
Maria cheia de vida.
 
Andei mundo, rodei terra,
cruzei os mares que havia
e, em cada canto da terra,
o amor eu tive, Maria.
 
Na vida que Deus me deu,
deu-me tudo o que eu queria:
deu-me esperança e me deu
o amor que eu sempre amaria.
 
Eis por que sempre há Maria
mariando na minha vida.
Maria cheia de graça,
Maria cheia de vida.
 
 
 
LINGUAGEM
 
Eu caminho seguro entre palavras
e páginas desertas. Nas retinas:
sonhos de coisas claras e a lição
de outras coisas que invento
para o só testemunho
de minha construção
imaginária
de pedra
                        sobre
                                    pedra
                                                   e cimento
                                                                            e silêncio.
 
Da sintaxe invisível a certeza
e o desdobrar tão limpo das imagens
na vereda serena que dói fundo
no olhar preciso e vago consumindo
seu faro de palavras.
                                                   Na estrutura
da língua se desgasta o meu segredo,
se desgastam meus dedos, a mais pura
moeda que circula desprezível
no cio deste oficio de buscar-te
na usura de ti,
                                 nudez segura,
absoluta canção
                                      e voz perene,
inicial.
 
 
 
VIDA
 
A vida, tenho-a como um bem precioso
que alguém depôs em minhas mãos, confiante
em que eu pudesse amá-la até o instante
de meu supremo e derradeiro gozo.
 
E, fiel ao meu destino, mas sem pouso,
com o mesmo ideal de um cavaleiro-andante,
levo-a, todo feliz, como um diamante
inimitado e por demais valioso.
 
Tento senti-la e compreendê-la um pouco
sem, no entanto, buscar-lhe, como um louco,
a luz de seus inúmeros segredos.
 
Que a mim não me incomoda coisa alguma
que ela pareça um mar lançando espuma
contra a serenidade dos rochedos.