dia 24 de junho, dia de são joão, dia de xangô menino, dia do santo festeiro: dia em que este que vos escreve completou as suas 41 primaveras. muitíssimo bem vividas, graças.
não sou pessoa de saudosismos; adoro a vida — e espero continuar assim — no momento em que ela é, no momento presente, no momento atual. acho muito bonito olhar para trás e ver o que este jovem rapaz de 41 anos realizou em prol da poesia e literatura e o que ainda tem a fazer. muita coisa bonita e bacana acontecendo, muita coisa bonita e bacana pra acontecer, muita coisa bonita e bacana pra compartilhar. aguardem.
e, nesta trajetória que me cabe, com tanta coisa a ser realizada, apesar dos pesares, apesar dos perigos, apesar de todas as pedras no meio do caminho, sigo apostando na flor, no amor, na alegria. aposto no bem-estar.
ser feliz com as minhas realizações e também ser feliz com a felicidade alheia: a felicidade do outro, se dermos espaço a ela, pode contagiar-nos a ponto de aplacar algumas feridas que trazemos. a ponto de aprendermos com quem vive a felicidade apesar dos pesares, apesar dos perigos, apesar de todas as pedras no meio do caminho. a ponto de percebermos que o nosso umbigo não é tão fundo e que os nossos problemas não são os maiores.
os momentos felizes não estão escondidos nem no passado e nem no futuro. a vida gosta de quem gosta da vida. eu sou um que gosto.
fique feliz porque outras pessoas estão felizes. porque os filhos de outras pessoas estão em escolas melhores. sorria porque alguém deixou de ser analfabeto. alegre-se por aqueles que também têm ceia. porque o outro pode simplesmente ser você, recebendo de volta tudo aquilo de bom que você, ao longo da sua existência, desejou aos outros.
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Flores de alvenaria. autor: Sérgio Vaz. editora: Global.)
SER FELIZ
Fique feliz
porque outras pessoas estão felizes.
Um brinde àquele seu amigo que saiu da fila do
………………….desemprego,
ou que encontrou um novo amor.
Por soldados de uma guerra que não te afeta,
que acabam de se abraçar para selar a paz.
Pelas pessoas que você nem conhece,
mas que já não têm problemas de saúde.
Fique feliz
porque os filhos de outras pessoas estão
em escolas melhores e não mais mendigam nos
………………….semáforos,
e uma pessoa que você nunca viu, e provavelmente
………………….nunca verá,
está dando seu beijo pela primeira vez.
Porque a mãe e o pai de alguém
estão chorando de felicidade vendo seu filho com o
………………….diploma na mão.
Sorria
porque alguém deixou de ser analfabeto.
Pela criança que começou a andar.
Por pais e avós que voltaram a ser criança.
Pelo seu amigo que agora tem mais dinheiro e não
………………….anda mais de ônibus, mas de bicicleta.
Porque alguém ao sul de Angola ou a leste da Tan-
………………….zânia acaba de dizer: eu te amo.
Por todas as pessoas que saíram do aluguel e, mais
………………….feliz ainda,
por aqueles que conseguiram seu teto.
Alegre-se
por aqueles que também têm ceia, ou não,
mas que já não disputam migalhas nas calçadas.
E porque sabe que o Deus em que você acredita
………………….não é seu personal trainer, e ele também
………………….deve atender às orações de outras pessoas.
Fique feliz
em saber que o brilho de outras pessoas
não é aquilo que te traz escuridão, mas a
………………….luminosidade.
Porque o outro pode simplesmente
ser você recebendo de volta
tudo aquilo de bom que você desejou aos outros.
(O elemento que mais fascina, o elemento do puro delírio, o elemento que vira a cabeça, de Paulo Sabino: água marinha: mar: útero às vistas: berço de todas as existências.)
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dia 2 de fevereiro é dia de festa no mar. portanto, deixo, aqui, a minha saudação à rainha do elemento que mais me fascina, elemento do meu delírio, elemento que vira a minha cabeça: o mar.
dia 2 de fevereiro: dia de saudar iemanjá, a grande mãe de todos os orixás.
muito me impressiona que tanto a ciência quanto as lendas africanas convirjam — ainda que por caminhos díspares — ao dizer que a origem & o desenvolvimento dos seres — os primeiros indícios de vida — se deram com o/no mar, se deram com as/nas águas marinhas.
o mais abundante elemento natural deste planeta azul, água para onde correm todas as águas, útero às vistas, criatório de tantas & diversas vidas, onde a mãe-d’água iemanjá permite que boiemos como quando no ventre de nossas mães-da-terra.
eu, até hoje, não aprendi a viver sem água & sem o mar à minha contemplação.
(e espero nunca aprender!)
em sua homenagem, uma compilação de textos & dois poemas-canções (com direito ao áudio das canções) que traçam o perfil & contam um pouco dos mitos que envolvem a mais prestigiosa entidade feminina da mitologia & dos cultos africanos.
salve minha mãe-d’água iemanjá!
salve a rainha do meu amante mor: o mar!
beijo todos!
paulo sabino.
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(do: Dicionário do folclore brasileiro. autor: Luís da Câmara Cascudo. editora: Global.)
IEMANJÁ. Mãe-d’água dos iorubanos. Orixá marítimo, a mais prestigiosa entidade feminina dos candomblés da Bahia. Recebe oferendas rituais, festas lhe são dedicadas, indo embarcações até alto-mar atirar presentes. Protetora de viagens, no processo sincrético das deusas marinhas passou a ser Afrodite, Anadiômene, padroeira dos amores, dispondo uniões, casamentos, soluções amorosas. Sua sinonímia é grande: Janaína, Dona Janaína, Princesa do Mar, Princesa do Aiocá ou Arocá, Sereia, Sereia do Mar, Oloxum, Dona Maria, Rainha do Mar, Sereia Mucunã, Inaê, Marbô, Dandalunda. Tem o leque e a espada como insígnias; seus alimentos sagrados são o pombo, o milho, o galo, o bode castrado; as cores rituais são o branco e o azul (…). Protege, defende, castiga, mata. Por vezes se apaixona. Tem amantes, os quais leva para o fundo do mar. Nem os corpos voltam. É ciumenta, vingativa, cruel, como todas as égides primitivas. A festa de Iemanjá na cidade de Salvador é em 2 de fevereiro, Nossa Senhora do Rosário. Nos candomblés e xangôs é representada, no salão exterior das danças, como uma sereia.
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(do livro: Mitologia dos orixás. autor: Reginaldo Prandi. editora: Companhia das Letras.)
IEMANJÁ AJUDA OLODUMARE NA CRIAÇÃO DO MUNDO
Olodumare-Olofim vivia só no Infinito,
cercado apenas de fogo, chamas e vapores,
onde quase nem podia caminhar.
Cansado desse seu universo tenebroso,
cansado de não ter com quem falar,
cansado de não ter com quem brigar,
decidiu pôr fim àquela situação.
Libertou as suas forças e a violência
delas fez jorrar uma tormenta de águas.
As águas debateram-se com rochas que nasciam
e abriram no chão profundas e grandes cavidades.
A água encheu as fendas ocas,
fazendo-se os mares e oceanos,
em cujas profundezas Olocum foi habitar.
Do que sobrou da inundação se fez a terra.
Na superfície do mar, junto à terra,
ali tomou seu reino Iemanjá,
com suas algas e estrelas-do-mar,
peixes, corais, conchas, madrepérolas.
Ali nasceu Iemanjá em prata e azul,
coroada pelo arco-íris Oxumarê.
Olodumare e Iemanjá, a mãe dos orixás,
dominaram o fogo no fundo da Terra
e o entregaram ao poder de Aganju, o mestre dos vulcões,
por onde ainda respira o fogo aprisionado.
O fogo se consumia na superfície do mundo e eles apagaram
e com suas cinzas Orixá Ocô fertilizou os campos,
propiciando o nascimento das ervas, frutos,
árvores, bosques, florestas,
que foram dados aos cuidados de Ossaim.
Nos lugares onde as cinzas foram escassas,
nasceram os pântanos e nos pântanos, a peste,
que foi doada pela mãe dos orixás ao filho Omulu.
Iemanjá encantou-se com a Terra
e a enfeitou com rios, cascatas e lagoas.
Assim surgiu Oxum, dona das águas doces.
Quando tudo estava feito
e cada natureza se encontrava na posse de um dos filhos de Iemanjá,
Obatalá, respondendo diretamente às ordens de Olorum,
criou o ser humano.
E o ser humano povoou a Terra.
E os orixás pelos humanos foram celebrados.
IEMANJÁ DÁ À LUZ AS ESTRELAS, AS NUVENS E OS ORIXÁS
Iemanjá vivia sozinha no Orum.
Ali ela vivia, ali dormia, ali se alimentava.
Um dia Olodumare decidiu que Iemanjá
precisava ter uma família,
ter com quem comer, conversar, brincar, viver.
Então o estômago de Iemanjá cresceu e cresceu
e dele nasceram todas as estrelas.
Mas as estrelas foram se fixar na distante abóboda celeste.
Iemanjá continuava solitária.
Então de sua barriga crescida nasceram as nuvens.
Mas as nuvens perambulavam pelo céu
até se precipitarem em chuva sobre a terra.
Iemanjá continuava solitária.
De seu estômago nasceram então os orixás,
nasceram Xangô, Oiá, Ogum, Ossaim, Obaluaê e os Ibejis.
Eles fizeram companhia a Iemanjá.
IEMANJÁ É NOMEADA PROTETORA DAS CABEÇAS
Dia houve em que todos os deuses
deveriam atender ao chamado de Olodumare para uma reunião.
Iemanjá estava em casa matando um carneiro,
quando Legba chegou para avisá-la do encontro.
Apressada e com medo de atrasar-se
e sem ter nada para levar de presente a Olodumare,
Iemanjá carregou consigo a cabeça do carneiro
como oferenda para o grande pai.
Ao ver que somente Iemanjá trazia-lhe um presente,
Olodumare declarou:
“Awojó orí dorí re.”
“Cabeça trazes, cabeça serás.”
Desde então Iemanjá é a senhora de todas as cabeças.
IEMANJÁ MOSTRA AOS HOMENS O SEU PODER SOBRE AS ÁGUAS
Em certa ocasião, os homens estavam preparando
grandes festas em homenagem aos orixás.
Por um descuido inexplicável, se esqueceram de Iemanjá,
esqueceram de Maleleo, que ela também se chama assim.
Iemanjá, furiosa, conjurou o mar
e o mar começou a engolir a terra.
Dava medo ver Iemanjá, lívida,
cavalgar a mais alta das ondas
com seu abebé de prata na mão direita
e o ofá da guerreira preso às costas.
Os homens, assustados, não sabiam o que fazer
e imploraram ajuda a Obatalá.
Quando a estrondosa imensidão de Iemanjá
já se precipitava sobre o que restava do mundo,
Obatalá se interpôs, levantou seu opaxorô
e ordenou a Iemanjá que se detivesse.
Obatalá criou os homens e não consentiria na sua destruição.
Por respeito ao Criador, a dona do mar acalmou suas águas
e deu por finda sua colérica revanche.
Já estava satisfeita com o castigo imposto
aos imprudentes mortais.
IEMANJÁ IRRITA-SE COM A SUJEIRA QUE OS HOMENS LANÇAM AO MAR
Logo no princípio do mundo,
Iemanjá já teve motivos para desgostar da humanidade.
Pois desde cedo os homens e as mulheres jogavam no mar
tudo o que a eles não servia.
Os seres humanos sujavam suas águas com lixo,
com tudo o que não mais prestava, velho ou estragado.
Até mesmo cuspiam em Iemanjá,
quando não faziam coisa muito pior.
Iemanjá foi queixar-se a Olodumare.
Assim não dava para continuar;
Iemanjá Sessu vivia suja,
sua casa estava sempre cheia de porcarias.
Olodumare ouviu seus reclamos
e deu-lhe o dom de devolver à praia
tudo o que os humanos jogassem de ruim em suas águas.
Desde então as ondas surgiram no mar.
As ondas trazem para a terra o que não é do mar.
IEMANJÁ AFOGA SEUS AMANTES NO MAR
Iemanjá é dona de rara beleza
e, como tal, mulher caprichosa e de apetites extravagantes.
Certa vez saiu de sua morada nas profundezas do mar
e veio à terra em busca do prazer da carne.
Encontrou um pescador jovem e bonito
e o levou para seu líquido leito de amor.
Seus corpos conheceram todas as delícias do encontro,
mas o pescador era apenas um humano
e morreu afogado nos braços da amante.
Quando amanheceu, Iemanjá devolveu o corpo à praia.
E assim acontece sempre, toda noite,
quando Iemanjá Conlá se encanta com os pescadores
que saem em seus barcos e jangadas para trabalhar.
Ela leva o escolhido para o fundo do mar e se deixa possuir
e depois o traz de novo, sem vida, para a areia.
As noivas e as esposas correm cedo para a praia
esperando pela volta de seus homens que foram para o mar,
implorando a Iemanjá que os deixe voltar vivos.
Elas levam para o mar muitos presentes,
flores, espelhos e perfumes,
para que Iemanjá mande sempre muitos peixes
e deixe viver os pescadores.
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(do encarte do cd: Mar de Sophia. artista: Maria Bethânia. autor dos versos: Paulo César Pinheiro. gravadora: Biscoito Fino.)
IEMANJÁ RAINHA DO MAR
Quanto nome tem a Rainha do Mar?
Quanto nome tem a Rainha do Mar?
Dandalunda, Janaína,
Marabô, Princesa de Aiocá,
Inaê, Sereia, Mucunã,
Maria, Dona Iemanjá.
Onde ela vive?
Onde ela mora?
Nas águas,
Na loca de pedra,
Num palácio encantado,
No fundo do mar.
O que ela gosta?
O que ela adora?
Perfume,
Flor, espelho e pente
Toda sorte de presente
Pra ela se enfeitar.
Como se saúda a Rainha do Mar?
Como se saúda a Rainha do Mar?
Alodê, Odofiaba,
Minha-mãe, Mãe-d’água,
Odoyá!
Qual é seu dia,
Nossa Senhora?
É dia dois de fevereiro
Quando na beira da praia
Eu vou me abençoar.
O que ela canta?
Por que ela chora?
Só canta cantiga bonita
Chora quando fica aflita
Se você chorar.
Quem é que já viu a Rainha do Mar?
Quem é que já viu a Rainha do Mar?
Pescador e marinheiro,
Quem escuta a Sereia cantar.
É com o povo que é praieiro
Que Dona Iemanjá quer se casar.
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(do site: Youtube. áudio extraído do álbum: Mar de Sophia. artista & intérprete: Maria Bethânia. canção: Iemanjá Rainha do Mar. música:Pedro Amorim. versos: Paulo César Pinheiro. gravadora: Biscoito Fino.)
(do encarte do cd: Gal canta Caymmi. artista: Gal Costa. autor dos versos: Dorival Caymmi. gravadora: PolyGram.)
RAINHA DO MAR
Minha sereia, rainha do mar
Minha sereia, rainha do mar
O canto dela faz admirar
O canto dela faz admirar
Minha sereia é moça bonita
Minha sereia é moça bonita
Nas ondas do mar
Aonde ela habita
Nas ondas do mar
Aonde ela habita
Ai, tem dó
De ver o meu penar
Ai, tem dó
De ver o meu penar
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(do site: Youtube. áudio extraído do álbum: Gal canta Caymmi. artista & intérprete: Gal Costa. canção: Rainha do Mar. autor da canção: Dorival Caymmi. gravadora: PolyGram.)
(Antonio Carlos Secchin — poeta, tradutor, crítico literário & membro da Academia Brasileira de Letras — ABL)
tudo é matéria para o poema. tudo interessa & instiga o verso. qualquer assunto. qualquer acontecimento. qualquer pensamento. tudo serve de alimento ao poema. por isso a liberdade total dos versos: o poema não está preso a nada; e não estando preso a nada, pode absolutamente tudo. pois em tudo o poeta enxerga a possibilidade dos versos & o encanto de deus (do sublime, do divino): na moça que passa perante seus olhos, no menino de sunga verde parado em frente à grandeza do mar, na queda de uma folha, no salto de um gato ou na vida pacata & sem grandes arroubos da mulher virgem, que não lhe pertenceu, que não quis entregar-se a você.
ela, a mulher virgem, não foi de ninguém & sabe que não pertence nem a ela mesma, pois a sua vida, como a vida de todos nós, não está propriamente nas suas mãos — não sabemos nunca o que nos guarda o futuro, o que nos aguarda na próxima esquina, não sabemos quando morreremos, não sabemos nada.
a mulher virgem foi criança que não brincou & moça que não namorou. hoje é mulher que não tem desejos. com uma vida pacata & sem grandes arroubos, a mulher virgem será velha sem passado, sua vida é sem histórias para contar — ela só gosta de estar deitada, olhando não sabe pra onde.
a mulher virgem passa horas sem pensar, passa dias sem comer, passa anos sem mexer, no quarto azul que lhe deram. ela nasceu nele, vive nele & nele, talvez, morrerá, se não aparecer aquele que ela sempre esperará sem cansaço, sem tédio, sem prostração, aquele que fará a mulher virgem levantar, andar & pensar (para além do seu quarto azul), aquele que ensinará à mulher virgem o nome de seus pais & das partes do seu corpo, aquele que revelará, a ela, a sua própria vida, o seu próprio mundo.
a mulher virgem espera alguém que talvez não venha mas que ela sabe que existe, porque sabe da própria existência. assim como ela existe, virgem inútil, que nunca fez muito da sua vida, vida sem propósitos & arroubos, por que não existir aquele que a fará levantar & que lhe ensinará? se, no mundo, existe a possibilidade do grande absurdo que é a sua vida, por que não haveria espaço para aquele que ela sempre esperará sem cansaço?
existir, a mulher virgem sabe que ele existe. porém, ela também sabe que não basta existir; ela sabe que, para além da existência de um & de outro, há de haver a grande magia do encontro.
beijo todos!
paulo sabino.
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(do site: Youtube. Paulo Sabino recita “A virgem inútil”, poema de Ismael Nery. Em 26/01/2016.)
(do livro: A poesia é necessária. seleção de poemas: Rubem Braga. autor do poema: Ismael Nery. organização do livro: André Seffrin. editora: Global.)
A VIRGEM INÚTIL
Eu não lhe pertenci porque não quis.
Não fui de ninguém, nem sou minha.
Nasci no dia 9 de julho de 1909
E não sei quando morrerei.
Fui criança que não brincou
E moça que não namorou.
Sou mulher que não tem desejos.
Serei velha sem passado,
Só gosto de estar deitada
Olhando não sei p’ra onde.
Passo horas sem pensar,
Passo dias sem comer,
Passo anos sem mexer
No quarto azul que me deram.
Nasci nele, vivo nele e nele talvez morrerei,
Se não aparecer aquele
Que sempre esperarei sem cansaço,
Que me fará levantar, andar e pensar,
Que me ensinará o nome de meus pais e das partes do meu corpo.
Eu espero alguém que talvez não venha
Mas que sei que existe,
Porque sei que existo.
(O menino de sunga verde parado em frente à grandeza do mar.) ______________________________________________________
há quem tenha conhecido um grande poeta & tenha sofrido uma decepção: por não achar o poeta “poético”, por não achar o poeta inspirador, por não achar o poeta um ser que ilumina. isso, porque, no tempo em que esteve com o poeta, não lhe ouviu uma palavra sobre poesia, mas, unicamente, ao sabor da conversa, comentários sobre sapatos de homem & desastres de automóvel.
“nunca falam os poetas de poesia?”, pergunta quem se decepcionou com o poeta. sim, eles falam de poesia. cada homem tem costume de falar do seu ofício, e o poeta é um homem como os outros. mas acontece que, além de ser um homem como os outros, e sem deixar de sê-lo, o poeta tem isto de grave & especial: ser um homem a quem tudo concerne, ser um homem a quem tudo diz respeito, ser um homem a quem tudo interessa, ser um homem a quem tudo é adequado, e de tudo o poeta tira seu mel & seu fel.
o menino que passa com um barulhento carrinho feito de caixotes, a trazer verduras da feira; os operários da construção, que, depois de almoçar no botequim da esquina com uma cerveja preta, ficam um pouco sentados na calçada, conversando à-toa; e o próprio carrinho feito de caixotes, e a própria garrafa de cerveja preta — tudo é matéria do poeta, tudo é interessante ao poeta, tudo é adequado ao poeta. o peixe não concerne, não diz respeito, ao motorista (a quem dirige um automóvel), nem a mangueira concerne, diz respeito, ao cirurgião (a quem trabalha com cirurgias em hospitais & clínicas). mas, ao poeta, tudo concerne, tudo diz respeito, tudo interessa, tudo se adéqua, e no pedaço de jornal velho que o vento arrasta pelo chão, o poeta se inspira tão bem quanto naquela moça que saiu às compras, na manhã fria do bairro, com calças compridas & um suéter vermelho.
tudo é matéria para o poema. tudo interessa & instiga o verso. qualquer assunto. qualquer acontecimento. qualquer pensamento. tudo serve de alimento ao poema. por isso a liberdade total dos versos: o poema não está preso a nada; e não estando preso a nada, pode absolutamente tudo.
o que pode acontecer é de determinado assunto, ou acontecimento, ou pensamento, ter de esperar muitos anos para entrar em um verso do poeta, como podem entrar de repente. pois em tudo o poeta enxerga a possibilidade dos versos & o encanto de deus (do sublime, do divino): na moça que passa perante seus olhos, no menino de sunga verde parado em frente à grandeza do mar, na queda de uma folha ou no salto de um gato.
quando o poeta fala de sapatos, de trânsito ou de futebol, não está disfarçando: o último jogo do flamengo, a corrida dos ônibus depois do túnel & a cor dos sapatos — tudo se filtra na alma do poeta. tudo.
(tudo é matéria para o poema. tudo interessa & instiga o verso. qualquer assunto. qualquer acontecimento. qualquer pensamento. tudo serve de alimento ao poema. por isso a liberdade total dos versos: o poema não está preso a nada; e não estando preso a nada, pode absolutamente tudo.)
tudo é matéria para o poema: inclusive você, que se decepcionou com o poeta & que ele pode ter incorporado, silenciosamente, no seu mundo. e quando amanhã o poeta escrever “uma tarde castanha”, ele se lembrará de seus cabelos & de sua voz serena.
não desame o poeta por ele não ser poético; isso não é seu ofício, ser “poético” não é a função do poeta: ser “poético”, ser “inspirador”, ser “iluminado”, é a função do poema.
beijo todos!
paulo sabino.
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(do site: Youtube. Paulo Sabino lê a carta-crônica “O mundo especial do poeta”, do cronista & jornalista capixaba Rubem Braga. Em 14/01/2016.)
(do livro: A poesia é necessária. seleção de poemas: Rubem Braga. autor do texto: Rubem Braga. organização do livro: André Seffrin. editora: Global.)
O MUNDO ESPECIAL DO POETA
Carta a uma velha amiga que me disse ter conhecido um grande poeta, que é meu amigo; e ter sofrido uma decepção:
“Querida —
Não achou você poético o poeta; e até se queixa de que, no tempo em que esteve em sua mesa, não lhe ouviu uma palavra sobre poesia, mas, unicamente, ao sabor da conversa, comentários sobre sapatos de homem e desastres de automóvel, quando você gostaria de conversar sobre William Shakespeare.
É, na verdade, um pouco mortificante. Nunca falam os poetas de poesia?, me pergunta você. Bem, eles falam. Cada homem tem costume de falar de seu ofício, e o poeta é um homem como os outros. Mas acontece que, além de ser um homem como os outros, e sem deixar de sê-lo, ele tem isso de grave e especial que é ser um homem a quem tudo concerne e de tudo tira seu mel e seu fel. Esse menino que passa com um barulhento carrinho feito de caixotes, a trazer verduras da feira; aqueles operários da construção, que, depois de almoçar no botequim da esquina com uma cerveja preta, ficam um pouco sentados na calçada, conversando à-toa, à espera do sinal para o trabalho; e o próprio carrinho de tábuas de caixote, e a própria garrafa de cerveja preta — tudo é matéria do poeta. Não concerne o peixe ao motorista nem a mangueira ao cirurgião; mas ao poeta tudo concerne, e nesse pedaço de jornal velho que o vento arrasta pelo chão ele se inspira tão bem quanto naquela moça que saiu às compras, na manhã fria do bairro, com calças compridas e um suéter vermelho. Apenas há isto: que a esse farrapo de jornal ou aos olhos verdes dessa moça, pode acontecer que tenham de esperar muitos anos para entrar em um verso do poeta, como podem entrar de repente, atravessando um braço de mar de 1938 ou a tarde de um agosto antigo. A moça tão linda julga ir onde quer, ao sabor de sua fantasia; na verdade ela é guiada por um controle remoto que a faz passar perante o poeta. Este pelo menos assim o crê: vê gestos de Deus na queda de uma folha ou no salto de um gato.
Quando o poeta fala de sapatos, de trânsito ou futebol, não está disfarçando: o último jogo do Flamengo, a corrida dos ônibus depois do túnel e a cor dos sapatos, tudo se filtra na alma do poeta. Tudo; e com certeza também você, que ele pode ter incorporado silenciosamente no seu mundo. E quando amanhã escrever “uma tarde castanha”, se lembrará de seus cabelos e de sua voz serena.
Não o desame pois, por não ser poético; isso não é seu ofício: ele é poeta. Adeus.”
ventos líricos me sopraram a existência do menino poeta.
o menino poeta — dizem os ventos — habita as palavras que compõem os versos, é o responsável pelos jogos semânticos & pelas brincadeiras & peripécias estilísticas entre signos.
ventos líricos me sopraram que o menino poeta percorre os quatro cantos do mundo, peralta, irrequieto, traquinas.
o menino poeta — não sei onde está.
procuro dali, procuro de lá. tem olhos azuis ou tem olhos negros? parece jesus ou índio guerreiro?
mas onde andará o menino poeta, que ainda não o vi? nas águas de lambari, em minas gerais? nos reinos do canadá, lá em cima, no norte das américas?
onde andará o menino poeta, que ainda não o vi? estará no berço, brincando com os anjos? estará na escola, travesso, rabiscando bancos?
o vizinho, ali, disse que, acolá, existe um menino com dó dos peixinhos. um dia, o menino pescou — pescou por pescar, não pretendia — um peixinho de âmbar, coberto de sal (âmbar: resina fóssil, de cor entre o acastanhado & o amarelado, utilizada na fabricação de objetos ornamentais). depois, o menino soltou o peixinho de âmbar outra vez nas ondas.
ai, que curiosidade! será esse o menino poeta? será que não? que será esse menino? que não será?…
certo peregrino — passou por aqui — conta que um menino, das bandas de lá, furtou uma estrela. a estrela, por causa do furto, caiu no choro; o menino, por tê-la furtado, ria. porém, de repente, o menino, tão lindo!, vendo o choro da estrela, subiu pelo morro & tornou a pregá-la, com três pregos de ouro, nas saias da lua.
ai, que curiosidade! será esse o menino poeta? será que não? que será esse menino? que não será?…
procuro daqui, procuro de lá. o menino poeta, habitante das palavras que compõem os versos, responsável pelos jogos semânticos & pelas brincadeiras & peripécias estilísticas entre signos, quero ver de perto.
quero ver de perto — o menino poeta — para me ensinar as bonitas coisas do céu & do mar. quero ver de perto — o menino poeta — para me ensinar a voar, cada vez mais alto, e a mergulhar, cada vez mais fundo, nos braços do meu bem maior: a poesia.
beijo todos!
paulo sabino.
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O menino poeta
não sei onde está.
Procuro daqui
procuro de lá.
Tem olhos azuis
ou tem olhos negros?
Parece Jesus
ou índio guerreiro?
Tra-la-la-la-li
tra-la-la-la-lá
Mas onde andará
que ainda não o vi?
Nas águas de Lambari,
nos reinos do Canadá?
Estará no berço
brincando com os anjos,
na escola travesso
rabiscando bancos?
O vizinho ali
disse que acolá
existe um menino
com dó dos peixinhos.
Um dia pescou
— pescou por pescar —
um peixinho de âmbar
coberto de sal.
Depois o soltou
outra vez nas ondas.
Ai! que esse menino
será, não será?…
Certo peregrino
— passou por aqui —
conta que um menino
das bandas de lá
furtou uma estrela.
Tra-la-li-la-lá.
A estrela num choro
o menino rindo.
Porém de repente
— menino tão lindo! —
subiu pelo morro
tornou a pregá-la
com três pregos de ouro
nas saias da lua.
Ai! que esse menino
será, não será?
Procuro daqui
procuro de lá.
O menino poeta
quero ver de perto
quero ver de perto
para me ensinar
as bonitas cousas
do céu e do mar.
Meu pai são João Batista é Xangô É o dono do meu destino até o fim Se um dia me faltar a fé em meu senhor Derrube essa pedreira sobre mim Meu pai são João Batista é Xangô
(Ponto de macumba, recolhido e adaptado por Eli Camargo)
dia 24 de junho: dia de santo festeiro, dia de festa junina, dia de são joão.
no sincretismo brasileiro, são joão, que é um santo católico, correlaciona-se a xangô, orixá das religiões afro-brasileiras.
por aniversariar justamente no dia 24 de junho, sempre mantive uma atenção especial ao santo & ao orixá homenageados no dia do meu nascimento.
portanto, abaixo, uma compilação de textos mais um poema-canção (com direito ao áudio da canção) que traçam o perfil & contam um pouco dos mitos que envolvem o orixá símbolo do fogo & da justiça.
nascido no dia 24 de junho, considero-me sob a proteção do santo do dia, considero-me sob a proteção do orixá do dia, sob a proteção de são joão xangô menino.
(ah, xangô, xangô menino, da fogueira de são joão: quero ser sempre o menino, xangô, da fogueira de são joão.)
viva são joão!
salve xangô, meu rei senhor!
salve meu orixá!
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Orixás, deuses iorubás na África e no Novo Mundo. autor: Pierre Fatumbi Verger. editora: Corrupio.)
Xangô traduz-se em um arquétipo de pessoas voluntariosas e enérgicas, altivas e conscientes de sua importância real ou suposta. Daquelas que podem ser grandes senhores, corteses, mas que não toleram a menor contradição, e, nesses casos, deixam-se possuir por crises de cólera, violentas e incontroláveis. Das pessoas sensíveis ao charme do sexo oposto e que se conduzem com tato e encanto no decurso das reuniões sociais, mas que podem perder o controle e ultrapassar os limites da decência. Enfim, o arquétipo de Xangô é aquele das pessoas que possuem um elevado sentido da sua própria dignidade e das suas obrigações, o que as leva a se comportar com um misto de severidade e benevolência, segundo o humor do momento, mas sabendo guardar, geralmente, um profundo e constante sentimento de justiça.
(do: Dicionário do folclore brasileiro. autor: Luís da Câmara Cascudo. editora: Global.)
Rei nagô, fundador mítico da cidade de Oyô, Xangô é divindade das tempestades, raios, trovoadas, descargas da eletricidade atmosférica. O fetiche é, logicamente, um meteorito, e a insígnia, a lança e a machadinha de pedra, dupla, a bipene, objeto de culto dos povos do Mediterrâneo desde a Idade dos Metais. Apresenta-se como um homem jovem e forte, ágil, sensual, de caráter dominador e orgulhoso, viril, atrevido, violento mas justiceiro, arrebatando na dança suas devotas atuadas. Suas principais esposas, as mais conhecidas, são: Iansã, Oxum e Obá. Usa contas vermelhas e brancas, pulseira de latão e come galo, bode, caruru e cágado.
(do livro: Mitologia dos orixás. autor: Reginaldo Prandi. editora: Companhia das Letras.)
XANGÔ DÁ A OBALUAÊ OS CÃES DE OGUM
Xangô era um homem muito popular.
Um dia, na praça, um leproso de nome Obaluaê o procurou.
“Por que não falas comigo?”, perguntou o pestilento.
Xangô respondeu-lhe que seu pai Obatalá
lhe havia dito que naquela terra
ele tinha um irmão de sangue e um irmão adotivo.
E era só com eles que ele queria conversar.
Disse-lhe Obaluaê ser ele o seu irmão por adoção
e que o outro homem ali presente era seu irmão inteiro.
Esse outro era Ogum, que andava sempre acompanhado
de muitos cães.
Xangô disse a Obaluaê que aquela terra não lhe pertencia,
que seguisse para terras distantes, onde encontraria melhor sorte.
Obaluaê retrucou da dificuldade em seguir caminho
naquelas condições de doença em que se encontrava.
Xangô tomou então dois cães de Ogum e os deu a Obaluaê,
para que lhe servissem de guias e guardiões.
Mas Ogum não gostou de perder os cães e atacou Xangô.
Iniciou-se um conflito de grandes proporções entre os dois.
Desde então, Xangô e Ogum, apesar de irmãos,
tornaram-se eternos e irreconciliáveis antagonistas.
Desde então chamam Ogum de Ogunjá,
que na língua da terra quer dizer Ogum dos Cães.
XANGÔ INCENDEIA SUA CIDADE ACIDENTALMENTE
Xangô governava com rigor a cidade de Oió e redondezas.
Era chamado de Jacutá, o Atirador de Pedra.
Xangô era muito prestigiado em seu reino e em reinos vizinhos,
mas desejava algo mais para instilar medo nos corações dos homens.
Para isso convocou os maiores feiticeiros de Oió
e lhes pediu que inventassem novas fórmulas
para aumentar seu poder.
Xangô não ficou satisfeito com o trabalho dos feiticeiros
e pediu ajuda a Exu.
Exu aceitou a tarefa, pediu uma cabra como sacrifício
e ordenou que dentro de sete dias Oiá fosse buscar o preparado.
Quando chegou o dia combinado, lá foi Oiá à casa de Exu.
Lá chegando, ela saudou Exu
e disse que o sacrifício estava a caminho.
O preparado estava embrulhado numa folha.
Oiá pegou o pacote e partiu.
No caminho, Oiá parou para descansar.
Não contendo a crescente curiosidade,
desembrulhou o pacote para ver o que tinha dentro.
Não havia nada além de um pó vermelho
e ela pôs um pouquinho na boca para experimentar.
Não era bom nem ruim; tinha um gosto diferente.
Oiá fechou novamente o pacote e prosseguiu.
Chegou a Oió e deu o remédio a Xangô, que perguntou:
“Que instruções Exu te deu? Como o remédio deve ser usado?”.
Quando ela começou a falar, saiu fogo de sua boca.
Xangô entendeu que Oiá tinha provado o remédio.
Ficou irado e tentou bater em Oiá,
mas ela fugiu de casa, com Xangô a persegui-la.
Oiá foi para um lugar onde carneiros pastavam.
Escondeu-se entre os carneiros,
pensando que Xangô não a encontraria.
Mas a ira de Xangô era grande.
Ele arremessava suas pedras de raio em todas as direções.
Arremessou-as entre os carneiros, matando-os.
Oiá ficou escondida embaixo dos corpos dos carneiros mortos
e assim Xangô não pôde encontrá-la.
Xangô voltou para casa.
Muitas pessoas de Oió estavam reunidas lá
e clamavam pedindo que Xangô perdoasse Oiá.
A raiva dele abrandou-se.
Mandou seus empregados procurar Oiá e trazê-la para casa.
Mas ele ainda não sabia como usar o preparado.
Quando anoiteceu, ele pegou o pacote de Exu
e foi a um lugar bem alto, de onde podia ver toda a cidade.
Colocou um pouco do pó vermelho na língua
e, quando expirou o ar dos pulmões,
uma enorme labareda jorrou de sua boca,
depois outra e mais outra, sem parar.
As chamas se estenderam por sobre toda a cidade,
lambendo os telhados de palha das casas de seus súditos
e também as dependências do palácio real.
Um grande incêndio tomou conta de Oió.
Tudo foi consumido pelo fogo até as cinzas.
Oió foi destruída e teve que ser reconstruída.
Depois que a cidade ressurgiu de suas cinzas,
Xangô continuou a governá-la.
Em tempos de guerra,
ou quando as coisas o desagradam,
Xangô arremessa as pedras de raio.
E o fogo da boca de Xangô queima seus desafetos.
Os carneiros que morreram protegendo Oiá
das pedras de raio de Xangô não foram esquecidos.
Os devotos de Oiá não comem mais carne de carneiro.
XANGÔ VENCE OGUM NA PEDREIRA
Xangô e Ogum sempre lutaram entre si,
ora disputando o amor da mãe, Iemanjá,
ora disputando o amor da amada, Oxum,
ora disputando o amor da companheira, Iansã.
Lutaram no começo do mundo e ainda lutam agora.
Ogum usa da sua força física e das armas que fabrica,
Xangô usa da estratégia e da magia.
Ambos são fortes e valentes,
ambos são guerreiros temidos.
Mas só uma vez Xangô venceu Ogum na luta.
Numa disputa que travaram por Iansã,
ora a batalha pendia para um lado,
ora pendia para o outro.
Ninguém conseguia prever o final,
ninguém podia apostar quem seria o vencedor.
Foi então que Xangô apelou para a astúcia,
como é de seu feitio numa hora dessa.
Conduziu a batalha como quem se retirava
e, sem que Ogum percebesse, Xangô o atraiu para a pedreira.
Foi então que Xangô apelou para a magia,
como é de seu feitio numa hora dessa.
Quando Ogum estava bem no pé da montanha de pedra,
Xangô lançou seu machado oxé de fazer raio
e um grande estrondo se ouviu.
Com o trovão veio abaixo uma avalanche de pedras
e as pedras soterraram o desprevenido Ogum.
Xangô vencera Ogum naquele dia,
única vez que alguém venceu Ogum.
Mas esses dois filhos de Iemanjá seguem lutando ainda,
ora disputando o amor da mãe, Iemanjá,
ora disputando o amor da amada, Oxum,
ora disputando o amor da companheira, Iansã.
XANGÔ CONQUISTA IANSÃ NA GUERRA CONTRA OGUM
Um dia Xangô e Ogum se colocaram frente a frente,
no campo de batalha:
lutavam pela conquista de Iansã.
Ogum veio furioso, vestido em sua armadura metálica
com todo tipo de proteção.
Ele trazia muitas armas, vinha carregado de ferro
e era impossível vencê-lo numa luta corpo a corpo.
Ele era todo armadura.
Xangô veio sem nada,
porque sempre fez tudo por impulso
e nunca soube como se organizar corretamente.
Sua única arma era uma pedra que carregava na mão.
Então Xangô jogou a pedra em Ogum e ele pegou fogo.
A pedra de Xangô era o corisco, um meteorito que solta chamas,
era a pedra de raio, edum ará.
Com sua magia Xangô derrotou Ogum e ganhou Iansã.
Ogum foi um orixá guerreiro, feroz,
sempre caçando nas florestas, lutando para sobreviver.
Xangô foi um orixá briguento
e soube brigar tanto como Ogum.
Mas Xangô, ao contrário de Ogum, soube desfrutar da boa vida.
Iansã, cadê Ogum?
Foi pro mar
Mas, Iansã, cadê Ogum?
Foi pro mar
Iansã penteia os seus cabelos macios
Quando a luz da lua cheia clareia as águas do rio
Ogum sonhava com a filha de Nanã
E pensava que as estrelas eram os olhos de Iansã
Mas, Iansã, cadê Ogum?
Foi pro mar
Mas, Iansã, cadê Ogum?
Foi pro mar
Na terra dos orixás o amor se dividia
Entre um deus que era de paz e outro deus que combatia
Como a luta só termina quando existe um vencedor
Iansã virou rainha da coroa de Xangô
Mas, Iansã, cadê Ogum?
Foi pro mar
Iansã, cadê Ogum?
Foi pro mar
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(do site: Youtube. áudio extraído do álbum: Claridade. artista & intérprete: Clara Nunes. canção: A deusa dos orixás. autor dos versos: Toninho Nascimento. autor da música: Romildo S. Bastos. gravadora: EMI.)
mel silvestre tirei das plantas, sal tirei das águas, luz tirei do céu.
escutai, meus irmãos: poesia tirei de tudo para oferecer à vida, para oferecer à força criadora que move este mundo.
não tirei ouro da terra nem sangue de meus irmãos.
estalajadeiros, que são os donos de estalagem, não me incomodeis.
bufarinheiros, que são vendedores ambulantes de bufarinhas (coisas bobas, insignificantes), e banqueiros, sei fabricar distâncias para vos recuar.
a vida está malograda, está fracassada, está malsucedida, e eu creio nas mágicas da força criadora do universo.
os galos não cantam, a manhã não raiou: a vida está malograda, está fracassada, está malsucedida.
vi navios irem & voltarem (não completando a sua viagem), vi infelizes irem & voltarem (não completando a sua viagem), vi ziguezagues na escuridão: a vida está malograda, está fracassada, está malsucedida.
capitão-mor, governador de capitania hereditária, homem de conhecimentos, onde é o congo? me diz, capitão-mor, governador de capitania hereditária, homem de conhecimentos, onde é a ilha de são brandão?
capitão-mor, governador de capitania hereditária, que noite escura!
(os galos não cantam, a manhã não raiou: a vida está malograda, está fracassada, está malsucedida.)
uivam molossos, uivam cães de aspecto robusto & ameaçador, na escuridão.
ó indesejáveis, ó indivíduos cuja presença não é desejável por mostrarem-se perniciosos aos interesses dos demais irmãos de terra, qual o país, qual o país que desejais?…
(os indesejáveis só sabem denegrir a vida, os indesejáveis só sabem obscurecer os caminhos dos demais irmãos de terra.)
mel silvestre tirei das plantas, sal tirei das águas, luz tirei do céu: só tenho poesia para vos dar.
abancai-vos, meus irmãos!
para vos dar, só tenho: poesia: e um convite para a ilha:
não digo em que signo se encontra esta ilha, não falo sob que forma avista-se a ilha, mas ilha mais bela não há no alto-mar.
o peixe cantor existe por lá.
ao norte dá tudo: baleias azuis, o ouriço vermelho, o boto voador.
a leste da ilha há o gêiser gigante (gêiser: fonte termal que lança no ar jatos de água ou vapor em intervalos regulares), deitando água morna. quem quer se banhar?
há plantas carnívoras sem gula, que amam & não devoram.
ao sul o que há? há rios de leite, há terras bulindo, mulheres nascendo, raízes subindo, lagunas tremendo, coqueiros gemendo, areias se entreabrindo.
a oeste o que há? não há o ocidente nem coisa de lá: a terra está nova: devemos olhar o sol se elevar.
convido os rapazes & as raparigas para ver esta ilha, correr nos seus bosques, nos vales em flor, nadar nas lagunas, brincar de esconder, dormir no areal, caçar os amores que existem por lá.
o sol da meia-noite, a aurora boreal, o cometa de halley, as moças & moços nativos, podeis desfrutar.
partamos todos, enquanto esta ilha não vai afundar, enquanto não chegam guerreiros das terras, enquanto não chegam piratas do mar.
(os indesejáveis só sabem denegrir a vida, os indesejáveis só sabem obscurecer os caminhos dos demais irmãos de terra.)
as noites! que noites de imenso luar! podeis, todos vós, no céu da ilha, contemplar constelações: a ursa maior, a lira, a órion, a luz de altair, estrelas cadentes correndo no espaço, a estrela dos magos — a tão célebre estrela de belém, que guiou os três reis magos do ocidente até o recanto onde nascera o redentor — parada no ar.
que noites de imenso luar!
e as sestas? e as horas de descanso após o almoço? que sestas! a brisa é tão mansa! há redes debaixo dos coqueirais, sanfonas tocando, o sol se encobrindo, as aves cantando canções de ninar.
partamos todos, que as noites de escuro não tardam, não demoram, a chegar na ilha.
(partamos todos, enquanto não chegam guerreiros das terras, enquanto não chegam piratas do mar.)
partamos todos! mas onde fica a ilha? em que parte exatamente do oceano? então que é da ilha, da ilha mais bela que há pelo mar & onde se pode sonhar com os amores que nunca na vida nos hão de chegar?
o jeito é partir em busca desta ilha, o jeito é partir em busca do meu paraíso aqui na terra, o jeito é partir em busca do recanto que desejo a mim, que desejo ao meu bem-estar, sem mapa ou bússola para orientar. simplesmente partir, singrando os mares da vida.
eu, o antinavegador de moçambiques, goas, calecutes.
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Melhores poemas. seleção: Gilberto Mendonça Telles. autor: Jorge de Lima. editora: Global.)
DISTRIBUIÇÃO DA POESIA
Mel silvestre tirei das plantas,
sal tirei das águas, luz tirei do céu.
Escutai meus irmãos: poesia tirei de tudo
para oferecer ao Senhor.
Não tirei ouro da terra
nem sangue de meus irmãos.
Estalajadeiros não me incomodeis.
Bufarinheiros e banqueiros
sei fabricar distâncias
para vos recuar.
A vida está malograda,
creio nas mágicas de Deus.
Os galos não cantam,
a manhã não raiou.
Vi os navios irem e voltarem.
Vi os infelizes irem e voltarem.
Vi homens obesos dentro do fogo.
Vi ziguezagues na escuridão.
Capitão-mor, onde é o Congo?
Onde é a ilha de São Brandão?
Capitão-mor que noite escura!
Uivam molossos na escuridão.
Ó indesejáveis, qual o país,
qual o país que desejais?
Mel silvestre tirei das plantas,
sal tirei das águas, luz tirei do céu.
Só tenho poesia para vos dar.
Abancai-vos meus irmãos.
CONVITE PARA A ILHA
Não digo em que signo se encontra esta ilha
mas ilha mais bela não há no alto-mar.
O peixe cantor existe por lá.
Ao norte dá tudo: baleias azuis,
o ouriço vermelho, o boto voador.
A leste da ilha há o Gêiser gigante
deitando água morna. Quem quer se banhar?
Há plantas carnívoras sem gula que amam.
Ao sul o que há? — há rios de leite,
há terras bulindo, mulheres nascendo,
raízes subindo, lagunas tremendo,
coqueiros gemendo, areias se entreabrindo.
A oeste o que há? — não há o ocidente nem coisa de lá:
a terra está nova: devemos olhar o sol se elevar.
Convido os rapazes e as raparigas
pra ver esta ilha, correr nos seus bosques,
nos vales em flor, nadar nas lagunas,
brincar de esconder, dormir no areial,
caçar os amores que existem por lá.
O sol da meia-noite, a aurora boreal,
o cometa de Halley, as moças nativas,
podeis desfrutar. Meninas partamos
enquanto esta ilha não vai afundar,
enquanto não chegam guerreiros das terras,
enquanto não chegam piratas do mar.
As noites! Que noites de imenso luar!
Podeis contemplar a Ursa maior,
A Lira, a Órion, a Luz de Altair,
estrelas cadentes correndo no espaço,
a estrela dos magos parada no ar.
Que noites, meninas, de imenso luar!
E as sestas? Que sestas! A brisa é tão mansa!
Há redes debaixo dos coqueirais,
sanfonas tocando, o sol se encobrindo,
as aves cantando canções de ninar.
Meninas partamos que as noites de escuro
não tardam a chegar. Então que é da ilha,
da ilha mais bela que há pelo mar
e onde se pode sonhar com os amores
que nunca na vida nos hão de chegar?