REGRA
16 de março de 2010

ela me chegou através de um cunhado seu que já foi um cunhado meu (no meu coração, meu eterno cunhadinho – rs). ela é poeta. ela mora em paris. leciona & pesquisa, estuda, literatura em língua portuguesa. ela possui dois livros publicados.
 
via e-mail, recebi esta bonita, singela e sábia “regra” poética, que me levou a pensar numa questão relacionada a escolhas.
 
na vida, para quaisquer tipos de coisas, vejo pessoas fazendo das suas preferências um grande “ranque”, um tipo de “pódio de chegada”. pessoas que precisam afirmá-las — nos termos do “pódio de chegada”, vale o esclarecimento — para mostrarem, aos outros e a si, que têm muita personalidade (rs). se dependerem de mim, imaginarão sempre que sou um “sem personalidade” (rs).
 
eu, sinceramente, parei com esse jogo.
 
“quem é a maior cantora do brasil, gal costa ou maria bethânia?” “qual é a maior banda de todos os tempos, beatles ou rolling stones?” “quem é o mais foda, chico ou caetano?” “você gosta mais de doce ou de salgado?” “prefere o frio ou o calor?” “é mais rueiro ou mais caseiro?” “quem é o maior poeta brasileiro na sua (personalíssima, evidentemente – rs) opinião, drummond ou joão cabral?” “e o maior escritor, machado de assis ou graciliano ramos?”
 
chega!, cansei (rs). não quero ter que preferir entre uma e outra coisa, não quero ter que escolher o primeiro, o segundo e o terceiro lugares. lugares do quê?, da onde?, do sentimento?, do meu sentimento? mas para o meu sentimento não é preciso esse tipo de “escala dos mais-mais”. não! no meu sentimento todos têm espaço, todos têm as suas grandes importância & contribuição.
 
esse tipo de olhar, o que abriga todos, é claro, não nasceu comigo. somos criados num mundo de muitas competições. as pessoas, muitas vezes, perdem o prumo e passam a competir por quaisquer razões. não considero saudável essa postura.
 
observando o entorno, percebi que as belezas são tamanhas e tantas, que se tornam ainda mais belas porque convivem, coabitam, porque: complementares.
 
belezas não nasceram para exclusão, para catalogação de importâncias, ao contrário: belezas: sempre sempre sempre complementares, e complementares porque singulares, únicas, ímpares.
 
(e viva a diversidade!)
 
seguindo esse viés, tenho, por regra, assim como a autora dos versos a seguir, abarcar o todo-encanto, abarcar tudo que comove como: preferências, nada de fora:
 
de dia, sorver a sua transparência, sequioso.
 
de noite, ab-sorver o impenetrável da noite, esta formosura, escura.
 
isto é: (ir) a tudo!
 
inês cavalcanti, muitíssimo obrigado pelo poemeto. agora aguardo o seu livro.
 
(pensem a respeito das suas escolhas.)
 
beijo em você, poeta.
um outro nos senhores.
o preto,
paulo sabino / paulinho.
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REGRA (autora: Inês Cavalcanti.)
 
De noite absorver a pura
formosura impenetrável
da noite escura.
 
De dia sorver sequiosa
a transparência formosa
do meio-dia.

O GUARDADOR DE ÁGUAS
3 de dezembro de 2009

moços e moças,
 
o guardador de águas oblíquas, de vozes ocultas, ensinador das linguagens das coisas, diz que o sentido normal das palavras não faz bem ao poema. pois que a poesia se dá, segundo bem escreveu o poeta eucanaã ferraz, através do deslocamento da linguagem. a linguagem em diferente estado, que não comunica exatamente uma coisa, alguma coisa, qualquer coisa.
 
poesia comunica coisas nenhumas a fim de dizer todas.
 
há que se dar um gosto incasto aos termos. pois que poesia brinca com os vareios, com as variedades, do dizer. a língua do poema deflora significâncias nas pedras-palavras. há um inauguramento de falas. 
 
poesia é casada com as imagens formadas pelas palavras. porém, as imagens são, no fundo, palavras que nos faltaram. poesia: o vão que ocupa: poesia: ocupação da palavra pela imagem: ocupação da imagem pelo ser. no fundo, é a nós, leitores-seres, que alguma coisa é dita, retida, é guardada, calada. 
 
este veio poético instala em suas águas-obra uma agramaticalidade (quase) insana, pois com a linguagem poética o que importa é a reinvenção, e, com esta, o escurecimento das relações entre os termos, entre as palavras — ao invés do clareamento. assim como quando anoitece para que se acendam os vagalumes. poesia: escurecer, tornar turvo, para alumiar, para resplandecer, para acender as palavras, os termos, através das reinvenções com a linguagem.
 
à poesia cabe: portas abertas, veios, ventos, vãos. à poesia cabe: parede. não a que oprime, a que proíbe, mas a parede de tijolo, a parede que abriga, que acolhe, que aconchega. nesta parede, ao poeta cabe a lascívia da hera, que se funde à amurada sempre que a roça & penetra & finca & firma. 
 
ao poeta faz bem desexplicar.
 
(poetas e tontos se compõem com palavras.)
 
manoel de barros, poeta das imagens mirabolantes, das imagens com o pé na cabeça, o rei dos neologismos, para mim, é uma espécie de mistura — única, diferenciada — de graciliano ramos com joão cabral de melo neto. isto é: uma riqueza do brasil.
 
tonteiem-se um tanto no tonteio da poesia!
 
beijo em vocês.
o preto.
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(do livro: O guardador de águas. autor: Manoel de Barros. editora: Record.) 
 
I
 
Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
— Imagens são palavras que nos faltaram.
— Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
— Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo).
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos,
retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.
 
 
II
 
Todos os caminhos — nenhum caminho
Muitos caminhos — nenhum caminho
Nenhum caminho — a maldição dos poetas.
 
 
V
 
Escrever nem uma coisa
Nem outra —
A fim de dizer todas —
Ou, pelo menos, nenhumas.
 
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar —
Tanto quanto escurecer acende os vagalumes.
 
 
VII
 
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa liberdade com a luxúria convém.
 
 
VI
 
No que o homem se torne coisal — corrompem-se nele
      os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana, que
      empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um
      inauguramento de falas.
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.
 
 
VIII
 
Nas Metamorfoses, em duzentas e quarenta fábulas,
        Ovídio mostra seres humanos transformados em
        pedras, vegetais, bichos, coisas.
Um novo estágio seria que os entes já transformados
        falassem um dialeto coisal, larval, pedral etc.
        Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica,
        edênica, inaugural —
Que os poetas aprenderiam — desde que voltassem às
        crianças que foram
Às rãs que foram
Às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de
        reaprender a errar a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma
        nos mosquitos?
Seria uma demência peregrina.
 
 
12.
 
Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância
etc. (essas coisas que acham os
reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdômen de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas — com lascívia de hera.
Sobre o tijolo ser um lábio cego.
Tal um verme que iluminasse.