(Na foto, o prédio do Museu Nacional de Belas Artes, localizado no Centro da cidade do Rio de Janeiro.)
(Adentrando o salão nobre do Museu Nacional de Belas Artes — MNBA — para a cerimônia de 80 anos da instituição.)
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“Querido Paulo Sabino,
Belo Poeta , além de porte elegante,
Meus parabéns pela honra que lhe foi merecidamente conferida.
Teria desejado estar presente para aplaudir a ilustre instituição brasileira e o seu orador oficial.
E sua mãezinha, como está ? Minhas homenagens a ela.
O abraço carinhoso da
Nélida Piñon.”
(Nélida Piñon — escritora integrante da Academia Brasileira de Letras — ABL)
A cerimônia pelos 80 anos do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) foi ótima, tudo correu super bem!
Trabalho bem executado, todos felizes: eu, com o que pude fazer, e os amigos & administradores do museu, pelo resultado da cerimônia. Já fui convidado, inclusive, para outros eventos da instituição (e para evento de uma instituição afim ao museu). Adorei. Às ordens para quando precisar.
Aos interessados, deixo um trechinho do recital de violino & piano, que integrou a cerimônia de comemoração dos 80 anos do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), na sexta-feira (13/01), da qual tive o imenso prazer de participar como o mestre de cerimônia de todo o evento (este videozinho foi feito por mim).
No vídeo, as musicistas Priscila Ratto (violino) & Katia Ballousier (piano) apresentam uma peça do compositor austro-húngaro Fritz Kreisler, Prelúdio & Allegro. Lindo & emocionante!
E, homenageando a instituição, dois poemas extraídos — não coincidentemente — do livro “Museu de tudo”, do mestre maior João Cabral de Melo Neto.
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segundo o dicionário houaiss, museu é a “instituição dedicada a buscar, conservar, estudar e expor objetos de interesse duradouro ou de valor artístico, histórico etc.”
penso eu que se o museu é uma instituição com tais atribuições, o museu deve suscitar reflexões sobre as sociedades que fundamos & sobre o próprio ato criativo, discutindo, o tempo inteiro, a arte, o seu valor & o ato criativo do que chamamos arte.
paul valéry, poeta, escritor & filósofo francês, no seu romance “monsieur teste”, aborda o “processo de criação artística” & coloca a reflexão sobre o “processo criador” como uma condição intransferível & essencial à própria criação. “monsieur teste” é a personalização do ideal do rigor reflexivo. paul valéry tornou-se, por isso, um símbolo do culto permanente à lucidez.
o museu como “monsieur teste”, permanentemente acordado, aceso, em vigília, insone: uma lucidez que tudo via, como se estivesse exposta à luz qualquer ou como se a lucidez estivesse exposta ao dia claro.
lucidez que, quando de noite, na escuridão, acende detrás das pálpebras o dente — que mastiga & auxilia na articulação dos sons & das palavras — de uma luz ardida, uma luz que queima, que machuca de tão intensa, uma luz nua, sem pele, extrema, pura, e que de nada serve: de nada serve porque a lucidez só serve a quem a tem; é um bem intransferível & irrevogável: porém, luz de uma tal lucidez — luz que queima, que machuca de tão intensa, uma luz nua, sem pele, extrema, pura — que mente que tudo podeis.
e nada pode tal luz lúcida: a lucidez de nada serve porque a lucidez só serve a quem a tem; é um bem intransferível & irrevogável.
assim como de nada serve fazer o que seja.
fazer o que seja, qualquer “objeto artístico” (um quadro, uma foto, um poema), é inútil. não fazer nada é inútil também. mas entre fazer & não fazer, mais vale o inútil do fazer. mas fazer para esquecer que é inútil — não, nunca: nunca o esquecer, nunca esquecer que fazer o que seja, qualquer “objeto artístico” (um quadro, uma foto, um poema), é inútil. fazer o inútil sabendo que ele é inútil fazer, sabendo que ele é realização inútil, e bem sabendo que seu sentido será sequer pressentido (o sentido da realização cabe a quem realiza, apenas ao criador — é um bem intransferível & irrevogável): ele — o fazer inútil — é mais difícil do que não fazer, mas dificilmente se poderá dizer, se poderá falar, se poderá declarar, com mais desdém, mais desprezo, mais arrogância, ou então dizer mais direto ao leitor “ninguém” — afinal, nunca se sabe quem, que leitor, as palavras alcançarão — que o feito, que o realizado inutilmente, o foi para ninguém.
o objeto artístico é confeccionado para ninguém: o artista, quando cria, pensa apenas na sua criação artística, no seu desejo de realização artística, nunca numa função para a sua criação ou para quem tal criação servirá. por isso, na arte não há o sentido utilitário, não há o sentido de utilidade, não há o sentido de útil. na acepção literal, a arte é, portanto, algo inútil, feita por alguém para nada nem ninguém.
ainda assim, uma vez confeccionado o objeto artístico (um quadro, uma foto, um poema), beber da sua fonte inesgotável de intenções desobrigadas.
arte: o mais nutritivo & saboroso alimento anímico.
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: A educação pela pedra e depois. autor: João Cabral de Melo Neto. editora: Nova Fronteira.)
A INSÔNIA DE MONSIEUR TESTE
Uma lucidez que tudo via,
como se à luz ou se de dia;
e que, quando de noite, acende
detrás das pálpebras o dente
de uma luz ardida, sem pele,
extrema, e que de nada serve:
porém luz de uma tal lucidez
que mente que tudo podeis.
O ARTISTA INCONFESSÁVEL
Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.
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(do site: Youtube. evento: 80 anos do Museu Nacional de Belas Artes. peça: Prelúdio e Allegro. autor: Fritz Kreisler. piano: Katia Ballousier. violino: Priscila Ratto. local: Rio de Janeiro. data: 13/01/2017.)
(Os participantes desta 3ª edição do projeto: Vitor Thiré, Luiza Maldonado, Danilo Caymmi, Paulo Sabino, Geraldo Carneiro, Camilla Amado, Maria Padilha, Alice Caymmi, Luana Vieira, Bruce Gomlevsky & Tonico Pereira)
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A quem possa interessar, os 5 últimos vídeos da 3ª edição do projeto “Ocupação Poética”, ocorrido no dia 24 de fevereiro (quarta-feira), no teatro Cândido Mendes (Ipanema – RJ), com a participação de um elenco estelar: Geraldo Carneiro, Bruce Gomlevsky, Tonico Pereira, Vitor Thiré, Maria Padilha, Camilla Amado, Luiza Maldonado, Luana Vieira, Danilo Caymmi & Alice Caymmi.
Nos vídeos desta publicação, poemas & traduções do grande homenageado da noite, o sofisticado poeta & dramaturgo, além de querido amigo, Geraldo Carneiro. Nos 3 primeiros vídeos, a atriz Maria Padilha recita 3 sonetos do poeta & dramaturgo inglês William Shakespeare, na tradução do Geraldo Carneiro: o “Soneto 76”, o “Soneto 138” & o “Soneto 116”. O último vídeo da atriz, recitando o “Soneto 116”, infelizmente, inicia com um corte na leitura do primeiro verso. O poema, na íntegra, encontra-se logo abaixo do vídeo, à leitura & sua total apreensão. No quarto vídeo, o ator Tonico Pereira & a atriz Luana Vieira, sob a direção de cena do ator & diretor Bruce Gomlevsky, interpretam o poema épico “Fabulosa jornada ao Rio de Janeiro”, recém-lançado na recém-lançada antologia poética — “Subúrbios da galáxia” — que comemora os quarenta anos de produção literária do grande homenageado da noite, Geraldo Carneiro, poema que narra, de maneira divertida & ao mesmo tempo crítica, a história da formação desta cidade de onde sou natural, São Sebastião do Rio de Janeiro. No quinto & último vídeo desta postagem, encerrando esta edição do projeto, o próprio Geraldo recita um poema do escritor baiano João Ubaldo Ribeiro, originalmente escrito em inglês & traduzido para o português pelo Geraldo Carneiro.
Espero que vocês tenham se divertido com o projeto tanto quanto nós, participantes, nos divertimos realizando.
Mais uma vez, o meu muito obrigado a todos os espectadores & participantes!
Agora, espero os senhores na quarta edição do projeto “Ocupação Poética”, no teatro Cândido Mendes (Ipanema), que está chegando (já temos a data definida, o homenageado & diversos participantes confirmados)! Mais à frente, maiores informações sobre a nova edição!
Até já!
Beijo todos!
Paulo Sabino.
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(do site: Youtube. projeto: Ocupação Poética [3ª edição] — Teatro Cândido Mendes. local: Rio de Janeiro. data: 24/02/2016. Maria Padilha recita o Soneto 76, do poeta & dramaturgo inglês William Shakespeare, tradução de Geraldo Carneiro.)
Por que meu verso é sempre tão carente
De mutações e variação de temas?
Por que não olho as coisas do presente
Atrás de outras receitas e sistemas?
Por que só escrevo essa monotonia,
Tão incapaz de produzir inventos
Que cada verso quase denuncia
Meu nome e seu lugar de nascimento?
Pois saiba, amor, só escrevo a seu respeito
E sobre o amor, são meus únicos temas,
E assim vou refazendo o que foi feito
Reinventando as palavras do poema.
………….Como o sol, novo e velho a cada dia,
………….O meu amor rediz o que dizia.
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(do site: Youtube. projeto: Ocupação Poética [3ª edição] — Teatro Cândido Mendes. local: Rio de Janeiro. data: 24/02/2016. Maria Padilha recita o Soneto 138, do poeta & dramaturgo inglês William Shakespeare, tradução de Geraldo Carneiro.)
Se minha bem amada diz que jura,
Eu creio, embora saiba que ela mente:
Que ela não me suponha sem cultura
Nas falsas sutilezas dessa gente.
Finjo que ela me considera moço,
Embora ela me saiba já passado.
À falsa lábia dela dou meu endosso:
Suprimo a realidade dos dois lados.
Mas por que ela não diz que é insincera?
Por que eu não digo que sou veterano?
O amor é sábio se parece à vera
E tem horror que alguém lhe conte os anos.
………….Mentimos um ao outro e assim confio
………….Nas mentiras de nossos elogios.
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(do site: Youtube. projeto: Ocupação Poética [3ª edição] — Teatro Cândido Mendes. local: Rio de Janeiro. data: 24/02/2016. Maria Padilha recita o Soneto 116, do poeta & dramaturgo inglês William Shakespeare, tradução de Geraldo Carneiro.)
Não tenha eu restrições ao casamento
De almas sinceras, pois não é amor
O amor que muda ao sabor do momento
Ou se move e remove em desamor.
Oh, não: o amor é marca mais constante,
Que encara a tempestade e não balança,
É a estrela-guia dos batéis errantes,
Cujo valor lá no alto não se alcança.
O amor não é o bufão do tempo, embora
Sua foice desfigure o lábio e a face.
O amor não muda com o passar das horas,
Mas se sustenta até seu desenlace.
Se isso é erro meu, e assim provado for,
Nunca escrevi, ninguém jamais amou.
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(do site: Youtube. projeto: Ocupação Poética [3ª edição] — Teatro Cândido Mendes. local: Rio de Janeiro. data: 24/02/2016. Tonico Pereira e Luana Vieira interpretam o poema Fabulosa jornada ao Rio de Janeiro. autor: Geraldo Carneiro. direção de cena: Bruce Gomlevsky.)
FABULOSA JORNADA (Geraldo Carneiro) AO RIO DE JANEIRO
(rap-rapsódia exaltação)
1. De como eu, Brás Fragoso, vim dar às terras do Brasil, por ordem de el-rei Dom Sebastião, o Desejado
Rio-verão, pós Eva e Adão, cheguei:
segundo a lenda, os outros navegantes
que por este cenário navegaram
supunham que aqui fosse foz de um rio,
ou chamava-se “rio” a qualquer angra;
e como o mês talvez fosse janeiro,
chamaram o sítio Rio de Janeiro,
futura foz de tanta fantasia.
eu vim com a armada de Estácio de Sá,
fidalgo, primo do Governador,
para tomar o Rio dos franceses
…………heréticos blasfemos protestantes
…………traficantes da Caesalpinia echinata
……………………………………vulgo pau-brasil
…………o ouro original de nossas matas.
como se não bastasse esse pecado,
ainda faziam com nossas nativas
o mesmo que Jacó fez com Raquel
e Davi praticou com Betsabá.
assim se originou minha odisseia:
eu mal sabia das desaventuras
que mudariam todo o meu futuro,
por força de meus sonhos naufragados;
e embora batizado Brás Fragoso,
aqui meu nome, Brás, virou Brasil,
e o Fragoso tornou-se Naufragoso.
mas pra saber dessa aventura inglória,
há que saber, no entanto, a minha história.
2. Breve retrospecto das condições adversas em que encontrei a terra do Rio de Janeiro
na baía da Guanabara
não havia como apartar o joio do joio
era tamoio ligado com francês
era francês ligado com tamoio
TUDO DOMINADO
os donos do tráfico os traficantes
todo mundo cantando em coro:
(Entra o funk “Tá tudo dominado”,
com a voz processada pelo DJ, misturando
frases em diversas línguas.)
todos os tamoios nas trapaças
……………………dos franceses
colonizados no Forte Coligny
……………………colignyzados
só quem não fazia parte da tramoia
……………………era Arariboia
ex-cacique exilado em Cabo Frio
……………………agora office-tupinamboy
não podia nem desembarcar em Niterói
você não sabe como é que dói.
3. De como encontramos no Brasil um aliado paranormal, sem o qual nossa vitória seria impossível
felizmente, além da fé e da razão,
tínhamos do nosso lado um super-herói:
o irmão José de Anchieta.
Anchieta, com o perdão da má palavra,
era um jesuíta carne de pescoço,
conversava com os bichos e com as feras,
chamava urubu de meu brother
e papagaio de meu louro,
e quando não tinha homem branco
……………………urubuzando por perto
Anchieta andava sobre as águas
e de vez em quando voava,
voava sobre a terra e sobre o mar,
nunca deixando um português olhar
porque nós, o pessoal de Portugal,
somos mais burros do que São Tomé:
necessitamos ver para não crer.
Anchieta, não contente em escrever
a primeira gramática da língua tupi,
ainda ensinou os índios a dizer goodbye, arrivederci, hasta la vista
tudo isso no mais perfeito latim.
e quando alguém era inimigo do império
………………………………./ de Portugal,
Anchieta baixava o pau.
graças a ele e aos seus superpoderes,
superamos as tempestades do verão
& no dia primeiro de Março
desembarcamos cá para fundar
entre o Cara de Cão e o Pão de Açúcar
esse projeto de esplendor à beira-mar:
São Sebastião do Rio de Janeiro.
4. De como fizemos o desembarque, comandados por Estácio de Sá
aqui fincamos nossos estandartes.
e Estácio começou a dizer suas palavras,
“Em nome de el-rei Dom Sebastião”,
etc. e tal,
mas ninguém lhe prestou atenção.
porque vimos, através do olhar de Anchieta,
o espírito de Deus se mover sobre a face
………………………………………………/ das águas.
depois Deus apartando a luz das trevas
depois Deus chamando a luz de Dia
e chamando as trevas de Noite,
e da noite e da manhã fez-se o primeiro dia.
e Deus chamou o firmamento de Céu,
e Deus separou as águas e as terras,
e etc. etc.
e nós, maravilhados, assistindo ao Gênesis
…………no camarote vip na Praia Vermelha.
fomos erguendo a nossa paliçada,
tudo miraculosamente bem,
até que no sexto dia, na hora do descanso,
os tamoios mandaram em cima da gente
uma chuva de flechadas.
Anchieta tentou segurar a rapaziada
dizendo que Deus ia nos proteger,
ia salvar a nossa vida,
mas neguinho já tava careca de levar
………………………………………flecha perdida.
5. De como sobrevivi à chuva de flechadas
um mês depois, o Anchieta se mandou.
e nós aqui, na chuva de flechada,
tomando pau, borduna e cacetada,
comendo o pão que Belzebu amassou.
pensei até em escrever uma epopeia
contando tantos feitos e malfeitos.
mas não achei herói de nenhum lado:
Estácio era um rapaz meio fechado,
e o chefe dos tamoios, Aimberê,
com esse nome, não dava pra escrever.
(Entra uma índia belíssima, com figurino de
Jean-Paul Gautier em versão tropical.)
foi então que encontrei Paraguaçu,
a teteia top model do Baixo Grajaú.
Paraguaçu, falsificada de pai e mãe,
foi trazida aos doze anos do Paraguai,
e aqui, nas praias da Guanabara,
adquiriu a cultura francesa,
conhecia o fleur de rose
o ne me quitte pas
o voulez-vous coucher avec moi.
por obra e graça de Paraguaçu,
eu desisti de ser só português.
e assim me transformei em portugaio,
cruza de português com paraguaio.
6. De como fui me adaptando ao modo de vida da mui leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro
e foi assim que eu me tornei mestiço
ou seja, nem isso nem aquilo
imaginei que eu era o poeta Sá de Miranda
só admirando os prodígios do Novo Mundo
fiquei doidão, curtindo a realidade
da mui leal cidade de São Sebastião
só fumando & espiando o movimento
tupinambá de olho na pulseirinha da turista
cunhã na pista oferecendo os balangandãs
tupinambá malhando exibindo o corpão
e eu vendo cada coisa do balacobaco
fumando esse negócio chamado tabaco
achei que tinha chegado ao Paraíso,
pensei em me lembrar de certos versos
que celebravam as graças do universo
mas não lembrei foi xongas, nada não
de tanto que fumei meu baseadão
7. De como percebi que as aparências são enganadoras no Novo Mundo e desejei sinceramente ter ficado em Portugal
de repente, acabou-se o que era doce
Paraguaçu, minha deusa paraguaia,
aproximou-se do meu guarda-sol
à sombra das bananeiras em flor e disse:
PARAG.: “Eu queria te comer todinho.”
sorri, sem compreender a ambiguidade
que estava por detrás da fala dela, mas já
escolado na fala local, lhe respondi:
BRÁS: “Não é uma frase muito apropriada
pra uma índia bem-educada, mas eu aprecio
a ideia, tô dentro.”
PARAG.: “Tá dentro é do moquém.”
BRÁS: “Que diabo é moquém? Quem te en-
sinou a falar assim, quem?
PARAG.: “Meus ancestrais, a minha mãe,
a mãe da minha mãe (em francês), mes amis tupis. Tupãna, Tupã.”
ela então começou a me apalpar.
BRÁS: (gostando) “Não adianta me apalpar,
que eu só gosto mesmo é naquele lugar.”
PARAG.: (sorrindo) “Eu vou ficar só com
as tuas vísceras. Tua cabeça quem vai comer
é Aimberê, depois de te baixar a borduna.
Os curumins vão beber o teu caldinho.”
BRÁS: (com terror) “Paraguaçu, você não pode
fazer uma coisa dessas comigo! Eu sou
teu irmão, teu amásio, teu amigo!”
8. De como recorri à Divina Providência, porque era esta a última providência que me restava tomar
eu que ainda era mais ou menos moço
não tinha idade pra virar almoço
filé sem osso alcatra bacalhau
pra um bando de tamoio canibal,
e furibundo dirigi-me aos céus:
“Ora, Senhor, que tanto me maltratas:
Já me trouxestes a este cu do judas,
E, para arrematar, ainda me matas?”
(Ouve-se um estrondo ao fundo.)
então ouviu-se um estrondo de canhão:
chegaram galeões de Portugal!
e eu assisti do morro do Castelo
ao embate o arranca-rabo o xeque-mate
sem saber qual era o bem, qual era o mal.
9. De como a minha história chegou ao juízo final, ou à desgraciosa falta dele
e veio a guerra e veio a destruição
Paraguaçu fugiu com um temiminó
e foi passar o verão em Guarapari
Aimberê, coitado, foi pras cucuias
virou constelação tupinambá
Estácio tomou uma flecha na cara
morreu flechado como nosso padroeiro
São Sebastião do Rio de Janeiro
e vi todas aquelas almas voando
as almas são mais leves do que o ar
se é que há mesmo almas neste mundo
se não as há, talvez haja mais além
onde os pedaços desconexos da vida
onde os pedaços desconexos
onde os pedaços
lá onde a vida se rejubile
e as alegrias passem em desfile
na Marquês de Sapucaí do infinito
só sobrei eu, já meio soçobrado
só eu: a obra e a sobra
todas as minhas nações e encarnações
para sempre aqui
eu era agora carioca
malocado na minha maloca
num muquifo no Cortiço
ou num barraco do Morro da Favela
ex-Brás Fragoso agora apelidado
Brasil Naufragoso
porque minha alma naufragou aqui
aqui fiquei e aqui me edifiquei
e o pior é que gostei
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(do site: Youtube. projeto: Ocupação Poética [3ª edição] — Teatro Cândido Mendes. local: Rio de Janeiro. data: 24/02/2016. Geraldo Carneiro recita Quase soneto a quatro mãos, poema escrito originalmente em inglês por João Ubaldo Ribeiro, tradução de Geraldo Carneiro.)
(poema escrito originalmente em inglês por: João Ubaldo Ribeiro. tradução: Geraldo Carneiro.)
QUASE SONETO A QUATRO MÃOS
até a morte eu me atormentarei
pelo que descobri e não encontrei,
pelo que, pascaliano como sou,
eu compreendi e ainda assim maldigo.
sou o idiota mais perfeito, aliás,
por feito mais de carne que de gás.
é esse fado que me leva adiante
num mundo para o qual não sou prestante.
tudo o que tenho as mulheres me deram:
consolação, razão para existir.
benditas, berenices, beneditas,
também sejam benditos meus amigos,
pois gosto deles, tenham longa vida,
e até eu mesmo, que não a mereço,
mas que a observo e sei qual é seu preço.
(O elemento que mais fascina, o elemento do puro delírio, o elemento que vira a cabeça, de Paulo Sabino: água marinha: mar: útero às vistas: berço de todas as existências.)
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dia 2 de fevereiro é dia de festa no mar. portanto, deixo, aqui, a minha saudação à rainha do elemento que mais me fascina, elemento do meu delírio, elemento que vira a minha cabeça: o mar.
dia 2 de fevereiro: dia de saudar iemanjá, a grande mãe de todos os orixás.
muito me impressiona que tanto a ciência quanto as lendas africanas convirjam — ainda que por caminhos díspares — ao dizer que a origem & o desenvolvimento dos seres — os primeiros indícios de vida — se deram com o/no mar, se deram com as/nas águas marinhas.
o mais abundante elemento natural deste planeta azul, água para onde correm todas as águas, útero às vistas, criatório de tantas & diversas vidas, onde a mãe-d’água iemanjá permite que boiemos como quando no ventre de nossas mães-da-terra.
eu, até hoje, não aprendi a viver sem água & sem o mar à minha contemplação.
(e espero nunca aprender!)
em sua homenagem, uma compilação de textos & dois poemas-canções (com direito ao áudio das canções) que traçam o perfil & contam um pouco dos mitos que envolvem a mais prestigiosa entidade feminina da mitologia & dos cultos africanos.
salve minha mãe-d’água iemanjá!
salve a rainha do meu amante mor: o mar!
beijo todos!
paulo sabino.
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(do: Dicionário do folclore brasileiro. autor: Luís da Câmara Cascudo. editora: Global.)
IEMANJÁ. Mãe-d’água dos iorubanos. Orixá marítimo, a mais prestigiosa entidade feminina dos candomblés da Bahia. Recebe oferendas rituais, festas lhe são dedicadas, indo embarcações até alto-mar atirar presentes. Protetora de viagens, no processo sincrético das deusas marinhas passou a ser Afrodite, Anadiômene, padroeira dos amores, dispondo uniões, casamentos, soluções amorosas. Sua sinonímia é grande: Janaína, Dona Janaína, Princesa do Mar, Princesa do Aiocá ou Arocá, Sereia, Sereia do Mar, Oloxum, Dona Maria, Rainha do Mar, Sereia Mucunã, Inaê, Marbô, Dandalunda. Tem o leque e a espada como insígnias; seus alimentos sagrados são o pombo, o milho, o galo, o bode castrado; as cores rituais são o branco e o azul (…). Protege, defende, castiga, mata. Por vezes se apaixona. Tem amantes, os quais leva para o fundo do mar. Nem os corpos voltam. É ciumenta, vingativa, cruel, como todas as égides primitivas. A festa de Iemanjá na cidade de Salvador é em 2 de fevereiro, Nossa Senhora do Rosário. Nos candomblés e xangôs é representada, no salão exterior das danças, como uma sereia.
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(do livro: Mitologia dos orixás. autor: Reginaldo Prandi. editora: Companhia das Letras.)
IEMANJÁ AJUDA OLODUMARE NA CRIAÇÃO DO MUNDO
Olodumare-Olofim vivia só no Infinito,
cercado apenas de fogo, chamas e vapores,
onde quase nem podia caminhar.
Cansado desse seu universo tenebroso,
cansado de não ter com quem falar,
cansado de não ter com quem brigar,
decidiu pôr fim àquela situação.
Libertou as suas forças e a violência
delas fez jorrar uma tormenta de águas.
As águas debateram-se com rochas que nasciam
e abriram no chão profundas e grandes cavidades.
A água encheu as fendas ocas,
fazendo-se os mares e oceanos,
em cujas profundezas Olocum foi habitar.
Do que sobrou da inundação se fez a terra.
Na superfície do mar, junto à terra,
ali tomou seu reino Iemanjá,
com suas algas e estrelas-do-mar,
peixes, corais, conchas, madrepérolas.
Ali nasceu Iemanjá em prata e azul,
coroada pelo arco-íris Oxumarê.
Olodumare e Iemanjá, a mãe dos orixás,
dominaram o fogo no fundo da Terra
e o entregaram ao poder de Aganju, o mestre dos vulcões,
por onde ainda respira o fogo aprisionado.
O fogo se consumia na superfície do mundo e eles apagaram
e com suas cinzas Orixá Ocô fertilizou os campos,
propiciando o nascimento das ervas, frutos,
árvores, bosques, florestas,
que foram dados aos cuidados de Ossaim.
Nos lugares onde as cinzas foram escassas,
nasceram os pântanos e nos pântanos, a peste,
que foi doada pela mãe dos orixás ao filho Omulu.
Iemanjá encantou-se com a Terra
e a enfeitou com rios, cascatas e lagoas.
Assim surgiu Oxum, dona das águas doces.
Quando tudo estava feito
e cada natureza se encontrava na posse de um dos filhos de Iemanjá,
Obatalá, respondendo diretamente às ordens de Olorum,
criou o ser humano.
E o ser humano povoou a Terra.
E os orixás pelos humanos foram celebrados.
IEMANJÁ DÁ À LUZ AS ESTRELAS, AS NUVENS E OS ORIXÁS
Iemanjá vivia sozinha no Orum.
Ali ela vivia, ali dormia, ali se alimentava.
Um dia Olodumare decidiu que Iemanjá
precisava ter uma família,
ter com quem comer, conversar, brincar, viver.
Então o estômago de Iemanjá cresceu e cresceu
e dele nasceram todas as estrelas.
Mas as estrelas foram se fixar na distante abóboda celeste.
Iemanjá continuava solitária.
Então de sua barriga crescida nasceram as nuvens.
Mas as nuvens perambulavam pelo céu
até se precipitarem em chuva sobre a terra.
Iemanjá continuava solitária.
De seu estômago nasceram então os orixás,
nasceram Xangô, Oiá, Ogum, Ossaim, Obaluaê e os Ibejis.
Eles fizeram companhia a Iemanjá.
IEMANJÁ É NOMEADA PROTETORA DAS CABEÇAS
Dia houve em que todos os deuses
deveriam atender ao chamado de Olodumare para uma reunião.
Iemanjá estava em casa matando um carneiro,
quando Legba chegou para avisá-la do encontro.
Apressada e com medo de atrasar-se
e sem ter nada para levar de presente a Olodumare,
Iemanjá carregou consigo a cabeça do carneiro
como oferenda para o grande pai.
Ao ver que somente Iemanjá trazia-lhe um presente,
Olodumare declarou:
“Awojó orí dorí re.”
“Cabeça trazes, cabeça serás.”
Desde então Iemanjá é a senhora de todas as cabeças.
IEMANJÁ MOSTRA AOS HOMENS O SEU PODER SOBRE AS ÁGUAS
Em certa ocasião, os homens estavam preparando
grandes festas em homenagem aos orixás.
Por um descuido inexplicável, se esqueceram de Iemanjá,
esqueceram de Maleleo, que ela também se chama assim.
Iemanjá, furiosa, conjurou o mar
e o mar começou a engolir a terra.
Dava medo ver Iemanjá, lívida,
cavalgar a mais alta das ondas
com seu abebé de prata na mão direita
e o ofá da guerreira preso às costas.
Os homens, assustados, não sabiam o que fazer
e imploraram ajuda a Obatalá.
Quando a estrondosa imensidão de Iemanjá
já se precipitava sobre o que restava do mundo,
Obatalá se interpôs, levantou seu opaxorô
e ordenou a Iemanjá que se detivesse.
Obatalá criou os homens e não consentiria na sua destruição.
Por respeito ao Criador, a dona do mar acalmou suas águas
e deu por finda sua colérica revanche.
Já estava satisfeita com o castigo imposto
aos imprudentes mortais.
IEMANJÁ IRRITA-SE COM A SUJEIRA QUE OS HOMENS LANÇAM AO MAR
Logo no princípio do mundo,
Iemanjá já teve motivos para desgostar da humanidade.
Pois desde cedo os homens e as mulheres jogavam no mar
tudo o que a eles não servia.
Os seres humanos sujavam suas águas com lixo,
com tudo o que não mais prestava, velho ou estragado.
Até mesmo cuspiam em Iemanjá,
quando não faziam coisa muito pior.
Iemanjá foi queixar-se a Olodumare.
Assim não dava para continuar;
Iemanjá Sessu vivia suja,
sua casa estava sempre cheia de porcarias.
Olodumare ouviu seus reclamos
e deu-lhe o dom de devolver à praia
tudo o que os humanos jogassem de ruim em suas águas.
Desde então as ondas surgiram no mar.
As ondas trazem para a terra o que não é do mar.
IEMANJÁ AFOGA SEUS AMANTES NO MAR
Iemanjá é dona de rara beleza
e, como tal, mulher caprichosa e de apetites extravagantes.
Certa vez saiu de sua morada nas profundezas do mar
e veio à terra em busca do prazer da carne.
Encontrou um pescador jovem e bonito
e o levou para seu líquido leito de amor.
Seus corpos conheceram todas as delícias do encontro,
mas o pescador era apenas um humano
e morreu afogado nos braços da amante.
Quando amanheceu, Iemanjá devolveu o corpo à praia.
E assim acontece sempre, toda noite,
quando Iemanjá Conlá se encanta com os pescadores
que saem em seus barcos e jangadas para trabalhar.
Ela leva o escolhido para o fundo do mar e se deixa possuir
e depois o traz de novo, sem vida, para a areia.
As noivas e as esposas correm cedo para a praia
esperando pela volta de seus homens que foram para o mar,
implorando a Iemanjá que os deixe voltar vivos.
Elas levam para o mar muitos presentes,
flores, espelhos e perfumes,
para que Iemanjá mande sempre muitos peixes
e deixe viver os pescadores.
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(do encarte do cd: Mar de Sophia. artista: Maria Bethânia. autor dos versos: Paulo César Pinheiro. gravadora: Biscoito Fino.)
IEMANJÁ RAINHA DO MAR
Quanto nome tem a Rainha do Mar?
Quanto nome tem a Rainha do Mar?
Dandalunda, Janaína,
Marabô, Princesa de Aiocá,
Inaê, Sereia, Mucunã,
Maria, Dona Iemanjá.
Onde ela vive?
Onde ela mora?
Nas águas,
Na loca de pedra,
Num palácio encantado,
No fundo do mar.
O que ela gosta?
O que ela adora?
Perfume,
Flor, espelho e pente
Toda sorte de presente
Pra ela se enfeitar.
Como se saúda a Rainha do Mar?
Como se saúda a Rainha do Mar?
Alodê, Odofiaba,
Minha-mãe, Mãe-d’água,
Odoyá!
Qual é seu dia,
Nossa Senhora?
É dia dois de fevereiro
Quando na beira da praia
Eu vou me abençoar.
O que ela canta?
Por que ela chora?
Só canta cantiga bonita
Chora quando fica aflita
Se você chorar.
Quem é que já viu a Rainha do Mar?
Quem é que já viu a Rainha do Mar?
Pescador e marinheiro,
Quem escuta a Sereia cantar.
É com o povo que é praieiro
Que Dona Iemanjá quer se casar.
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(do site: Youtube. áudio extraído do álbum: Mar de Sophia. artista & intérprete: Maria Bethânia. canção: Iemanjá Rainha do Mar. música:Pedro Amorim. versos: Paulo César Pinheiro. gravadora: Biscoito Fino.)
(do encarte do cd: Gal canta Caymmi. artista: Gal Costa. autor dos versos: Dorival Caymmi. gravadora: PolyGram.)
RAINHA DO MAR
Minha sereia, rainha do mar
Minha sereia, rainha do mar
O canto dela faz admirar
O canto dela faz admirar
Minha sereia é moça bonita
Minha sereia é moça bonita
Nas ondas do mar
Aonde ela habita
Nas ondas do mar
Aonde ela habita
Ai, tem dó
De ver o meu penar
Ai, tem dó
De ver o meu penar
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(do site: Youtube. áudio extraído do álbum: Gal canta Caymmi. artista & intérprete: Gal Costa. canção: Rainha do Mar. autor da canção: Dorival Caymmi. gravadora: PolyGram.)
“Quando em 1500 os portugueses chegaram ao Brasil, na região de Porto Seguro, Bahia, encontraram ali um povo que falava uma língua completamente desconhecida dos europeus. Era o povo tupinaki, que falava a língua tupinambá. A maioria dos povos que viviam ao longo da costa, desde o Rio de Janeiro até o Ceará, falava essa mesma língua. Foi com a língua tupinambá que os colonos portugueses tiveram contato mais estreito durante o século XVI. Para entender-se com os indígenas, a fim de conhecer a nova terra e nela viver, muitos deles tiveram de aprendê-la. Desse contato resultou a grande influência do tupinambá no vocabulário do português do Brasil. Milhares de nomes comuns e nomes de lugares que utilizamos hoje em todo o país são palavras tupinambás.”
“Entre os séculos XVI e XIX foram trazidos para o Brasil entre 4 e 5 milhões de africanos escravizados. Desse total, cerca de 1 milhão foram embarcados nos portos da África Ocidental, entre a Costa do Ouro, atual Gana, e o Golfo de Biafra, na Nigéria. Oriundos dos diversos reinos que existiam na região, começaram a aportar no Brasil a partir da segunda metade do século XVII. Seu principal destino foi a cidade de Salvador e o Recôncavo Baiano, Minas Gerais e o Maranhão. As línguas que eles falavam, como o iorubá e o evé-fon, influenciaram a língua portuguesa no Brasil principalmente no domínio religioso.”
(Textos extraídos de painéis de exposição do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo.)
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a língua portuguesa, por misturar-se, mesclar-se, miscigenar-se, ganhou um rosto novo, abrasileirado: a língua — portuguesa — à brasileira, a língua — portuguesa — repaginada à maneira nossa, a língua à moda brasileira.
língua: também designa o órgão muscular situado na boca, responsável, entre outras coisas, pela produção dos sons.
língua: órgão muscular. língua à brasileira: órgão vernacular, órgão próprio de um país.
língua à brasileira: órgão vernacular alongado, encompridado, feito de muitas misturas (europeu + índio + negro), alongado como o órgão muscular, e por isso mesmo: hábil, móvel, tátil.
amálgama lusa malvada, portuguesa malvada nascida da mistura de elementos heterogêneos (europeu + índio + negro), malvada porque mastiga, come, engole, degusta, deglute, deflora, o que encontrar pela frente, mas qual flora antropofágica, no seu movimento de misturar, de mesclar, de miscigenar, salva a pátria mal amada, salva a nação mal cuidada, salva este país de assassinos, corruptos & desigualdades alarmantes.
língua à brasileira: língua-de-trapo & língua solta (língua para quem fala demais), língua ferina (mordaz, venenosa, língua da injúria, da fofoca), língua douta (língua erudita, de muitos saberes): saravá, língua-de-fogo & fósforo (chama, labareda, língua acesa), saravá, língua viva & declinativa (língua feita de declinação: conjunto das diversas formas que os substantivos, adjetivos, pronomes, artigos e numerais apresentam de acordo com a sua função sintática na oração), saravá, língua fônica (língua sonora, melodiosa) & apócrifa (língua inautêntica, toda misturada), saravá, língua lusófona & arcaica, crioula iorubáica (pela forte presença da língua iorubá na língua à brasileira), saravá, língua-de-sogra (faladeira incorrigível) & língua provecta (língua-mestre, avançada, inovadora), saravá, língua morta & ressurrecta (língua nascida do latim, que é uma língua já extinta, portanto, “morta”, e ressurrecta, isto é, língua renascida, ressuscitada, repaginada), saravá, língua tonal (cheia de tons & matizes) & viperina (língua venenosa, per-versa), saravá, palmo de neolatina (a língua portuguesa integra o grupo das línguas neolatinas, línguas derivadas da língua latina), saravá, “poema em linha reta” (poema elaborado pelo maior poeta da língua, o imensurável fernando pessoa), saravá, lusíadas no fim do túnel (referência a um dos mestres da poesia portuguesa, anterior a pessoa, luís de camões), saravá, caetano não fica mudo (o grande poeta-compositor da língua à brasileira possui um dos mais belos poemas-canções já escritos a respeito, intitulado “língua”), saravá, nem fica mudo o “seo” manoel lá da esquina, um dos tantos portugueses donos de estabelecimento comercial.
por ti, afro-gueixa (língua misturada, mesclada, miscigenada), por ti, guesa errante (referência ao mais célebre poema do poeta maranhense sousândrade, intitulado “guesa errante”, inspirado numa lenda andina em que o índio adolescente chamado “guesa” seria sacrificado como oferenda aos deuses), por ti, língua à brasileira, o mar se abre, o sol se deita. o mar se abre, o sol se deita, por mários de sagarana (“sagarana”, título de uma obra do mestre mineiro guimarães rosa, é um neologismo formado a partir da palavra “saga”, de origem européia, que designa “canto lendário ou heróico”, e da palavra “rana”, de origem tupi, que designa “semelhança”, “proximidade”), por magos de saramago (referência ao grande escritor português josé saramago & à magia concentrada em sua prosa vertiginosa).
viva os lábios! viva a língua da boca, a linguagem oral!
viva os livros! viva a língua da página, a linguagem escrita!
viva os lábios, viva os livros, dos rosas, campos & netos (de todos os nossos grandes escritores)! viva os léxicos (o vocabulário, o repertório de palavras) & os êxtases alcançados com os andrades — drummond, mário, oswald! viva toda a síntese da sintaxe dos erros milionários, dos erros que resultam em ganhos, em riquezas!
língua afiada a machado, porque cortante, porque precisa, porque ferina, como a ferramenta, e também porque língua afiada a machado de assis, escritor brasileiro afiadíssimo, considerado o maior de todos os tempos. desafinada índia-preta. por cruzas diversas, por misturas divinas (europeu + índio + negro), mil linguageiras, mil maneiras de se escrever & falar a língua.
a coisa mais língua que existe, a coisa mais comunicável que conheço, é o beijo da impureza desta língua que adeja toda a brisa brasileira: por mim, tupi, índio destas matas; por tu, “guesa”, índio da lenda, com nome que também integra a língua que me língua: a língua portuguesa.
a coisa mais língua que existe, a coisa mais comunicável que conheço, é o beijo da impureza desta língua que adeja toda a brisa brasileira: por mim, tupi, índio destas matas; por tu, leitor, tua língua portuguesa.
(a língua é minha pátria.)
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Qtais. autor: Luis Turiba. editora: 7Letras.)
LÍNGUA À BRASILEIRA
Ó órgão vernacular alongado
Hábil áspero ponteado
Móvel Nobel ágil tátil
Amálgama lusa malvada
Degusta deglute deflora
Mas qual flora antropofágica
Salva a pátria mal amada
Língua-de-trapo Língua solta
Língua ferina Língua douta
Língua cheia de saliva
Saravá Língua-de-fogo e fósforo
Viva & declinativa
Língua fônica apócrifa
Lusófona & arcaica
Crioula iorubáica
Língua-de-sogra Língua provecta
Língua morta & ressurrecta
Língua tonal e viperina
Palmo de neolatina
Poema em linha reta
Lusíadas no fim do túnel
Caetano não fica mudo
Nem “Seo” Manoel lá da esquina
Por ti Guesa errante, afro-gueixa
O mar se abre o sol se deita
Por Mários de Sagarana
Por magos de Saramago
Viva os lábios!
Viva os livros!
Dos Rosas Campos & Netos
Os léxicos, Andrades, os êxtases
Toda a síntese da sintaxe
Dos erros milionários
Desses malandros otários
Descartáveis, de gorjetas.
Língua afiada a Machado
Afinal, cabeça afeita
Desafinada índia-preta
Por cruzas mil linguageiras
A coisa mais Língua que existe
É o beijo da impureza
Desta Língua que adeja
Toda a brisa brasileira
Por mim,
……………Tupi,
……………………Por tu Guesa
(Foto do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.)
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“Oi querido Paulo, adorei seu entusiasmado texto! Que bom! Obrigado. Viva seu Blog!”(Péricles Cavalcanti)
tantas coisas lindas, exuberantes, para ver, para sentir, para tocar, num jardim botânico, numa tarde de sol (bichos, plantas, cores, sons, formas, odores, texturas), tantas coisas acesas aos sentidos… no entanto, quando a palavra ilumina, seja no lugar que for, a palavra realmente pode ser a coisa mais bonita entre outras tantas coisas bonitas.
“a consciência é uma lanterna que a solidão acende no anoitecer, pra gente ver que nem tudo é treva, que pode haver sentido em viver”.
o poeta leu a frase supracitada, frase iluminista, iluminada, no meio-dia quente de uma trilha, entre um refrigerante & um piquenique, no jardim botânico de brasília.
a frase supracitada estava escrita numa placa ao léu, a esmo, no sol a pino, no meio-dia quente, e, embaixo da frase, tinha uma assinatura da madame de estaël (madame de staël foi uma intelectual francesa, escritora & ensaísta, do final do século XVIII – início do século XIX, que acreditava nos ideais do iluminismo francês & os propagava em suas obras).
o poeta confessa não ter lido mais nada desta autora, porém nunca mais esqueceu a frase, pois ela foi a coisa mais bonita que o poeta viu ali — no jardim botânico.
tantas coisas lindas, exuberantes, para ver, para sentir, para tocar, num jardim botânico, mas quando a palavra ilumina, seja no lugar que for, a palavra realmente pode ser a coisa mais bonita entre outras tantas coisas bonitas: “a consciência é uma lanterna que a solidão acende no anoitecer, pra gente ver que nem tudo é treva, que pode haver sentido em viver”.
que frase linda de se ler num jardim botânico! uma grande luz entre luzes!
beijo todos!
paulo sabino.
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(autor: Péricles Cavalcanti.)
NO JARDIM BOTÂNICO
A consciência é uma lanterna
que a solidão acende no anoitecer
pra gente ver que nem tudo é treva
que pode haver sentido em viver
Li essa frase iluminista
no meio-dia quente de uma trilha
entre um refrigerante e um piquenique
no Jardim Botânico de Brasília
Estava escrita numa placa
no sol-a-pino assim ao léu
e tinha uma assinatura embaixo
da Madame de Staël
Não li mais nada desta autora
mas nunca mais eu me esqueci
pois foi a coisa mais bonita
que eu vi ali
que eu vi ali
que eu vi ali
no Jardim Botânico
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(do site: Soundcloud. canção: No Jardim Botânico. autor & intérprete: Péricles Cavalcanti.)
(Na foto, o poeta Eucanaã Ferraz.)
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note-se: o nome “eucanaã”, além de iniciar com o pronome da primeira pessoa do singular, “eu”, significa, em hebraico, “terra prometida”, a terra que, segundo a bíblia, deus assegurou aos descendentes de abraão — “canaã”.
esta placa: o nome do poeta: “eucanaã”, que é como se ele mesmo dissesse: “eu, canaã! eu, terra prometida!”
é como se ele próprio afirmasse — afinal, começa com “eu” o nome do poeta — que ele é o que o nomeia: “eu, canaã! eu, terra prometida!”
“canaã”, que é o mesmo que “terra prometida”: lugar de não ser ainda, solo tão só prometido, projeto de geografia para depois de amanhã, para um dia (quem sabe).
o nome do poeta, “terra prometida”, não é o poeta agora, pois ele não é terra que se prometeu a alguém ou a algum feito & a terra que forma o seu nome é uma terra ainda no mundo das promessas, isto é, no mundo futuro.
o poeta não existe no seu nome (o poeta não é terra que se prometeu a alguém ou a algum feito). o nome é uma coisa que vive sem ele.
o nome, terra prometida (“canaã”), se diz sendo o poeta, este nome que o afirma (“eu, canaã!”), mas o que nele — no nome — aponta o poeta é também o que o acusa de não ser o que o nome diz: o poeta não é o que seu nome diz que ele é: terra que se prometeu a alguém ou a algum feito.
o poeta queria viver sem nome, ser o que ele é: ao invés de “eu-canaã”, ao invés de “eu-terra prometida”, ser “eu-ninguém”.
chamarem-no — ei, você! — & o poeta se reconheceria perfeitamente não sendo senão uma coisa livre do que jamais prometeu.
mas à cara, mas no rosto, do poeta está colada esta placa (certas tintas, como as do nome, não se apagam), “eu-canaã”, este engano à beira de “ele-estrada”, esta placa à beira do poeta, que se vê estrada, que se vê caminho & que se faz caminho no andar dos passos.
se terra, como aponta o seu nome, o poeta é terra a terra, como os passos (passo a passo), o poeta é o agora, é o já, é o neste instante, sem vaticínios — sem previsões, sem profecias — de um norte, de um lugar na terra, em que mel & leite jorrassem fáceis, sem dor.
o poeta não existe no nome, não é terra que se prometeu a alguém ou a algum feito. o poeta só existe em chão estreito, em chão delgado, em chão apertado, em chão onde cabem uns versos de amor & morte, palavras ditas no escuro: fósforo (a luz mínima que conseguimos acender com o conhecimento mínimo que alcançamos da existência escura), poço (lugar escuro, sem saída), você (o outro, lugar também escuro, repleto de mistérios).
o poeta é o exilado do nome que carrega, sem ter nunca visto a pátria que mente (a tal “terra prometida”) toda vez que responde: “como é que você se chama?”
o poeta vai aos livros, não encontra a pátria que mente. o poeta pergunta. não está no atlas.
e o infinito infinito: o solo que não é encontrado nos livros, no atlas, a pátria que o poeta mente, a terra para sempre prometida no nome & que nunca se realizará, a terra que não consta em mapa algum.
a terra está cumprida, a terra está efetivada, a terra está realizada, quando estiver concluída, quando estiver terminada, quando estiver acabada. então, o poeta morrerá ali, por sob a terra, dentro dela, sem ser “eu” (sem ser o que o poeta é), sem “eu” (sem a terra-corpo onde todos pousamos enquanto vivos), puro “não ser”.
sem ser eu, sem eu, não ser mais: eu-canaã.
antes disso, antes de o poeta ir morar por sob a terra, antes de o poeta ir morar dentro dela, que esta sua placa continue a indicar caminhos luminosos a quem quer que a encontre estradafora.
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Escuta. autor: Eucanaã Ferraz. editora: Companhia das Letras.)
ESTA PLACA
Como se eu mesmo dissesse,
como se eu próprio afirmasse
(começa com eu, meu nome)
que sou o que me nomeia:
lugar de não ser ainda,
solo tão só prometido,
projeto de geografia
para depois de amanhã.
Meu nome não sou agora,
moro no mundo futuro.
Meu pai me deu esse nome
sem que eu pudesse fazê-lo.
Mal posso escrevê-lo certo
nos documentos que o pedem.
Não existo no meu nome,
coisa que vive sem mim.
Ele se diz sendo eu,
este nome que me afirma,
mas o que nele me aponta
é também o que me acusa
de eu não ser o que ele diz.
Queria viver sem nome,
ser o que sou: eu-ninguém.
Me chamarem — ei, você! —
e eu me reconheceria,
perfeitamente não sendo
senão uma coisa livre
do que jamais prometi.
Mas à cara está colada
(certas tintas não se apagam)
esta placa, este engano
à beira de mim-estrada.
Se terra, sou terra a terra,
o agora sem vaticínios
de um norte em que mel e leite
jorrassem fáceis, sem dor.
Só existo em chão estreito,
nuns versos de amor e morte,
palavras ditas no escuro,
fósforo, poço, você.
Sou o exilado do nome
que carrego, vice-versa,
sem ter nunca visto a pátria
que minto quando me digo
toda vez que respondo:
como é que você se chama?
Vou aos livros, não encontro.
Pergunto. Não está no atlas.
E o infinito infinito.
A terra estará cumprida
quando estiver concluída.
Então, morrerei ali,
sob ela, dentro dela,
na noite acesa de um luar certeiro, de um luar altaneiro, o paradeiro do poeta foi a velha mesa de onde foi presa, de onde foi a caça, quando aventureiro do primeiro amor que lhe deu tristeza.
de uma beleza de não ter parceiro, de uma beleza sem par, beleza ímpar, única, o candeeiro branco da princesa (candeeiro: no brasil colonial, chapéu de três pontas, também chamado tricórnio) causou surpresa, espanto, pasmo, ao poeta violeiro, que se deu inteiramente à boniteza da princesa & seu candeeiro branco.
sendo, o poeta, cavaleiro de sua princesa, alteza do seu reino amoroso, o poeta pôs, no tinteiro, a pena com firmeza, e, com presteza, foi o mensageiro de sua alteza, que é o seu amor.
findo, com delicadeza, o roteiro em versos, o poeta deixa, na velha mesa (de onde foi a presa, de onde foi a caça), um verso brasileiro que, no fim das contas, resulta em homenagem ao cancioneiro & à língua portuguesa.
pois, ainda que o poeta desejasse secreta a sua paixão por sua alteza, paixão nenhuma nunca foi secreta.
paixão nenhuma nunca foi secreta: tem sempre um rastro, um rabo, um indício, que vai ser achado. por mais oculta que ela tenha estado, nasce uma luz quando a paixão se projeta.
paixão nenhuma nunca foi secreta: no tronco velho da árvore, um coração cavado; dentro dele, a ponta de uma seta. um simples nome escrito ali, dentro ou próximo ao coração, completa o antigo indício de um apaixonado.
paixão nenhuma nunca foi secreta: tem sempre um rastro, um rabo, um indício, que vai ser achado. por mais que a alma queira ser discreta, o coração quer ser desmascarado: a luz da paixão, do amor, confunde o peito iluminado, iluminado pela luz de um candeeiro, pela luz de um lampião, que vai dentro.
o amor não deixa vida alguma quieta, sossegada: há sempre um arroubo, um desvario, um disparate, a ser cometido.
para o amor não há muitas escolhas: ou morre dele quem ficar calado, abafando-o, sufocando-o, reprimindo-o, ou vive dele quem virar poeta, confessando-o, declarando-o, louvando-o, em versos.
(Na foto, a pintura “Adoração ao bezerro de ouro”, óleo sobre tela do século XVII, do pintor italiano Andrea di Lione.)
(Na foto, a árvore de nome tília, natural da Europa & da Ásia, logo, nativa do hemisfério norte.)
(Na foto, um carvalho, árvore imponente, de madeira nobre, que pode chegar aos 45 metros de altura, nativa da Europa & do Mediterrâneo.)
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a única certeza desta vida: a de que, um dia, a morte nos alcançará.
portanto, por ser a morte a única certeza desta vida, é próprio da natureza humana pensar a sua finitude:
onde será que eu, o forasteiro (forasteiro porque não pertenço a este pedaço de terra, já que um dia parto de vez daqui), irei saudar a morte? onde será que o forasteiro cansado (cansado depois de tantas & tantas & tantas andanças mundo afora, que assim seja!) irá congratular a morte?
será que o forasteiro cansado irá saudar a morte entre as tílias, lá no (hemisfério) norte? ou aqui no (hemisfério) sul, sob os coqueiros?
vão me enterrar desconhecidos em cova rasa num deserto? ou vagarei em mar aberto até bater nos arrecifes?
que seja numa ou noutra paisagem! isso, no fundo, não pode nem deve interessar! aqui ou acolá, quando a morte me alcançar, há de envolver-me por inteiro a noite escura, noite de onde nunca mais despertarei, e um véu azul de estrelas será a minha mortalha, será o véu que envolverá o meu corpo sepultado.
o que pode & deve importar é o tempo de vida, tempo em que sou paulo sabino.
e, enquanto vida eu tiver, não entro nessa dança, não incenso os ídolos de ouro & pés de barro (“ídolos de ouro & pés de barro”: expressão utilizada para designar pessoas aparentemente fortes, mas apoiadas em estrutura & formação frágeis, inconsistentes, estrutura & formação que podem ruir a qualquer momento de tão frágeis, tão inconsistentes).
enquanto vida eu tiver, não entro nessa dança, não incenso, não louvo, não idolatro, não glorifico, ídolos de ouro & pés de barro, ídolos de estrutura & formação frágeis, nem ídolos falsos, como o bezerro de ouro, retratado na tela do pintor italiano andrea di lione, episódio bíblico (velho testamento) em que os hebreus, quando da saída do egito em busca da terra prometida, exigiram a construção de um deus qualquer, deus, por conseguinte, falso, ilegítimo, enganoso, que pudesse guiá-los, que pudesse direcioná-los, que pudesse orientá-los, e o bezerro de ouro foi arquitetado para tal objetivo.
não incenso, não louvo, não idolatro, não glorifico, ídolos de ouro & pés de barro; tampouco aperto mão de masmarro, de espertalhão, de malandro, de salafrário, tampouco aperto mão de quem difama, de quem cria calúnias, de quem distribui dissenso, de quem distribui conflito, de quem distribui desavença.
não acompanho as multidões medonhas que adoram seus heróis de meia-figa, heróis ordinários, sem grande valor.
sim, eu sei: carvalhos, que são árvores imponentes, ornamentais, de madeira nobre (forte & resistente), árvores que podem chegar aos 45 metros de altura, os carvalhos têm que desabar, enquanto o junco, designação comum para ervas rasteiras encontradas em locais úmidos ou pantanosos, o junco espera, abaixando-se, curvado, passar o vento forte da intempérie, o vento forte do mau tempo.
mas do que pode um junco se orgulhar, sempre abaixando-se, sempre curvando-se, sempre sujeitando-se às vontades do vento forte, nunca enfrentando o mau tempo de pé, nunca resistindo a ele bravamente, como é comum aos carvalhos, árvores imponentes, de grande rijeza, de imensa resistência, de extraordinária solidez?
do que pode um junco se orgulhar? de tirar poeira de capacho ao sol, de tirar o pó do tapete da porta exposto ao sol? do que pode um junco se orgulhar? de curvar-se para a linha de um anzol, quando esta roça a sua superfície?
o junco nunca correrá o risco de desabar ante o vento forte da intempérie porque o junco é rasteiro, porque o junco se ergue pouco acima do solo, porque o junco nasceu para o raso, porque o junco é subserviente; diferentemente do carvalho, árvore altiva, nobre, forte, resistente, que cresce alto perante a vida, que agrega uma série de funções & possibilidades.
eu sei: carvalhos têm que desabar. porém, eu prefiro correr o risco da intempérie, o perigo de ser derrubado pelo vento forte, do que viver sempre rasteiro, sempre no raso, sempre submisso, rente ao chão.
não entro nessa dança: seja onde for, proponho & firmo a contradança.
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Heine, hein? — Poeta dos contrários. autor: Heinrich Heine. tradução: André Vallias. editora: Perspectiva.)
[ONDE?]
Onde será que o forasteiro
Cansado irá saudar a morte?
Por entre as tílias, lá no norte?
Aqui no sul, sob os coqueiros?
Vão me enterrar desconhecidos
Em cova rasa num deserto?
Ou vagarei em mar aberto
Até bater nos arrecifes?
Que seja! Aqui ou acolá,
Há de envolver-me por inteiro
A noite escura e um véu de estrelas
Azul será minha mortalha.
NÃO ENTRO NESSA DANÇA, não incenso
Os ídolos de ouro e pés de barro;
Tampouco aperto a mão desse masmarro
Que me difama e distribui dissenso.
Não galanteio a linda rapariga
Que ostenta sem pudor suas vergonhas;
Nem acompanho as multidões medonhas
Que adoram seus heróis de meia-figa.
Eu sei: carvalhos têm que desabar,
Enquanto o junco se abaixando espera
Passar o vento forte da intempérie.
Mas do que pode um junco se orgulhar?
Tirar poeira de capacho ao sol,
Curvar-se para a linha de um anzol.
(Para aumentar a imagem, clicar com o mouse sobre ela. Na foto, a pintura Mulher com crisântemos.)
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o olhar observador, atento, parado em frente à tela acima, mulher com crisântemos, do artista francês da virada do século XIX para o século XX, edgar degas:
as flores transbordam do seu vaso na mesa, um pouco à esquerda da tela cujas beiras por pouco elas não ultrapassam, invadindo a moldura, tamanha exuberância. também o seu colorido, de tão vivo, tão intenso, tão bem cuidado, quase abandona a paleta da pintura, saltando do mundo das tintas para o mundo nosso, real, de concreto & cimento armado, tamanho realismo do colorido, mas apenas quase.
(é que o pintor, jovem mestre, ostenta sprezzatura, que é a capacidade que alguns artistas têm de fazer o difícil parecer fácil. é o mesmo que dizemos por cá: “fácil de entender, difícil de fazer”. assim como degas, chico buarque, dorival caymmi & vinicius de moraes são mestres que ostentam sprezzatura.)
o olhar passa por elas (pelas flores), pousa aqui, pousa ali, hesitante abelha, visita, à esquerda do vaso, um jarro d’água, nota um lenço largado sobre a toalha bordada da mesa, e ruma ao lado oposto da tela, para uma mulher cujos olhos ignoram-no, os olhos da mulher ignoram o olhar atento que agora a observa, atraídos, talvez, por algo que se acha fora não somente do quadro em que ela se encontra, mas também daquele quadro em que nos perceberia, se quisesse, se, num repente, resolvesse encarar o olhar que a encarava, se, num rompante, resolvesse fitar o olhar que a fitava, ávido. os olhos da mulher talvez estejam atraídos por algo que se acha fora tanto do quadro em que ela se encontra quanto de um outro, um no qual ela nos perceberia: talvez (os olhos) atraídos por algo que esteja apenas no seu pensamento, talvez por algo que esteja perdido nos seus olhos, que parecem distantes da própria pintura.
sem saber por que, o olhar não mais a quer largar. diga-se a verdade: essa mulher deixa a desejar: ela não se compara aos crisântemos (à sua beleza & exuberância) que lhe deram a fama a que mal faz jus, ela não se compara às flores que lhe deram a fama que, diga-se a verdade, não merece: afinal, ela se encontra à margem do quadro, e nem sequer inteira, só em parte. dela, está bem mais presente, ali no quadro, a ausência que a presença (a mulher nem sequer coloca-se inteira na tela & os seus olhos parecem distantes do cenário em que se encontram).
e, dado que a ausência é proteica, isto é, multiforme, multifacetada (pode-se estar ausente de diversas maneiras, sob diversos aspectos), dado também que a ausência é proteica porque, assim como proteína, alimenta a alma, os pensamentos, os olhos, de fantasias & delírios (a ausência do que atrai para si os olhos da mulher nos faz fantasiar, delirar, as mais sortidas razões), e “tudo nada” (pois tudo que forma a ausência é a falta, é o vazio, é o buraco, “tudo” que forma a ausência é o “nada”, a ausência é o “tudo” que é “nada”), e tudo nada, e tudo bóia, e tudo oscila, e tudo vacila, no quadro (não se pode saber com o que se distraem os olhos da mulher), o olhar atento à pintura mal mergulha na vertiginosa superfície da mulher (a mulher é feita de tinta & não de carne & osso, é superfície genuína porque não possui dentro, é toda exterioridade, e, no entanto, sendo apenas superfície, toda exterioridade, a mulher consegue levar o olhar de quem a observa à vertigem, à viagem interrogativa, curiosa, imaginativa) & flutua, bóia, nada, de volta às flores sobre o fundo castanho do papel de parede; depois, da capo (da capo é uma expressão que significa “desde o princípio” & que é colocada ao fim de um trecho de música, indicando que todo o trecho deve ser repetido), depois, portanto, o olhar é convidado a repetir toda a sua viagem, desde o princípio.
voltar o olhar atencioso inúmeras vezes a uma pintura como quem lê inúmeras vezes um poema: a fim de que a pintura, pura superfície assim como o poema, nos leve a sensações vertiginosas, nos leve a sensações que só sabem desempenhar as grandes obras de arte.
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Porventura. autor: Antonio Cicero. editora: Record.)
MULHER COM CRISÂNTEMOS (sobre um quadro de Degas)
Para Carlos Mendes Sousa
As flores transbordam do seu vaso à mesa,
um pouco à esquerda da tela cujas beiras
por pouco não ultrapassam, invadindo
a moldura. Também o seu colorido
quase abandona a paleta da pintura
(é que o jovem mestre ostenta sprezzatura),
mas apenas quase. O olhar passa por elas,
pousa aqui, pousa ali, hesitante abelha,
visita, à esquerda do vaso, um jarro d’água,
nota um lenço largado sobre a toalha
bordada da mesa e ruma ao lado oposto
da tela, para uma mulher cujos olhos
ignoram-no, atraídos talvez por algo
que se acha fora não somente do quadro
em que ela se encontra, mas também daquele
em que nos perceberia, se quisesse.
Sem saber por que, o olhar não mais a quer
largar. Diga-se a verdade: essa mulher
deixa a desejar. Ela não se compara
aos crisântemos que lhe deram a fama
a que mal faz jus, já que se encontra à margem
do quadro, e nem sequer inteira, só em parte.
Dela está bem mais presente ali a ausência
que a presença. E, dado que a ausência é proteica
e tudo nada, o olhar mal mergulha em sua
vertiginosa superfície e flutua
de volta às flores sobre o fundo castanho
do papel de parede; depois, da capo.
(Clique com o mouse no mapa para ampliar o seu tamanho.)
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esta publicação atira numa questão muito relevante, numa questão que tem a ver com o que se discute, hoje, sobre misturas de culturas & etnias.
como já comprovam alguns estudos, a troca entre a áfrica & a grécia antigas, troca cultural, comercial, ocorria de forma intensa desde tempos imemoriais.
tal relação de permuta entre essas culturas, certamente, criava, ajudava a criar, as identidades culturais de ambos os lados.
quando a europa — e o seu cientificismo do século XIX — se apropria de preceitos originários da antigüidade clássica, da grécia antiga, para a edificação de suas “sociedades civilizadas”, de suas sociedades “geneticamente superiores” às demais, a europa dos tempos modernos escamoteia, encobre, esconde, sistematicamente, toda a influência da cultura africana na cultura grega.
segundo o professor de história antiga do instituto de filosofia e ciências sociais (ifcs) da universidade federal do rio de janeiro (ufrj), andré chevitarese, um grande especialista em grécia antiga, a tradução mais fiel para as características de édipo, para o seu biotipo, célebre personagem da tragédia grega “édipo rei”, escrita pelo dramaturgo grego sófocles por volta de 427 a.C., é a de um homem “amorenado”, queimado pelo sol, com um tom de pele mais escuro, e não a do herói de “cútis alva como a neve”, como traduziram maliciosamente os europeus em suas versões para a peça original.
as trocas entre culturas, entre sociedades, por mais que alguns tentem negar, acontecem desde que o mundo é mundo.
inclusive, sabe-se já que, durante um período da história da humanidade, o norte da áfrica foi muito mais desenvolvido do que qualquer sociedade européia à época, concentrando cidades populosas, grandes obras públicas & feitos importantes nas áreas das ciências & das artes.
há claros indícios, em estudos sobre a américa pré-colombiana, de que os nossos índios, muitos localizados na região de minas gerais, mantinham trocas comerciais, culturais, e até científicas (sobre modos de preparo da terra, para o plantio, e também sobre o cultivo do milho) com os índios que vinham do méxico(!). o intercâmbio que na américa ocorria, entre os residentes pré-colombianos, ia do leste ao oeste (do atlântico ao pacífico) & do norte ao sul.
o reggae maranhense é fruto das trocas culturais com o caribe, trocas que, segundo pesquisadores, existiam desde antes da chegada de colombo às terras americanas.
“cultura pura”, “cultura genuína”, “cultura de raiz”, são termos que não servem para muita coisa; na verdade, creio que não sirvam para nada. pois nada pode ser “genuinamente puro”, “intocado”, “virgem”, “de raiz”, feito, surgido, sob influência nenhuma. não existe um fundo próprio das coisas; na verdade, o fundo, sempre, é falso.
cultura que se deseja viva tem que viver a vida. e viver a vida significa estar inserido nela. o que se nega a trocar, a compartilhar, uma hora, é esquecido. e morre.
ser é visível, ser é estar à vista.
o que faz a vida é a troca. os brancos ensinaram, e ensinam, aos pretos tanto quanto os pretos ensinaram, e ensinam, aos brancos. em pé de igualdade.
isso só prova que o racismo se trata de uma grande burrice, isso só prova que o racismo se trata de uma grande estupidez.
misturar, mesclar, miscigenar: eis a única maneira de criar, eis a única maneira de gerar, eis a única maneira de inventar, coisas no mundo.
(próprio da beleza é o aparecer.)
beijo todos!
paulo sabino.
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(do: Dicionário da antiguidade africana. autor: Nei Lopes. editora: Civilização Brasileira.)
EUROPA E ÁFRICA: relações. À época da VI dinastia egípcia, por volta do século XX a.C., tempo em que, segundo Anta Diop, a Europa inteira não passava de um continente selvagem, em que Paris e Londres não eram mais que grandes extensões pantanosas, e Roma e Atenas dois lugares desertos, a África contava já, no vale do Nilo, com uma pujante civilização, onde pulsavam cidades populosas; onde o paciente esforço de várias gerações trabalhava o solo e erguia grandes obras públicas; onde as ciências e as artes alcançavam alturas insuspeitas, e onde, inclusive, a fé já havia criado deuses e deusas por muito tempo venerados (cf. Diop, 1979, vol. I, p. 231, nota I, a partir de J. Weulersse, 1934, p. 11). Nesse tempo, as rotas comerciais do vale do Nilo incluíam um ramo que começava no litoral egípcio, estendia-se para o oeste através do Mediterrâneo, e para o norte, ao longo do litoral da Europa ocidental, no mar Báltico, do qual os africanos extraíam âmbar. Segundo Don Luke, essa rota chegava às Ilhas Britânicas e à Escandinávia. Ver CÓLQUIDOS; ROTAS DE COMÉRCIO.