O MENINO POETA
10 de maio de 2015

Paulo Sabino_Azul_Búzios
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ventos líricos me sopraram a existência do menino poeta.

o menino poeta — dizem os ventos — habita as palavras que compõem os versos, é o responsável pelos jogos semânticos & pelas brincadeiras & peripécias estilísticas entre signos.

ventos líricos me sopraram que o menino poeta percorre os quatro cantos do mundo, peralta, irrequieto, traquinas.

o menino poeta — não sei onde está.

procuro dali, procuro de lá. tem olhos azuis ou tem olhos negros? parece jesus ou índio guerreiro?

mas onde andará o menino poeta, que ainda não o vi? nas águas de lambari, em minas gerais? nos reinos do canadá, lá em cima, no norte das américas?

onde andará o menino poeta, que ainda não o vi? estará no berço, brincando com os anjos? estará na escola, travesso, rabiscando bancos?

o vizinho, ali, disse que, acolá, existe um menino com dó dos peixinhos. um dia, o menino pescou — pescou por pescar, não pretendia — um peixinho de âmbar, coberto de sal (âmbar: resina fóssil, de cor entre o acastanhado & o amarelado, utilizada na fabricação de objetos ornamentais). depois, o menino soltou o peixinho de âmbar outra vez nas ondas.

ai, que curiosidade! será esse o menino poeta? será que não? que será esse menino? que não será?…

certo peregrino — passou por aqui — conta que um menino, das bandas de lá, furtou uma estrela. a estrela, por causa do furto, caiu no choro; o menino, por tê-la furtado, ria. porém, de repente, o menino, tão lindo!, vendo o choro da estrela, subiu pelo morro & tornou a pregá-la, com três pregos de ouro, nas saias da lua.

ai, que curiosidade! será esse o menino poeta? será que não? que será esse menino? que não será?…

procuro daqui, procuro de lá. o menino poeta, habitante das palavras que compõem os versos, responsável pelos jogos semânticos & pelas brincadeiras & peripécias estilísticas entre signos, quero ver de perto.

quero ver de perto — o menino poeta — para me ensinar as bonitas coisas do céu & do mar. quero ver de perto — o menino poeta — para me ensinar a voar, cada vez mais alto, e a mergulhar, cada vez mais fundo, nos braços do meu bem maior: a poesia.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Melhores poemas. autora: Henriqueta Lisboa. seleção: Fábio Lucas. editora: Global.)

 

 

O MENINO POETA

 

O menino poeta
não sei onde está.
Procuro daqui
procuro de lá.
Tem olhos azuis
ou tem olhos negros?
Parece Jesus
ou índio guerreiro?

Tra-la-la-la-li
tra-la-la-la-lá

Mas onde andará
que ainda não o vi?
Nas águas de Lambari,
nos reinos do Canadá?
Estará no berço
brincando com os anjos,
na escola travesso
rabiscando bancos?

O vizinho ali
disse que acolá
existe um menino
com dó dos peixinhos.
Um dia pescou
— pescou por pescar —
um peixinho de âmbar
coberto de sal.
Depois o soltou

outra vez nas ondas.
Ai! que esse menino
será, não será?…
Certo peregrino
— passou por aqui —
conta que um menino
das bandas de lá
furtou uma estrela.

Tra-la-li-la-lá.

A estrela num choro
o menino rindo.
Porém de repente
— menino tão lindo! —
subiu pelo morro
tornou a pregá-la
com três pregos de ouro
nas saias da lua.

Ai! que esse menino
será, não será?

Procuro daqui
procuro de lá.
O menino poeta
quero ver de perto
quero ver de perto
para me ensinar
as bonitas cousas
do céu e do mar.

O MENINO AZUL
27 de março de 2014

O Menino Azul

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o menino azul que me habita o peito, cansado dos desmandos & injustiças cometidos por aqueles que se consideram os donos do poder (político, econômico, de informação), sufocado pelas dores & dissabores causados por aqueles que se consideram os donos do poder (político, econômico, de informação), o menino quer um burrinho para passear. um burrinho manso, que não corra nem pule, mas que saiba conversar.

o menino azul que me habita o peito quer um burrinho que saiba dizer o nome dos rios, das montanhas, das flores — de tudo o que aparecer.

o menino azul que me habita o peito quer um burrinho que saiba inventar histórias bonitas, com pessoas & bichos & com barquinhos no mar.

e os dois, o menino azul que me habita o peito & o seu burrinho, sairão pelo mundo, que é como um jardim, apenas mais largo & talvez mais comprido & que não tenha fim.

quem souber de um burrinho desses, pode escrever à rua das casas, número das portas, carta endereçada ao menino azul que não sabe ler.

o menino azul que me habita o peito não sabe ler, sabe somente sentir.

o menino azul que me habita o peito tem apenas duas mãos & o sentimento do mundo.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Poesia completa — volume II. autora: Cecília Meireles. organização: Antonio Carlos Secchin. editora: Nova Fronteira.)

 

 

O MENINO AZUL

 

O menino quer um burrinho
para passear.
Um burrinho manso,
que não corra nem pule,
mas que saiba conversar.

O menino quer um burrinho
que saiba dizer
o nome dos rios,
das montanhas, das flores
— de tudo o que aparecer.

O menino quer um burrinho
que saiba inventar
histórias bonitas
com pessoas e bichos
e com barquinhos no mar.

E os dois sairão pelo mundo
que é como um jardim
apenas mais largo
e talvez mais comprido
e que não tenha fim.

(Quem souber de um burrinho desses,
pode escrever
para a Rua das Casas,
Número das Portas,
ao Menino Azul que não sabe ler.)

 

FEITO UM BOLERO: A CANÇÃO PARA ME ENTENDER
6 de novembro de 2012

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no bolso esquerdo,  no bolso do lado esquerdo do peito, levo uma tristeza que se agita, andorinha, lépida & pequenina, quando escrevo.

pois, quando escrevo, agita-se a andorinha chamada tristeza, lépida & pequenina, e, com ela, agitam-se algumas saudades, alguns dissabores, quando escrevo.
 
no entanto, juro, os senhores devem perceber, sou alegre & rio tanto & mais sempre que me atrevo. e, nesse quesito, considero-me bem atrevido.
 
amo. e amo sempre, esperançoso, reincidente abelha, insistente & repetitiva abelha (animal que trabalha incansavelmente, com cuidado, esmero & atenção), amo industrioso, amo caprichado, esmerado, amo & tenho trabalho (ainda que, no fim das contas, prazeroso).
 
dos abraços, rápidos marinheiros, marinheiros que chegam & partem logo (visto o breve tempo de um abraço), deles (dos abraços) ficam, no ar, algumas formas breves: um revoar de plumas, um revoar de travesseiros, um revoar de formas breves & leves & confortáveis. mas o peso deles (dos abraços), o peso que eles (os abraços) adquirem dentro de nós, é de chumbo & sal.
 
no vivenciar o mundo, minucioso, perco a exatidão do mundo. no vivenciar o mundo, detalhista, perco a precisão, perco a clareza, perco a nitidez do mundo, pois, no vivenciá-lo, percebe-se que o mundo são dúvidas, incertezas, caminhos possíveis, escolhas. no vivenciar o mundo, percebe-se que o mundo, sobretudo, é errância. ninguém sabe ao certo o que nos aguarda ao dobrar a próxima esquina.
 
em meus olhos desatentos, guardo apenas imprevistas surpresas de janela, guardo, em meus olhos distraídos, apenas inesperadas surpresas de quem assiste ao passar da vida (não somente como um ator social, não somente como um ser atuante, mas também como um espectador distanciado) & uma inocência de menino à espera, grávido de sonhos, de vontades, menino grávido de vida.
 
menino grávido de vida, decreto que, hoje, o poema do poeta será festa, feriado comemorativo.
 
hoje, que os cabelos brancos do poeta sejam prata, metal precioso, as rugas, rios de muitas águas, cada poro do poeta seja um lago. hoje, que sejam potáveis & frescas as águas oferecidas pela fonte poética.
 
hoje, que beijem leve, longamente o poeta; hoje, que passeiem pelo corpo do poeta como um parque (de diversões), fonte de prazeres a quem dele se sirva.
 
hoje foi decretado que o poema do poeta será festa, feriado comemorativo.
 
hoje o poeta vestirá aquele riso grande & inocente.
 
hoje o poeta vai provar algodão-doce, mel rosado, beber chuva passageira sentado a uma mesa na calçada.
 
hoje o poeta será tanto & tantas vezes (feliz) que, dele, hão de dizer, penalizados: “é criança ainda, ou bolero”.
 
hão de dizer, sentindo pena, que hoje o poeta é criança ainda, hão de dizer que hoje o poeta é inocente, fantasioso, onírico, cheio de energia para traquinices, ou hão de dizer que hoje o poeta é feito um bolero: ritmo de origem espanhola, chegou à américa latina por cuba & é dedicado àqueles que amam com despudor, é dedicado àqueles que amam livres de recatos & amarras, que amam sem nenhuma vergonha de dizer, com todas as sílabas, seus sentimentos.
 
hoje o poeta é feito um bolero: a canção para bem entendê-lo: ritmo dedicado àqueles que amam despudoradamente, ritmo dedicado ao amor livre de recatos & amarras.
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Olhos de cadela. autora: Ana Mariano. editora: L&PM Editores.)
 
 
 
CANÇÃO PARA ME ENTENDER
 
 
No bolso esquerdo, levo uma tristeza
que se agita, andorinha, quando escrevo.
No entanto, juro, sou alegre e rio
tanto e mais, sempre que me atrevo.
 
No amor, dizem, sou incongruente.
Mas amo. Amo sempre, esperançosa,
reincidente abelha, amo industriosa,
em dias alternados, amo insistente.
 
Dos abraços, rápidos marinheiros,
ficam no ar algumas formas breves,
um revoar de plumas, travesseiros.
Mas é de chumbo e sal o peso deles.
 
A exatidão do mundo perco, minuciosa.
Guardo apenas, em meus olhos desatentos,
imprevistas surpresas de janela
e essa inocência de menina à espera.
 
 
 
FEITO UM BOLERO
 
 
Que meus cabelos brancos hoje sejam prata,
as rugas, rios de muitas águas,
cada poro meu seja um lago.
Que me beijem leve, longamente
e passeiem meu corpo como um parque.
Hoje meu poema será festa, feriado comemorativo.
Vestirei aquele riso grande e inocente.
Vou provar algodão-doce, mel rosado,
beber chuva passageira sentada a uma mesa na calçada.
Hoje serei tanto e tantas vezes
que de mim hão de dizer, penalizados:
é criança ainda ou bolero.

CANÇÃO DO EXILADO: A ESTRELA FRIA
5 de outubro de 2011

(paulo sabino, de gracinha para a foto – rs, ainda bem jovenzinho: tempo que não volta mais.)

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o presente — até porque é a única coisa que nos resta — é o que importa, é o que, de fato, temos à disposição.
 
se eu voltar a lamber as botas do passado,
 
se eu voltar a visitar o passado com tamanha veemência,
 
se eu voltar a chorar a memória da memória:
 
que me seque a mão direita! que me seque a mão com a qual rascunho os meus rabiscos que revivem o passado!
 
quando o calor do passado vier pelo vento tardio desta primavera tão pura e o meu tato corromper, e o meu tato desvirtuar, estragar; e o roçar da nuca do passado me fizer tremer, tremer por lembrar o roçar daquela nuca do passado; se eu assobiar a mínima canção do passado; se eu procurar a boca do passado e o ruído das ruas do passado estrangular o meu coração:
 
que a língua cole no paladar!
 
ó, língua, ó, devastadora filha de babel (da torre, arruinada pelo alarido das línguas desencontradas), feliz é aquele que devolve a você o mal que me é causado por querer resgatar aquilo que não pode ser resgatado, feliz é aquele que rejeita esse mal, feliz é aquele que não aceita essa sua oferta: falar do passado.
 
feliz é o que se oferece ao que está. ao que: disponível: o presente.
 
não pedirei mais nada ao passado.
 
repetirei, em desassombro, repetirei, sem espanto ou surpresa (se eu lembrar de você, passado, cidade-além), repetirei em desassombro para o passado o que, no passado, alguns disseram a jerusalém: “arrasai-a! arrasai-a até os alicerces!”
 
morte ao morto!, o passado.
 
longa vida ao que fica!, o presente.
 
o passado: a estrela fria.
 
a estrela fria: a infância, a memória, o passado, é a luz de uma estrela fria, fria porque a sua luz não mais aquece, está longe, morta, está no passado.
 
a estrela fria: as recordações do poeta:
 
o verão, avassalador, o rangido do sol a pino, em pernambuco, varrendo a sombra & a árvore: quintal pelado; o medo, um companheiro do poeta de todas as horas.
 
os ermos da infância abrigam os olhos do poeta: 
 
ele sabe que a sua própria história, que escuta de si mesmo, vem tangida, vem tocada, pela memória de um “outro”, de um “outro” que é identificado com o tato, com o toque, de hoje, “outro” que nada mais é do que o poeta do tempo presente, este, sim, em constante transformação, e que, por viver em contínua mudança, será sempre um “outro”.
 
preocupemo-nos mais com este “outro” que formamos a cada dia.
 
que este “outro” — que formamos a cada dia — se sinta pleno na vida em que está, que este “outro” se sinta realizado na existência que abriga, a fim de que as lembranças sejam puramente (boas) lembranças (lembranças de um presente outrora bem vivido), e o presente, aquilo que mais vale o seu olhar.
 
morte ao morto!, o passado.
 
longa vida ao que fica!, o presente.
 
beijo todos!
paulo sabino.  
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(do livro: A estrela fria. autor: José Almino. editora: Companhia das Letras.)
 
 
 
CANÇÃO DO EXILADO
 
 
Se eu voltar a lamber as botas do passado,
se eu voltar a chorar a memória da memória:
que me seque a mão direita!
 
Quando o teu calor vier
pelo vento tardio deste verão tão puro
e corromper o meu tato;
e o roçar da tua nuca me fizer tremer,
se eu assobiar a tua mínima canção,
se eu procurar a tua boca
e o ruído das tuas ruas estrangular o meu coração:
que me cole a língua ao paladar!
 
Ó devastadora filha de Babel,
feliz quem devolver a ti
o mal que me fizeste!
 
Não pedirei mais
perdão às virtudes do passado.
Repetirei, em desassombro
— se eu me lembrar de ti, Jerusalém —,
com os que diziam:
“Arrasai-a!
Arrasai-a até os alicerces!”
 
 
 
A ESTRELA FRIA
 
 
There’s no there there.*
 
 
I
 
O verão era permanente.
Tanto fazia: alegria e dor
tinham
o calor do meio-dia.
 
 
II
 
De primeiro, era o
sol
que em Pernambuco leva dois sóis **
e aterrisa de chofre
sobre a palha da cana
sobre a cabroeira do eito,
imundas,
ao arrepio da carícia
das geladeiras,
ao largo de azulejos
azuis.
 
Depois
é trinado de cancão
no salão de barbeiro
suor do descamisado
capinado
o descampado.
 
Não há crepúsculo
mas o rangido do sol a pino
varrendo a sombra
e a árvore:
quintal pelado.
 
De longe,
a infância queima:
ela é a luz de uma estrela fria.
 
 
III
 
      e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.***
 
 
Quando o medo andava pelas ruas,
era apenas ele, nosso pai e nosso companheiro:****
entrava na padaria, passeava o cachorro,
pousava a mão no meu ombro.
 
Na minha infância já não se morria de tifo,
mas havia o medo,
sufocando-me durante as noites,
com lágrimas
e o travesseiro.
 
 
IV
 
Vou não.
Pego tudo e sacudo fora:
avoo no mato.
 
 
V
 
O sol de Sócrates amanhece lúcido, vigilante:*****
não é o meu.
Teço apenas o fiozinho de um desejo
que escreve letras tortas por linhas incertas.
Às vezes bobeio, quando os meus olhos abrigam os ermos
                                                                                             [da infância.
Morei no Zumbi, um lugar que sumiu.
Perdi a pátria nos trilhos sonolentos do bonde de Caxangá.
 
 
VI
 
Os adjetivos mastigam metáforas que desafinam:
há muito não vejo um rosto na multidão
e, qual Ulisses, volto a escutar a minha própria história
tangida pela memória de um outro
que com o tato de hoje identifico,
frente a uma tarde
quando aprendi a ver.
 
Eu era um signo opaco,
menino chutando pedra
no oco do mundo,
liberto de escolhas,
entre o ócio e o espanto.
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*autores das citações no poema “a estrela fria”:
 
* Gertrude Stein
** João Cabral de Melo Neto
*** Carlos Drummond de Andrade
**** Murilo Mendes
***** Carlos Drummond de Andrade

LIVRO DO ÊXODO: A FUGA DOS SONHOS
7 de junho de 2011

como quem traz nas mãos uma estilhaçada louça de família, louça que, por ser de família, agrega valores sentimentais, trago estas crianças perdidas, dispostas em verso.
 
(a pátria delas é só memória, a pátria delas é lamento escrito às pressas, num muro derrubado.) 
 
são dura substância, essas crianças, porém o riso ainda lateja em seus olhos mudos.
 
o riso: lagarto absurdo, pastoreando os sonhos infantis.
 
para ver o riso consentido dessas perdidas crianças, bastaria a paz da mesa posta ao fim da tarde e o pátio que lhes foi roubado.
 
para ver o riso consentido — lagarto absurdo, pastoreando sonhos — dessas perdidas crianças, bastaria um lar-pátria que não fosse só memória, um lar-pátria materializado, real.
 
a paz da mesa posta ao fim da tarde & o pátio, roubados das crianças perdidas:
 
uma menina no semáforo.
 
a menina, no amarelo, expõe sua dura & pobre pele pagã preta pequenina, quase escondida na caixa de papelão.
 
no vermelho, a menina espalha seus olhos brancos baços & brandos, velhos olhos de batalha, no branco dos olhos alheios.
 
no verde, carros buzinam, insistentes, e a menina, no seu vestidinho de algodão, brinca sem pressa.
 
os carros & suas buzinas apressadas, buzinas impacientes, buzinas intransigentes: são como dinossauros distantes, são como tanques de guerra, para os que passam resguardados pelos vidros escuros. os carros, vistos como máquinas mortíferas, são uma ilusão que os vidros escuros resguardam dos que passam, e não uma ilusão da menina que brinca & que pede no semáforo.
 
à menina, os carros que buzinam, insistentes, parecem apenas carros, os carros que buzinam, insistentes, impacientes, intransigentes, parecem o que são: veículos de transporte.
 
até porque os carros, mesmo sendo, na ilusão dos seus motoristas, tanques de guerra, os carros são roubados todos os dias. pessoas também.
 
os beijos, infelizmente, é que não são mais roubados como antigamente.
 
sonhos sufocam em ônibus lotados, morrem nos estômagos vazios, migram aos bandos, feito pássaros.
 
deixam rastros (os sonhos-pássaros) e não há quem os siga.
 
de qualquer modo, eu insisto no vício da esperança:
 
sigamos os rastros dos nossos sonhos, tenhamos uma existência salutar!
 
beijo todos!
paulo sabino. 
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(do livro: Olhos de cadela. autora: Ana Mariano. editora: L&PM.)
 
 
 
SEMÁFORO
 
A menina, no amarelo,
expõe a pele pagã.
Pele dura, pele pobre,
pobre pele pura e preta,
pequena,
quase escondida
na caixa de papelão.
 
No vermelho, ela espalha,
devagar, seus olhos brancos
no branco dos olhos meus.
Olhos baços, olhos brandos,
velhos olhos de batalha.
 
No verde, a menina brinca
sem pressa, vestidinho de algodão.
Carros buzinam, insistentes.
São dinossauros distantes,
tanques de guerra, ilusão
que vidros escuros resguardam
dos que passam, dela não.
 
 
 
CONVERSA DE AVÓ
 
Não se roubam beijos como antigamente.
Pessoas, sim. Carros, todo o dia.
Sonhos sufocam em ônibus lotados,
morrem aos bandos, feito pássaros.
Deixam rastros (não há quem siga).
 
 
 
LIVRO DO ÊXODO
 
Como quem traz nas mãos uma estilhaçada louça de família,
trago essas crianças perdidas,
entre andores e imagens.
Seus vizinhos,
pessoas comuns, morando ali na esquina,
as arrancaram de casas invisíveis
onde havia uma cidade, um povoado.
Sua pátria é só memória,
lamento escrito às pressas
num muro derrubado.
São dura substância, essas crianças.
O riso lateja ainda em seus olhos mudos.
Posso senti-lo, lagarto absurdo, pastoreando sonhos.
Bastaria, para vê-lo consentido,
a paz da mesa posta ao fim da tarde
e o pátio que lhes foi roubado.
Crianças arrancadas continuam.
Insistem no vício da esperança.

POESIA: O DELÍRIO DO VERBO
13 de dezembro de 2010

poesia é  voar “fora da asa”, é voar absurdamente, é voar um vôo de delírio.

as coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis. elas, as coisas, desejam ser olhadas de azul — desejam ser olhadas diferentemente, por ângulos inopinados, por lentes inventivas, por vistas delirantes.

poesia é voar fora da asa, dando asas à imaginação alucinada.

há de se buscar a alucinação no começo do verbo: lá quando criança, quando na infância, fase apta a inventividades.

no descomeço, isto é, no “não-começo”, ou seja, antes do começo — numa alusão à criação do mundo —, era o verbo (a palavra do criador). nada mais existia, a não ser o verbo dando voz às façanhas mundanas.

só depois de tudo aprontado, tudo aqui disposto, só depois de nomeadas as façanhas mundanas, veio o delírio do verbo.

e o delírio do verbo estava lá no começo de tudo (logo depois do descomeço, logo após a nomeação das coisas), quando começamos a nos dar conta do entorno que nos cerca, deste mundo ao qual pertencemos:

quando crianças, quando na infância, fase apta a inventividades.

por exemplo:

a criança pode dizer: eu escuto a cor dos passarinhos. 

a criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para o som.

o verbo tem a sua função alterada, e a partir da alteração, delira.

em poesia, o verbo tem que pegar delírio. se não, não acontece.

(o grande serviço que o desconhecimento, que o não-saber, pode prestar: um estado de início, primordial, um estado de infância, de desconhecimentos que acendem luzes.)

as coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis, medianas.

tipo:

uma criança observa o rio que fazia uma volta por detrás da sua casa. a imagem que tinha era a de um vidro mole que fazia uma volta atrás da sua casa, era a de uma cobra de vidro que fazia sua curva & que seguia seu rumo, macio corpo vítreo-sinuoso.

um dia, um homem disse à criança que a volta que o rio fazia por detrás da sua casa se chama “enseada”. à criança, ficou o fato de que, então, o rio, não mais a imagem duma cobra de vidro mole a serpear pelo quintal da sua casa. aquilo passou a ser uma “enseada”.

e o nome, “enseada”, certamente empobreceu a imagem delirante, a imagem em condições infantis…

(com esta pobreza, a poesia não pode interagir.)

em poesia, há de haver o delírio do nome, a alucinação do verbo, sempre!

lembrem-se: as coisas devem ser vistas não por olhares razoáveis, e sim por olhares excêntricos, por olhares alucinados, em delírio.

vamos comer poesia, pelo bem da alma!

beijo bom em vocês!
paulo sabino.  
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(do livro: O livro das ignorãças. autor: Manoel de Barros. editora: Record.)

VII

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.

XIII

As coisas não querem mais ser vistas por pessoas
razoáveis:
Elas desejam ser olhadas de azul —
Que nem uma criança que você olha de ave.

XIV

Poesia é voar fora da asa.

XIX

O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a
imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás
de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta que o
rio faz por trás de sua casa se chama enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que
fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.

EXERCÍCIO MARINHO
27 de outubro de 2010

um exercício:

despir-se das roupas, das convicções, dos amores insolúveis, quando junto do mar.

a única roupa a vestir o corpo: a areia branca.

a única convicção: caminhar rumo ao mar, entre as conchas.

para, então, mergulhar fundo na placenta do mundo.

o mar: a grande placenta do mundo.

costumo dizer que o mar é um útero às vistas.

o primeiro indício de vida veio da água.

o primeiro momento das nossas vidas passamos numa enorme bolsa líquida.

os primeiros impulsos nervosos se fazem quando imersos num mundo líquido.

o parto de uma criança na água é uma modalidade de nascimento que procura trazer o bebê ao mundo exatamente como ele estava quando no útero.

por isso, concluo, sempre que imerso em águas calmas, sejam de mar ou de um rio caudaloso, estar no conforto de um útero.

eu realmente — isto é uma viagem minha, senhores (rs) — acredito que a água nos resgate sensações uterinas, sensações geradas pelos impulsos nervosos quando ainda somos crianças em desenvolvimento — de uma gestação feliz & desejada —. creio que estar imerso em água nos conecte àquelas sensações primordiais, de segurança, de tranqüilidade, de eterna paz, que sinto quando “me deixo deitado”, isto é, quando me deixo boiando, de olhos fechados, cabeça esvaziada, completamente despido de convicções, amores & preocupações, ligado apenas no doce balanço das águas que levam ao léu.

(e eu vou, na bubuia eu vou…)

adoro estar junto da água justamente por ela gerar sensações que me parecem primárias, que me parecem recuperadas dos primórdios, recuperadas de quando ainda acomodados no ventre materno.

pratique-se o exercício, delicioso. é uma espécie de meditação.

beijo bom & sereno, beijo calmo, em todos.
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Enquanto velo teu sono. autor: Adalberto Müller. editora: 7Letras.)

EXERCÍCIO MARINHO

                                                         A Orlando Seara

Dispa-se das roupas
das convicções
dos amores insolúveis.

Deixe a areia branca
entrar pelos dedos.
Caminhe resoluto
entre as conchas.

Quando a água fria
alagar a virilha,
mergulhe fundo,
infantilmente,
na placenta do mundo.

AS GRANDEZAS DO ÍNFIMO
21 de maio de 2010

senhores,
 
eis, aqui, parte de um tratado geral das grandezas do ínfimo (do desimportante, do quase nada), formulado por um poeta.
 
diz-se que há, na cabeça dos poetas, um parafuso a menos.
 
o mais justo, no entanto, seria dizer que o poeta tem um parafuso trocado ao invés de um a menos.
 
a troca de parafusos provoca nos poetas uma certa “disfunção lírica”.
 
“disfunção lírica”: mais do que o mau funcionamento, mais do que o distúrbio, a disfunção é a função desobrigada de função. é a função inútil, que serve para: nada.
 
a partir da “disfunção lírica” o poeta elege as suas importâncias (alguém saberia medir a importância das coisas?): as importâncias do manoel: o que está nos chãos, nas frestas, nos musgos, nos barros: as grandezas do ínfimo.
 
entre elas:
 
o cisco, que, segundo o dicionário houaiss, pode significar: 1) pó ou miudezas do carvão. 2) lixo. 3) material sólido e heterogêneo (gravetos, ramos, algas etc.) trazido pelas enxurradas. 4) designação comum às aparas miúdas (…).
 
os passarinhos e tudo o que é necessário para compor um tratado sobre eles.
 
(essas disfunções líricas acabam por dar mais importância aos passarinhos do que aos senadores.)
 
a poesia, guardada nas palavras (é tudo o que sabe o poeta).
 
(poesia é uma graça verbal.)
 
o retorno à infância, que traz ao ser a sua ascensão. (é quando se vê como o adulto é sensato!)
 
as coisas inúteis (que garantem a soberania do Ser). 
 
dedico este apanhado poético a dois irmãos, dois anjos, amigos a quem recorro, com quem choro, e que admiro: césar guerra chevrand & flávio chedid
 
na noite da quarta-feira passada (19/05), reunimo-nos os três na casa do flavinho (onde derrubamos uma garrafa de jack daniel’s – rs) para um dos tantos encontros já ocorridos, encontros para colocarmos os nossos assuntos & interesses em dia.
 
e, como sempre, foi MARAVILHOSO.
 
flavinho, como eu, possui o livro de onde saltaram os poemas. li, durante o encontro, boa parte dos textos que seguem.
 
meninos (flavinho & césar): obrigadíssimo. por tudo. como lhes disse na quarta, e que fique registrado: vocês são peças-chaves, fundamentais na minha existência.
 
(que bom!)
 
beijo nos dois!
o preto de vocês.
 
outro nos senhores!
paulo sabino / paulinho.  
_________________________________________________________________________
 
(do livro: Poesia Completa. autor: Manoel de Barros. editora: Leya / Texto Editores.)
 
 
A DISFUNÇÃO
 
Se diz que há na cabeça dos poetas um parafuso de
a menos
Sendo que o mais justo seria o de ter um parafuso
trocado do que a menos.
A troca de parafusos provoca nos poetas uma certa
disfunção lírica.
Nomearei abaixo 7 sintomas dessa disfunção lírica.
1– Aceitação da inércia para dar movimento às
palavras.
2 — Vocação para explorar os mistérios irracionais.
3 — Percepção de contiguidades anômalas entre
verbos e substantivos.
4 — Gostar de fazer casamentos incestuosos entre
palavras.
5 — Amor por seres desimportantes tanto como pelas
coisas desimportantes.
6 — Mania de dar formato de canto às asperezas de
uma pedra.
7 — Mania de comparecer aos próprios desencontros.
Essas disfunções líricas acabam por dar mais
importância aos passarinhos do que aos senadores.
 
 
DE PASSARINHOS
 
Para compor um tratado sobre passarinhos
É preciso por primeiro que haja um rio com árvores
e palmeiras nas margens.
E dentro dos quintais das casas que haja pelo menos
goiabeiras.
E que haja por perto brejos e iguarias de brejos.
É preciso que haja insetos para os passarinhos.
Insetos de pau sobretudo que são os mais palatáveis.
A presença de libélulas seria uma boa.
O azul é muito importante na vida dos passarinhos
Porque os passarinhos precisam antes de belos ser
eternos.
Eternos que nem uma fuga de Bach.
 
 
TRIBUTO A J. G. ROSA
 
Passarinho parou de cantar.
Essa é apenas uma informação.
Passarinho desapareceu de cantar.
Esse é um verso de J. G. Rosa.
Desapareceu de cantar é uma graça verbal.
Poesia é uma graça verbal.
 
 
O CISCO
 
(Tem vez que a natureza ataca o cisco para o bem.)
Principais elementos do cisco são: gravetos, areia,
cabelos, pregos, trapos, ramos secos, asas de mosca,
grampos, cuspe de aves, etc.
Há outros componentes do cisco, porém de menos
importância.
Depois de completo, o cisco se ajunta, com certa
humildade, em beiras de ralos, em raiz de parede,
Ou, depois das enxurradas, em alguma depressão de
terreno.
Mesmo bem rejuntado o cisco produz volumes quase
sempre modestos.
O cisco é infenso a fulgurâncias.
Depois de assentado em lugar próprio, o cisco
produz material de construção para ninhos de
passarinhos.
Ali os pássaros vão buscar raminhos secos, trapos,
asas de mosca
Para a feitura de seus ninhos.
O cisco há de ser sempre aglomerado que se iguala
a restos.
Que se iguala a restos a fim de obter a contemplação
dos poetas.
Aliás, Lacan entregava aos poetas a tarefa de
contemplação dos restos.
E Barthes completava: Contemplar os restos é
narcisismo.
Ai de nós!
Porque Narciso é a pátria dos poetas.
Um dia pode ser que o lírio nascido nos monturos
empreste qualidade de beleza ao cisco.
Tudo pode ser.
Até sei de pessoas que propendem a cisco mais do
que a seres humanos.
 
 
INFANTIL
 
O menino ia no mato
E a onça comeu ele.
Depois o caminhão passou por dentro do corpo do
menino
E ele foi contar para a mãe.
A mãe disse: Mas se a onça comeu você, como é que
o caminhão passou por dentro do seu corpo?
É que o caminhão só passou renteando meu corpo
E eu desviei depressa.
Olha, mãe, eu só queria inventar uma poesia.
Eu não preciso de fazer razão.
 
 
ASCENSÃO
 
Depois que iniciei minha ascensão para a infância,
Foi que vi como o adulto é sensato!
Pois como não tomar banho nu no rio entre pássaros?
Como não furar lona de circo para ver os palhaços?
Como não ascender ainda mais até na ausência da voz?
(Ausência da voz é infantia, com t, em latim.)
Pois como não ascender até a ausência da voz —
Lá onde a gente pode ver o próprio feto do verbo —
ainda sem movimento.
Aonde a gente pode enxergar o feto dos nomes —
ainda sem penugens.
Por que não voltar a apalpar as primeiras formas da
pedra. A escutar
Os primeiros pios dos pássaros. A ver
As primeiras cores do amanhecer.
Como não voltar para onde a invenção está virgem?
Por que não ascender de volta para o tartamudo!
 
 
POEMA
 
A poesia está guardada nas palavras — é tudo que
eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as
insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.
 
 
SOBRE IMPORTÂNCIAS
 
Uma rã se achava importante
Porque o rio passava nas suas margens.
O rio não teria grande importância para a rã
Porque era o rio que estava ao pé dela.
Pois Pois.
Para um artista aquele ramo de luz sobre uma lata
desterrada no canto de uma rua, talvez para um
fotógrafo, aquele pingo de sol na lata seja mais
importante do que o esplendor do sol nos oceanos.
Pois Pois.
Em Roma, o que mais me chamou atenção foi um
prédio que ficava em frente das pombas.
O prédio era de estilo bizantino do século IX.
Colosso!
Mas eu achei as pombas mais importantes do que o
prédio.
Agora, hoje, eu vi um sabiá pousado na Cordilheira
dos Andes.
Achei o sabiá mais importante do que a Cordilheira
dos Andes.
O pessoal falou: seu olhar é distorcido.
Eu, por certo, não saberei medir a importância das
coisas: alguém sabe?
Eu só queria construir nadeiras para botar nas
minhas palavras.
 
 
O CATADOR
 
Um homem catava pregos no chão.
Sempre os encontrava deitados de comprido,
ou de lado,
ou de joelhos no chão.
Nunca de ponta.
Assim eles não furam mais — o homem pensava.
Eles não exercem mais a função de pregar.
São patrimônios inúteis da humanidade.
Ganharam o privilégio do abandono.
O homem passava o dia inteiro nessa função de catar
pregos enferrujados.
Acho que essa tarefa lhe dava algum estado.
Estado de pessoas que se enfeitam a trapos.
Catar coisas inúteis garante a soberania do Ser.
Garante a soberania de Ser mais do que Ter.

A ARTE PARA AS CRIANÇAS
22 de setembro de 2009

porque, no fundo, não passamos de velhas crianças — que bom! a notar pelo segundo texto que segue (rs).
 
beijo nocês tudo!
paulo sabino / paulinho.
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A arte para as crianças 
 
Ela estava sentada numa cadeira alta, na frente de um prato de sopa que chegava à altura de seus olhos. Tinha o nariz enrugado e os dentes apertados e os braços cruzados. A mãe pediu ajuda:
 
Conta uma história para ela, Onélio —. Pediu — Conta, você que é escritor…
 
E Onélio Jorge Cardoso, esgrimindo a colher de sopa, fez seu conto:
 
Era uma vez um passarinho que não queria comer a comidinha. O passarinho tinha o biquinho fechadinho, fechadinho, e a mamãezinha dizia: “Você vai ficar anãozinho, passarinho, se não comer a comidinha”. Mas o passarinho não ouvia a mamãezinha e não abria o biquinho… 
 
E então a menina interrompeu:
 
Que passarinho de merdinha — opinou.
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Crônica da cidade de Havana
 
Os pais tinham fugido para o Norte. Naquele tempo, a revolução e ele eram recém-nascidos. Um quarto de século depois, Nelson Valdés viajou de Los Angeles a Havana, para conhecer seu país.
 
A cada meio-dia, Nelson tomava o ônibus, a guaga 68, na porta do hotel, e ia ler livros sobre Cuba. Lendo passava as tardes na biblioteca José Martí, até que a noite caía.
 
Naquele meio-dia, a guaga 68 deu uma violenta freada num cruzamento. Houve gritos de protesto, pela tremenda sacudida, até que os passageiros viram o motivo daquilo tudo: uma mulher prodigiosa, que tinha atrevessado a rua.
 
— Me desculpem, cavalheiros — disse o motorista da guaga 68, e desceu. Então todos os passageiros aplaudiram e lhe desejaram boa sorte.
 
O motorista caminhou balançando, sem pressa, e os passageiros viram como ele se aproximava da saborosa mulher que estava na esquina, encostada no muro, lambendo um sorvete. Da guaga 68 os passageiros seguiam o ir-e-vir daquela lingüinha que beijava o sorvete enquanto o motorista falava sem resposta, até que de repente ela riu, e brindou-lhe um olhar. O motorista ergueu o polegar e todos os passageiros lhe dedicaram uma intensa ovação.
 
Mas quando o chofer entrou na sorveteria, produziu-se uma certa inquietação generalizada. E quando depois de um instante saiu com um sorvete em cada mão, espalhou-se o pânico nas massas.
 
Tocaram a buzina. Alguém grudou-se na buzina com alma e vida, e tocou a buzina como alarme de roubos ou sirena de incêndios; mas o motorista, surdo, continuava grudado na perigosa mulher.
 
Então avançou, lá dos fundos da guaga 68, uma mulher que parecia uma bala de canhão e tinha cara de mandona. Sem dizer uma palavra, sentou-se no assento do chofer e ligou o motor. A guaga 68 continuou sua rota, parando nos pontos habituais, até que a mulher chegou no seu próprio ponto e desceu. Outro passageiro ocupou seu lugar, durante um bom trecho, de ponto em ponto, e depois outro, e outro, e assim a guaga 68 continuou até o fim.
 
Nelson Valdés foi o último a descer. Tinha esquecido a biblioteca.
 
(Textos extraídos da obra O livro dos abraços, de Eduardo Galeano, e tradução de Eric Nepomuceno)

ALCUNHA: CRIANÇA
17 de agosto de 2009

pessoas,
 
esta mensagem segue por conta daqueles estímulos que os amigos são capazes de despertar. há algum tempo, recebi um e-mail do meu querido daniel perez, que colocou um poema, pelo qual fiquei completamente apaixonado, no final do seu texto. quando li o nome do autor, uma sensação boa logo se instaurou: trata-se de um grande poeta da literatura infanto-juvenil, lindo lindo lindo, chamado leo cunha.
 
grande autor, este é um poeta para todos os pimpolhos.
 
para todos os pimpolhos mesmo: porque, sabemos todos, podemos cultivar e conservar a criança que bate dentro do peito, dando-nos, por sua presença, novas alcunhas e senhas para enxergarmos o mundo. ao meu ver, a melhor das alcunhas que podemos ter.
 
então, para os ‘pequenos’ de quaisquer tamanho e idade, segue um pouco de poesia infanto-juvenil.
 
beijo em vocês, crianças!
o preto,
paulo sabino,
ou, infornalmente, paulinho.
________________________________
 
(todos os poemas = leo cunha)
 
 
ESCULTOR

Para quem olha a pedra dormindo
e escuta seus sonhos.

Para quem olha a pedra sorrindo
e rouba seu coração.

Para quem olha a pedra olhando
seus olhos no espelho.

Para quem vê a pedra criando
vida em sua mão.

 
  
CLARO E ESCURO

O bebê morcego
tem medo
do claro.

Só dorme de lua
apagada
e estrelas caladas
piscando no céu.
 

  
TOM SOBRE TOM

Vovó Violeta
bordou uma jaqueta
bordô
com linha vinho.
Aliás, lilás…
 
 
BAGUNÇA

Bagunça rima com criança,
bagunça é prima da lambança,
bagunça dança, bailarina,
começa e nem sempre termina,
bagunça mansa,
essa menina,
descansa de pança pra cima.
  
  
ESTILOS

Nadar de borboleta
não é nada.

Bom mesmo é voar feito a danada.

 
  
CASTIGO

Podem me prender no quarto,
eu saio pela janela.

Podem trancar a janela,
eu fujo pelo telefone.

Podem cortar o telefone,
eu pulo dentro de um livro.
 

  
CONVERSANDO COM A TELA

“Você quer folhear o meu cabelo?
É muito fácil fazê-lo!

“Não. Quero dar um puxão de orelha, deixa,
só pra ler sua bochecha.
 

A GIRAFA VIDENTE

Com

aquele

pescoço

comprido

espicha

espicha

espicha

a bicha

até parecia

que via

o dia de amanhã
 

 
PAIXÃO ELETRÔNICA?
 
vidrei no video
 
gamei no game
 
porém do livro
 
não me livrei