O ÚNICO LIVRO: ÁGUA CORRENTE
29 de outubro de 2010

Sempre pensara em ir
caminho do mar.
Para os bichos e rios
nascer já é caminhar.
Eu não sei o que os rios
têm de homem do mar;
sei que se sente o mesmo
e exigente chamar.

(trecho do poema “o rio”, de joão cabral de melo neto, do livro “serial e antes”.)
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as tantas escrituras sacras que tentam dar conta de explicar o mundo e a existência humana:

os vedas, escritos sagrados do hinduísmo,

o evangelho, obra sagrada do cristianismo,

o alcorão, livro sagrado do islamismo,

mais os livros dos mongóis, seguidores do budismo,

ergueram, juntos, uma pira de poeira rasteira & estrume seco. por sobre a pira, pousaram. e ali permaneceram.

ergueram as escrituras sacras uma pira de poeira rasteira & estrume ressequido: pira que, pelo menos a mim, não serve. (creio que nem para “nada” sirva.)

somente um livro deve ser lido, um único livro consegue dar conta do assunto em questão.

o gênero humano é o leitor do livro.

um livro único, cujas páginas são maiores que o mar, tremem como asas de borboletas (viúvas brancas).

um livro em cujas folhas a baleia salta quando a águia, dobrando a página no canto, desce sobre as ondas, para, após, repousar no leito de um falcão marinho.

nesse livro, lições de uma lei divina: a lei da vida, a lei da natureza, das mudanças constantes, imorredouras.

sobre tudo,

o olhar dos homens, o olhar de cada qual a ler os seus rios, sempre a passar, o olhar peculiar de cada um a vivenciar os seus rios, as suas águas a seguir.

é só pensarmos nos grandes rios do planeta e nos seus homens, e nos seus modos de existir junto a eles, junto aos rios:

o volga, o maior rio da europa; o danúbio, o segundo maior do continente; o yang-tze-kiang, também chamado rio azul, o maior rio da ásia; o nilo, na áfrica, que só perde em extensão para o amazonas; o mississípi, o segundo maior dos estados unidos, que, juntamente ao rio missouri, forma a maior bacia hidrográfica do país; o ganges, um dos principais rios da índia; o zambeze, rio da áfrica austral, que possui as maiores quedas d’água do mundo, as cataratas vitória; o rio óbi, o quarto mais longo da rússia, rio que deságua no mar ártico; o tâmisa, que passa por londres e desemboca no mar do norte, rio de grande importância para a região.

todos esses grandes rios & os seus homens com os seus modos de existir, com a leitura que fazem das suas existências hídricas.

o gênero humano é o leitor do livro, é o leitor do mundo que corre aos seus olhos, é o leitor do mundo que enxerga, e que o abriga. na capa do livro, o timbre do artífice, do criador: o nome de cada um, em caracteres azuis, cor celestial.

o livro único: anos, países, povos, fogem no tempo, como água corrente. a natureza é um espelho móvel. e os deuses: visões da treva.

leiamos com cuidado, carinho & atenção o livro único, volume onde escrevemos os nossos enredos.

já disse o poeta casimiro de brito:

Único livro que não se pode reler: o da vida.

grande beijo!
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Poesia Russa Moderna. organização e tradução: Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman. editora: Perspectiva.)

(autor: Vielimir Khlébnikov.)

Anos, países, povos
Fogem no tempo
Como água corrente.
A natureza é espelho móvel,
Estrelas — redes; nós — os peixes;
Visões da treva — os deuses.

(tradução: Augusto de Campos.)
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O ÚNICO LIVRO

Vi que os negros Vedas,
o Evangelho e o Alcorão,
mais os livros dos mongóis
em suas tábuas de seda
— como as mulheres calmucas todas as manhãs —
ergueram juntos uma pira
de poeira da estepe
e odoroso estrume seco
e sobre ela pousaram.
Viúvas brancas veladas numa nuvem de fumo,
apressavam o advento
do livro único,
cujas páginas maiores que o mar
tremem como asas de borboletas safira,
e há um marcador de seda
no ponto onde o leitor parou os olhos.
Os grandes rios com sua torrente azul:
— o Volga, onde à noite celebram Rázin;
— o Nilo amarelo, onde imprecam, ao Sol;
— o Yang-tze-kiang, onde há um denso lodo humano;
— e tu, Mississípi, onde os ianques
trajam calças de céu estrelado,
enrolando as pernas nas estrelas;
— e o Ganges, onde a gente escura são árvores de ciência;
— e o Danúbio, onde em branco homens brancos
de camisa branca pairam sobre a água;
— e o Zambeze, onde a gente é mais negra que uma bota;
— e o fogoso Óbi, onde espancam o deus
e o voltam de olhos para a parede
quando comem iguarias gordurosas;
— e o Tâmisa, no seu tédio cinza.
O gênero humano é o leitor do livro.
Na capa, o timbre do artífice —
meu nome, em caracteres azuis.
Porém tu lês levianamente;
presta mais atenção:
és por demais aéreo, nada levas a sério.
Logo estarás lendo com fluência
— lições de uma lei divina —
estas cadeias de montanhas, estes mares imensos,
este livro único,
em cujas folhas salta a baleia
quando a águia dobrando a página no canto
desce sobre as ondas, mamas do mar,
e repousa no leito do falcão marinho.

(tradução: Haroldo de Campos.)