o primeiro contato que tive com caio fernando abreu foi através do seu livro de contos intitulado “morangos mofados”. fiquei maravilhado, aturdido, fascinado, louco com aquilo que acabara de ler.
de lá para cá minha relação com o escritor foi construída passo a passo, obra a obra, sempre contente com o que era descoberto por mim.
porém, foi com o livro de onde provém o texto de hoje que o caio me “ganhou” definitivamente.
a obra foi organizada pelo super poeta, pesquisador e professor italo moriconi. trata-se de uma espécie de “biografia”, montada a partir das missivas enviadas por caio fernando abreu a seus amigos (o autor tinha esse hábito, gostava muito de escrever cartas).
acho este um dos mais belos livros que já li.
como se trata da correspondência pessoal, o escritor desnuda, sem pudores, todas as suas facetas: seus medos e inseguranças, sua lucidez ante a face suja da vida, sua vontade crescente de solidão, suas imensas generosidade, inteligência e irreverência. senti-me tão encantado pela obra, apropriadamente chamada “cartas”, que — santo deus, como estou confessional (rs)… — me enamorei por ele, por caio fernando abreu, pelo que se mostrava nas linhas. sei que é maluquice, que é insano, mas dou-me direito a essas sandices no imaginário. afinal, de perto, senhores, ninguém é normal. 😉
enfim, enamorei-me pelo escritor e achava, muito resignado (rs), uma grande sacanagem da vida a minha falta de oportunidade de conhecê-lo.
em “cartas”, uma coisa que fica clara é o período (largo) de descrença nas pessoas, de desgosto com as atrocidades mundanas, de desejo cada vez maior de isolar-se de tudo e todos, de isolar-se com seus livros e discos. isso me matava, me doía. pensava: “um homem tão bom, tão bacana, tão do bem, não merecia tanta hostilidade, tanto descuido…” batia-me o ensejo de cuidar dele, de reverter esse quadro (rs).
caio fernando abreu adorava uma canção chamada “mesmo que seja eu”, da dupla dinâmica erasmo & roberto carlos, na voz da cantora & compositora marina lima.
adoraria dizer para ele, poderia ser brincando, descompromissadamente, um dos versos dessa canção:
caio,
eis aqui o paulo sabino: um homem pra chamar de seu (rs rs rs).
o livro de poemas que pretendo lançar este ano, no segundo semestre, é dedicado a ele, entre outros.
hoje em dia, acho engraçado — e bonito, comovente — que tivesse vivenciado desse modo, durante um bom período, o meu carinho, o meu amor, por ele.
a seguir, uma das cartas que mais me emocionam. uma lindíssima declaração de amizade, bondade e inteligência, coberta e recheada do seu divertido humor.
caio fernando abreu afirma:
Estou sempre preocupado com a ética, com a beleza, com a dignidade.
Gosto de pessoas doces, de situações claras.
eu também. por isso, por tanto,
caio fernando abreu: um homem pra chamar de meu.
e de vocês.
aproveitem-no!, aproveitem a (despretensiosa, generosa & sábia) lição de vida.
beijo bom em todos,
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Cartas. organização: Italo Moriconi. autor: Caio Fernando Abreu. editora: Aeroplano.)
A Guilherme de Almeida Prado
Paris, 12 de abril de 1994
Querido Guila,
escrevo “querido” porque — você sabe? — realmente gosto muito de você. Não esqueça disso.
Voltei sábado de Saint-Nazaire, de onde te enviei um cartão (pedindo o endereço/ telefone de Gianni em Lisboa). Ao chegar encontrei teu cartão.
Eternamente Bambi, abri todo saltitante — foi o primeiro que recebi do Brasil, e desde que saí, há mais de mês, não tive notícias daí. Então levei um choque. Deus, quanta hostilidade! Fechei o cartão e só reabri hoje, depois de muito pensar se devia uma resposta ou não. Porque realmente-gosto-muito-de-você, acho que sim.
Ô Guila, calma lá! acho um pouco ridículo um bate-boca transoceânico, mas não consigo ficar com essas coisas atravessadas. Então:
1º fui injusto — um pouco — ou excessivo com você. Ma non troppo.
Como te disse, voltei a SP ano passado, após dez meses de ausência, sem trabalho, sem casa nem nada. Discretamente, enviei sinais de socorro aos amigos. Ninguém ajudou. Me virei sozinho. Isso me endureceu um pouco mais. Não foi só você, não. Foram também pessoas até mais íntimas, como Jacqueline. Eternamente Bambi, me virei sozinho com enormes dificuldades. Não me lamuriei. Mas preciso que as pessoas saibam que isso doeu — exatamente porque algumas destas pessoas, como você ou Jacqueline, importam para mim.
2º Cheguei em Paris preocupado com a minha violência, o meu “excesso”. Metade pelo menos provocada pelo álcool e pela excitação da viagem.
Pedi desculpas, com doçura,
3º Você me responde duramente. Escuta:
4º “Ar blasé” — não sei o que significa isso. Certa vez num grupo de psicanálise (fiz 14 anos, ganhei duas altas: acho que lido mais ou menos bem com meus demônios) uma garota disse que eu era “altivo”. Achei chique. Talvez você queira dizer “ar aristocrático”?
Bivar, que tem um olhar doce sobre o mundo, certa vez disse que eu parecia um príncipe — normando. Não sei por que “normando”, mas também achei bonito. Sou terrivelmente tímido e, na verdade, acho que tenho mais é um ar de cachorro surrado, daquele que levou muita porrada, passou fome, dormiu ao relento.
5º Eu “não resisto a uma baixaria bem brega”! Resisto sim. Tenho um passado hippie que me deixou muitas coisas boas. Estou sempre preocupado com a ética, com a beleza, com a dignidade. Sou educadíssimo, e fui criado de maneira muito católica, com toda aquela culpa de “maus” pensamentos, “más” ações, e uma terrível nostalgia da “bondade” (como a “Alice” do Woody Allen).
Gosto de pessoas doces, gosto de situações claras — e por tudo isso, ando cada vez mais só. É como me sinto melhor.
6º A propósito do parágrafo acima, hoje li um Wolinski chamado Les français me font rire que começa com esta frase: “Si tout le monde était comme moi, je n’aurais pas besoin de detester les autres!” (Tradução: “Se todos fossem como eu, eu não precisaria detestar os outros.”)
7º Amigos não “são para essas coisas”, não. Isso é um clichê detestável, significando quase sempre que amigo é saco de pancadas, é uma espécie de privada onde o outro pode jogar dejetos, detritos imundos e dar a descarga. Amigos são para dividir o bom e o mal, mas também para deixarem as coisas sempre limpas entre eles — amigos devem ser solidários. Um dos meus maiores amigos, […], que vive em Paris há quase 30 anos e é soropositivo há 9 (mas graças a Deus saudabilíssimo), tem sempre a preocupação de ser útil aos amigos. Quase não fala, não envia flores, não escreve cartas — mas quando procurado está sempre ali, firme e cheio de informações práticas para ajudar a gente. Amigos são também para escrever cartas enormes e um tanto idiotas como esta, cheia de carências, porque gostam de outros amigos e não querem que as relações de amizade tombem nesse poço nojento de brutalidade e vulgaridade que viraram os anos 90.
É por isso que te escrevo, quase meio-dia, um sol raro lá fora. Guila, não me mande coisas assim raivosas. Eu não tenho anticorpos para esse tipo de coisa. Até hoje, um dos meus truques para sobreviver, mesmo não sendo mulher e nem sequer tendo cabelos, foi fazer o papel de “loura burra”. Deixei passar muita agressividade, muita humilhação — e não me refiro a você, mas estou farto. Fui vivendo minha vida de maneira tão solitária, conquistando minhas coisas tão no braço, tão sempre sem nada, que aprendi a ter uma enorme admiração por mim mesmo. Vou chegando muito perto dos 50 anos sem dever absolutamente nada a ninguém.
Então, nos últimos tempos — deve ser a meia-idade — comecei a ter uma sensação, digamos, de “direitos adquiridos”. Não agüento mais desaforo, e vou ficar pior, vou ficar, se Deus quiser, como Odete Lara, Greta Garbo, Fauzi Arap, Helen Lane — americana budista de 84 anos que conheci semana passada, e vive só numa cabana no Perigord, cercada apenas de livros e gatos. Ando exausto de seres humanos.
Guilherme, mon cher, precisamos — eu e você e todo mundo — tomar muito cuidado com esses tempos. São tempos de horror. Tudo fica ainda mais grave neste país de là-bas, como é o Brasil, e mais ainda numa cidade como São Paulo — onde a crise econômica, a corrupção, a violência, a falta de futuro, a miséria material foi gerando sem que as pessoas percebessem também uma miséria psicológica, uma miséria espiritual ainda mais terrível e mais patética. São Paulo virou um grande salve-se-quem-puder: ninguém ajuda ninguém. E se as pessoas como nós — os “especiais”, os cineastas, os escritores, os músicos, os poetas: a gente que tenta criar beleza e dignidade — também começarem a agir dessa maneira, então vale mais a pena a casinha pobre de Dulce Veiga no meio do mato, as panelas arrebentadas em que Odete Lara uma vez cozinhou arroz integral para mim. Compreende?
Devo estar chatíssimo, mais “blasé” do que nunca, com todo esse texto parecendo discurso do Partido Verde… Et voilá: sou também um pouco tolo, um pouco naive, um pouco pêra — e eternamente Bambi. Quando a barra pesa, compro flores e ouço Mozart. Não creio que isso seja gostar de uma “baixaria bem brega”. Além disso, essa linguagem rasteira absolutamente não combina com você — um von Almeida Prado!
Sinto que o Brasil tenha ficado “ainda mais medonho” sem mim. Em compensação, a França parece ter ficado ainda mais encantadora comigo. Os livros caminham lindamente, críticas ótimas nos jornais e revistas mais importantes, rádio, TV. Ontem — foi hilário — dei autógrafo na rua, em Saint-Germain des Prés, para um garoto — estranhamente chamado Damour — que viu um dos programas de TV, comprou os três livros, deu vários de presente. Cheguei na editora rindo: meu Deus, a Laika de São Paulo, a negra sem ter onde morar, vivendo com 500 dólares por mês, lavando roupa num balde sob o chuveiro, fazendo a feira toda sexta — dando autógrafo em Saint-Germain!
Por tudo isso, tenho me divertido muito, muito. Ontem, a poderosa de uma editora que recusou Dulce Veiga, após várias najices, me convidou para jantar no “Le Temp Perdu”, o melhor restaurante do Quartier Latin. Eu disse educadamente “não”, muitos compromissos, muitas viagens. Se gostasse de uma “baixaria bem brega”, aprontava uma grosseria em plena mesa de jantar. Mas não sou hipócrita, Guila. Não sei fazer “jogo social”. Até saberia, mas não me interessa, tenho preguiça. Como Dulce V., eu sempre quis só “outra coisa”, e vou chegando a um ponto em que tenho pensado se essa “coisa” não será a solidão mais completa — e se não ela, essa solidão idealizada, porrada de gatos, rosas, Mozart e livros, será quem sabe somente a morte. Há que ter paciência para esperar por ela, que é a única certeza entre todas as nossas ilusões tolas. “Ah, quando virás, cavalinha, montar meu dorso fatigado!” — dizia Hilda Hilst (60 anos no próximo dia 21) num poema de um livro chamado Da morte — Odes mínimas.
A propos: você já viu Short Cuts, do Altman? Não sei se chegou aí. Fiquei PARALISADO. Não é um bom filme: é genial, é uma radiografia, um corte tão profundo e impiedoso na sociedade americana e na alma humana que vale por ter vivido uns 20 anos. Ensina muito sobre a nossa loucura, a nossa vulgaridade, a nossa crueldade.
São de coisas assim que quero falar com você, meu amigo — cinema, literatura, música, vida. Que enorme desgaste trocar najices — gastar um cartão lindo daqueles (que vou ter que jogar fora, sorry, é muito ofensivo) mais selo, sem falar na produção sempre exaustiva de enfrentar os correios paulistanos — de hemisférios opostos. Ah, Guilherme, não me envie mais coisas assim. Não escreva nada, não nos procuramos mais: um dia nos cruzamos por acaso, de repente, e então vemos o que aconteceu a nossos rancores e reagimos de acordo com isso. Mas se você quiser me contar das suas funduras, e não apenas defender-se — e os amigos são, sim, para trocar abismos — então me escreva 10, 100 páginas, e eu responderei com calor, com carinho, com toda amizade que realmente sinto por você.
Continuo a sentir que Dulce Veiga é nossa, minha e sua. Te mando dois recortes simpáticos — um do L’Express, a Veja (com ética, claro) daqui. Outro do Les Inrockuptibles, uma revista chique e cult, um pouco como a A-Z dos bons tempos, mas com circulação bem maior. Divida isso comigo, tem um gosto bom.
Ah: se você tiver o endereço/ fone do Gianni seria maravilhoso. Pedi também a Cida Moreira, que precisaria pedir ao Ivan Mattos, que. E aí entra todo aquele mar de lama que você conhece, e que eu prefiro evitar.
Beije com carinho a divina Zu Val por mim: Zu, quero te ver cantando, com direito a muito jubão crespo, quando voltar. Diga a ela que, por aqui o Império do Bustiê também tem o seu poder. A diferença é que os bustiês são Gaultier, Channel e Yamamoto — embora para mim bustiê seja bustiê e pronto, no Champ Elysées ou Taboão da Serra.
E diga também ao Ricardo que mando um beijo. Cuide-se, fica feliz.
Je t’ embrasse
Caio F.