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(trecho do prefácio do livro: As rosas. autora do prefácio: Janice Caiafa.)
Nessas duas dúzias de rosas que Rilke reúne numa seqüência, temos uma homenagem atenta e minuciosa a essa flor. Rilke vai espreitar a rosa de perto, onde pétala toca pétala. São as rosas em sua própria constituição, em seu produzir-se — um tornar-se rosa (que por vezes é mesmo um desejo do poeta) — onde a troca com o fora dá ensejo a certas relações. Daí uma espécie de rosa-lugar onde é possível observar essas relações, onde incide o pensamento do poeta.
A rosa é completa e intacta, contudo está em expansão por seu caráter múltiplo — no desdobramento das pétalas e no perfume envolvente que vai longe, para atrair muito além do corpo da rosa. Por isso: rosas, consideradas na sua multiplicação, no plural, sendo que uma só já reflete todas. Nessa abundante perfeição, ela é Narciso realizado (“Narcise exaucé”), um Narciso que não está perdido em si mesmo, mas que se realiza no mundo.
A rosa é vida, fresca e clara, e vem da terra dos mortos — atravessa a terra e irrompe pelo ar onde faz circular seu perfume. Aí também ela parece lugar de cruzamento, limiar. Espaço harmonioso do dentro e do fora, dos extremos da existência, de limites.
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I.
Se teu frescor por vezes tanto surpreende,
radiosa rosa,
é que em ti mesma, por entre,
pétala contra pétala, tu te repousas.
Todo desperto, cujo meio
dorme, enquanto inúmeras se tocam
as carícias quietas desse coração cheio
que terminam na extrema boca.
II.
Vejo-te, rosa, livro à metade
aberto que contém tantas páginas
de detalhada felicidade
que jamais serão lidas. Livro-mago,
que se abre ao vento e cuja leitura
se pode fazer de olhos fechados…,
de lá as borboletas voam confusas
pelas mesmas idéias lhes terem inspirado.
III.
Rosa, tu, oh coisa por excelência completa
infinitamente contida em si
e que se estende infinitamente, oh cabeça
de um corpo que por demasiada doçura se ausenta,
nada se iguala a ti, essência suprema
desse frágil lugar;
desse espaço de amor onde teu perfume
envolve-nos mal se entra.
V.
Abandono cercado de abandono,
delícia tocando delícias…
É o teu meio que sem cessar
se acaricia, dir-se-ia;
se acaricia em si mesmo,
de seu próprio reflexo iluminado.
Assim inventas o tema
do Narciso realizado.
IX.
Rosa, toda ardente e clara todavia,
que deveria se chamar relicário
de Santa-Rosa…, rosa que irradia
esse cheiro perturbador de santa nua.
Rosa nunca mais tentada, desconcertante
por sua paz interna; derradeira amante
tão longe de Eva, de seu primeiro alerta —
rosa que contém a queda infinitamente.
XI.
Sinto tanto e tão fundo teu
ser, rosa completa,
que ao te receber te confundo
com meu próprio ser em festa.
Eu te respiro como se tu fosses,
rosa, toda a vida
e me sinto o amigo perfeito
de uma tal amiga.
XII.
Contra quem, rosa,
a senhora adotou
esses espinhos?
Sua alegria tão delicada
forçou-a, quem sabe,
a se tornar essa coisa
armada?
Mas de quem a protege
essa armada exagerada?
Já de tantos inimigos
a tenho livrado
que não temiam nada.
Ao contrário, de verão a outono,
a senhora é que fere
os afagos que recebe.
XIV.
Verão: ser por alguns dias
o contemporâneo das rosas;
respirar o que paira em volta
de suas almas abertas.
Fazer de cada uma que morre
uma confidente,
e sobreviver a essa irmã
em outras rosas ausente.
XVIII.
Em tudo o que nos comove tu estás presente.
Mas aquilo que te ocorre nós não sabemos.
Só sendo cem borboletas para podermos
ler todas as tuas páginas.
Algumas de vocês são como dicionários;
aqueles que as colhem
querem encadernar todas as folhas.
Já eu prefiro as rosas epistolares.
XX.
Conta-me como pode, rosa,
que a este espaço em prosa
tua lenta essência imponha,
contida em ti mesma,
todos esses transportes aéreos?
Quantas vezes esse ar
tenta mostrar que o penetram
ou se lamenta,
amuado.
Enquanto que à sua volta,
rosa, ele se ostenta.
XXI.
Tanta volta que tens que dar
girar para fazer-se rosa redonda:
não ficas tonta nesses momentos?
Mas quando teu movimento te inunda
tu te esqueces em teu botão.
É um mundo que gira em ronda
para que seu calmo centro ouse
o redondo repouso da rosa redonda.
XXII.
Você de novo, você brota
da terra dos mortos,
rosa, você que porta
para um dia todo em ouro
essa felicidade convicta.
E eles deixam, esses
cujo crânio vazio
nunca soube tanto?
XXIV.
Rosa, foi preciso te deixar lá fora
estranha querida?
Que faz uma rosa aqui onde a sorte
se esgota sobre a nossa lida?
Sem retorno. Tu ficas
e compartilhas
conosco, perdidamente, esta vida, esta vida
a que não pertences.