DIA & NOITE, NOITE & DIA: O TEMPO, DEUS ALHEIO & INDIFERENTE
25 de outubro de 2010

a seguir,

nove variações sobre o mesmo tema: a noite, o dia.

nove variações poéticas sobre um tema do compositor & cantor jim morrison.

a tarde devora o dia: é noite.

a manhã engole a noite: é dia.

nove poemas que abordam o eterno movimento do tempo: dia & noite, noite & dia, e a indiferença com que se dá esse movimento, sempre o mesmo, independentemente de qualquer coisa.

a  tarde, muda & austera, rasga a carótida do dia no seu gargarejo fatal, causando sua hemorragia & morte: vem a noite.

a manhã, feito um tintureiro alucinado, com todo o seu alarido de vozes cromáticas, atamanca, reveste, a tepeçaria da noite, dissipando o que ela, com custo, ajuntou: vem o dia.  

tamanha indiferença do real só comprova o seu triunfo por sobre os sublimes & inefáveis sonhos dos nossos mais célebres metafísicos.

para além das estrelas, para além do fundo azul: o silêncio profundo dos espaços que nada dizem, que nada querem dizer, e que nada jamais dirão ou quererão esclarecer.

o tempo, deus supremo, passa indiferente & alheio.

somos nós quem fazemos valer ou não este tempo que nos perpassa.

o mundo apresenta-se em cada dia & em cada noite que vivemos; são muitos os mundos neste planetavelã (tão pequenino diante da grandeza do universo), mundos sucessivos, mundos que se dão em cada dia & em cada noite vivenciados.

saibamos aproveitá-los! saibamos vivenciá-los!

beijo terno em vocês.
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Macau. autor: Paulo Henriques Britto. editora: Companhia das Letras.)

 
 
NOVE VARIAÇÕES SOBRE UM TEMA DE JIM MORRISON
 
 
You know the day destroys the night
Night divides the day.
 
 
 
1.
 
A tarde devora o dia
que já estrebucha entre nuvens.
É noite.
 
Manhã engole essa noite
encaroçada de estrelas.
É dia.
 
 
2.
 
O dia levanta a cabeça
num gargarejo fatal:
a tarde lhe rasga a carótida.
Noite.
 
A noite segrega projetos
de mundos magros, sem cor.
E vem o dia com seu préstito:
manhã.
 
 
3.
 
Nada como a tarde,    trapos encardidos
enxugando os restos    de uma luz já suja,
recolhendo as manchas    de sol desmaiado
com a complacência    de um apagador.
 
Nada como a manhã,    com seus dedos de feltro,
flanelas metafóricas    de pura indiferença,
a estender sobre o escuro    a realidade plena
de um dia ainda há pouco    de todo inconcebível.
 
 
4.
 
Por que é que essa tarde desmancha e desmaia e
sufoca o que o dia erigiu por um triz?
 
Por que é que a manhã como esse estrépito todo
dissipa o que a noite a tal custo ajuntou?
 
 
5.
 
Boçalidade da tarde:
porque afinal o dia custou tanto
a se investir, a instalar no teto
a gambiarra cara e trabalhosa
do sol, a despejar anil no céu
como um tintureiro alucinado.
 
Artimanhas da manhã:
despipocar todo o lençol da noite
e detonar tantos penduricalhos
de luz laboriosamente espetados
e acendidos um por um, com desvelos
obsessivos de monomaníaco.
 
 
6.
 
Manhã, que nunca pensas duas vezes
antes de atamancar com tua fórmica
banal a tapeçaria da noite,
como és enorme!
 
Ó tarde, que tens a desfaçatez
suprema de garrotear sem pejo
o pescoço fino e alvo do dia:
como te invejo!
 
 
7.
 
A cara desta tarde
é muda e austera, cara de quem
assiste, não de muito perto, à morte
prolongada e silenciosa de alguém
que não conhece, e nem
deseja conhecer.
 
O rosto da manhã
é o rosto frio e indecifrável
de quem contempla apático a morte
de alguém desconhecido, rosto
de quem, fora a licença poética,
rosto não tem.
 
 
8.
 
Se por acaso esta noite se extinguir
no féretro aéreo da alvorada,
tal como o dia ainda há pouco se esvaiu
na crua hemorragia de um crepúsculo,
 
será a comprovação esmagadora
do triunfo do real insensível
sobre os sonhos sublimes e inefáveis
dos nossos mais insignes metafísicos.
 
 
9.
 
Todo todo é menor que a menor parte,
muitos mundos cabem numa avelã.
Não há dia que não morra numa tarde,
nem noite que não se acabe em manhã.