LANÇAMENTO “DO QUARTO” (SANDRA NISKIER FLANZER) + RECITAL DE POESIA (PAULO SABINO)
25 de julho de 2017

(Na foto, o convite para o lançamento)
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Na próxima segunda-feira, dia 31 de julho, a partir das 19h, na Casa do Saber (shopping Leblon — av. Afrânio de Melo Franco, 290, loja 101, 1º piso), a poeta e psicanalista Sandra Niskier Flanzer lança o seu mais novo livro de poesia, “Do quarto”, pela editora 7Letras.

Recebi, da autora, o convite, que muito me honra e alegra, para fazer um recital, onde lerei poemas do livro entrelaçados a poemas de outros poetas que inspiraram a criação de algumas peças poéticas ou que conversam com as leituras da noite. Então, além dos novos poemas da Sandra Niskier Flanzer, teremos a leitura de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Antonio Cicero, Armando Freitas Filho, Fernando Pessoa, entre outros.

O lançamento começa às 19h e o recital, às 20h. Todos mais que convidados.

De brinde, deixo, aqui, um dos poemas “Do quarto” da Sandra, um poema lindo, que fiz questão de selecionar para a leitura, que nos incita a aproveitar a vida, a gastá-la, a usá-la, a deixá-la escorrer, a roê-la, a raspá-la, a fincar as unhas no umbigo do mundo, a fim de que o tempo que nos cabe valha a pena, valha a dor, valha a lágrima, valha a risada, valha a alegria, valha o bem-estar; a fim de que o tempo que nos cabe, em sua inutilidade (pois a vida, em si, não possui sentido, a não ser o sentido que damos a ela de acordo com os nossos objetivos e desejos), seja satisfatório, a ponto de gostarmos da vida, a ponto de gostarmos das nossas experiências vidafora, almadentro.

(A vida gosta de quem gosta da vida, não nos esqueçamos nunca desta lição.)

Venham! Eu e a Sandra esperamos vocês!

Beijo todos!
Paulo Sabino.
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(do livro: Do quarto. autora: Sandra Niskier Flanzer. editora: 7Letras.)

 

 

IN UTILIZAR

 

Gastar, gastar, usar a vida
Deixar que escorra, provar da bica
Gastar, roer, raspar do fundo
Fincar as unhas no umbigo do mundo.
Cravar as mãos, roçar, pegar,
Ir ao encontro de, ralar, ralar
Usar agora, desgastar, se engastar
No tempo breve que passa justo.
Perder, perder, ceder ao outro
O resto pífio desse plano torto
De achar que vivo é o que se encaixa
Quando é a morte que se guarda em caixa.
Porvir, puir, e por ir, desperdiçar
Do impossível, cruzar a faixa
Fuçar o real que no acaso sobrar
E torná-lo inútil a ponto de gostar.

MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES — 80 ANOS — POEMAS & VÍDEO DO RECITAL
17 de janeiro de 2017

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(Na foto, o prédio do Museu Nacional de Belas Artes, localizado no Centro da cidade do Rio de Janeiro.)

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(Adentrando o salão nobre do Museu Nacional de Belas Artes — MNBA — para a cerimônia de 80 anos da instituição.)
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“Querido Paulo Sabino,

Belo Poeta , além de porte elegante,

Meus parabéns pela honra que lhe foi merecidamente conferida.

Teria desejado estar presente para aplaudir a ilustre instituição brasileira e o seu orador oficial.

E sua mãezinha, como está ? Minhas homenagens a ela.

O abraço carinhoso da

Nélida Piñon.”

(Nélida Piñon — escritora integrante da Academia Brasileira de Letras — ABL)

 

 

A cerimônia pelos 80 anos do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) foi ótima, tudo correu super bem!

Trabalho bem executado, todos felizes: eu, com o que pude fazer, e os amigos & administradores do museu, pelo resultado da cerimônia. Já fui convidado, inclusive, para outros eventos da instituição (e para evento de uma instituição afim ao museu). Adorei. Às ordens para quando precisar.

Aos interessados, deixo um trechinho do recital de violino & piano, que integrou a cerimônia de comemoração dos 80 anos do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), na sexta-feira (13/01), da qual tive o imenso prazer de participar como o mestre de cerimônia de todo o evento (este videozinho foi feito por mim).

No vídeo, as musicistas Priscila Ratto (violino) & Katia Ballousier (piano) apresentam uma peça do compositor austro-húngaro Fritz Kreisler, Prelúdio & Allegro. Lindo & emocionante!

E, homenageando a instituição, dois poemas extraídos — não coincidentemente — do livro “Museu de tudo”, do mestre maior João Cabral de Melo Neto.
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segundo o dicionário houaiss, museu é a “instituição dedicada a buscar, conservar, estudar e expor objetos de interesse duradouro ou de valor artístico, histórico etc.”

penso eu que se o museu é uma instituição com tais atribuições, o museu deve suscitar reflexões sobre as sociedades que fundamos & sobre o próprio ato criativo, discutindo, o tempo inteiro, a arte, o seu valor & o ato criativo do que chamamos arte.

paul valéry, poeta, escritor & filósofo francês, no seu romance “monsieur teste”, aborda o “processo de criação artística” & coloca a reflexão sobre o “processo criador” como uma condição intransferível & essencial à própria criação. “monsieur teste” é a personalização do ideal do rigor reflexivo. paul valéry tornou-se, por isso, um símbolo do culto permanente à lucidez.

o museu como “monsieur teste”, permanentemente acordado, aceso, em vigília, insone: uma lucidez que tudo via, como se estivesse exposta à luz qualquer ou como se a lucidez estivesse exposta ao dia claro.

lucidez que, quando de noite, na escuridão, acende detrás das pálpebras o dente — que mastiga & auxilia na articulação dos sons & das palavras — de uma luz ardida, uma luz que queima, que machuca de tão intensa, uma luz nua, sem pele, extrema, pura, e que de nada serve: de nada serve porque a lucidez só serve a quem a tem; é um bem intransferível & irrevogável: porém, luz de uma tal lucidez — luz que queima, que machuca de tão intensa, uma luz nua, sem pele, extrema, pura — que mente que tudo podeis.

e nada pode tal luz lúcida: a lucidez de nada serve porque a lucidez só serve a quem a tem; é um bem intransferível & irrevogável.

assim como de nada serve fazer o que seja.

fazer o que seja, qualquer “objeto artístico” (um quadro, uma foto, um poema), é inútil. não fazer nada é inútil também. mas entre fazer & não fazer, mais vale o inútil do fazer. mas fazer para esquecer que é inútil — não, nunca: nunca o esquecer, nunca esquecer que fazer o que seja, qualquer “objeto artístico” (um quadro, uma foto, um poema), é inútil. fazer o inútil sabendo que ele é inútil fazer, sabendo que ele é realização inútil, e bem sabendo que seu sentido será sequer pressentido (o sentido da realização cabe a quem realiza, apenas ao criador — é um bem intransferível & irrevogável): ele — o fazer inútil — é mais difícil do que não fazer, mas dificilmente se poderá dizer, se poderá falar, se poderá declarar, com mais desdém, mais desprezo, mais arrogância, ou então dizer mais direto ao leitor “ninguém” — afinal, nunca se sabe quem, que leitor, as palavras alcançarão — que o feito, que o realizado inutilmente, o foi para ninguém.

o objeto artístico é confeccionado para ninguém: o artista, quando cria, pensa apenas na sua criação artística, no seu desejo de realização artística, nunca numa função para a sua criação ou para quem tal criação servirá. por isso, na arte não há o sentido utilitário, não há o sentido de utilidade, não há o sentido de útil. na acepção literal, a arte é, portanto, algo inútil, feita por alguém para nada nem ninguém.

ainda assim, uma vez confeccionado o objeto artístico (um quadro, uma foto, um poema), beber da sua fonte inesgotável de intenções desobrigadas.

arte: o mais nutritivo & saboroso alimento anímico.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: A educação pela pedra e depois. autor: João Cabral de Melo Neto. editora: Nova Fronteira.)

 

 

A INSÔNIA DE MONSIEUR TESTE

 

Uma lucidez que tudo via,
como se à luz ou se de dia;
e que, quando de noite, acende
detrás das pálpebras o dente
de uma luz ardida, sem pele,
extrema, e que de nada serve:
porém luz de uma tal lucidez
que mente que tudo podeis.

 

 

O ARTISTA INCONFESSÁVEL

 

Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.
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(do site: Youtube. evento: 80 anos do Museu Nacional de Belas Artes. peça: Prelúdio e Allegro. autor: Fritz Kreisler. piano: Katia Ballousier. violino: Priscila Ratto. local: Rio de Janeiro. data: 13/01/2017.)

JOÃO CABRAL DE MELO NETO: RAZÃO & EMOÇÃO UNAS, INDISSOCIÁVEIS
16 de agosto de 2016

João Cabral de Melo Neto

(O poeta)

Pedra do Frade

(A pedra)

Estrada Real_Diamantina (MG)

(O sertão)
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João Cabral de Melo Neto é um poeta que, em geral, todo poeta gostaria de ser (pelo menos um pouquinho). (Falo por muitos, eu sei.)

Sua poética é enxuta, econômica, e seu português, elegante, com mira certeira ao construir suas imagens pela economia de palavras. Diz-se que, por isso, João Cabral é um poeta também enxuto, econômico, nas emoções; que João Cabral é um poeta apenas “cerebral”.

Eu, na minha humilde percepção, porém convicto, sempre discordei disso. Porque, de fato, João Cabral é um poeta cerebral; “cerebral” no sentido de ter cada palavra milimetricamente pensada & posta no poema. Entretanto, atrelado ao seu trabalho cerebral, o de pensar — pelo recurso da economia — cada palavra milimetricamente posta no poema, vai no verso o que o emociona profundamente no mundo — vide o seu acervo temário.

João Cabral é um homem/poeta de profundezas, que olhou o seu povo de morte & vida severina, lamentou pelo rio de sua terra & infância, o seu Capiberibe, apaixonou-se por Sevilha & suas bailadoras, e admirou a poesia de Joaquim Cardozo, Augusto de Campos, Sophia de Mello Breyner Andresen, W. H. Auden, Marianne Moore, Elizabeth Bishop, Marly de Oliveira, Alexandre O’Neill, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, entre outros.

Portanto, ao meu ver, o que é cerebral, na obra cabralina, é a formulação técnica da poesia; e o que é posto em verso com “precisão cirúrgica” (com a técnica) é banhado por seu olhar emocionado diante das coisas.

É assim que vejo, sinto, percebo, a obra do João Cabral. É este o João Cabral que me alucina, que me emociona.

Principalmente a segunda parte do poema abaixo, que é das coisas mais lindas do mundo, me serve de exemplo para ilustrar o escrito acima.

Um dos modos de educar-se pela pedra: (nascendo, vivendo) no Sertão: o Sertão & sua paisagem dura, seca, árida, agreste, econômica, muda, paisagem sertaneja que, por dura, seca, árida, agreste, econômica, muda, molda os sertanejos à pedra. No Sertão, a educação pela pedra é de dentro pra fora, isto é, do SERtanejo para o seu hábitat, a educação pela pedra é pré-didática, isto é, a educação pela pedra não é ensinada pela pedra: lá no sertão, a pedra, uma pedra de nascença, entranha na alma.

Como não se emocionar com essa percepção do poeta acerca do Sertão & suas gentes? Como negar o olhar emocionado, aliado ao rigor estilístico, de quem enxerga desta maneira?

João Cabral de Melo Neto é muito cerebral & também emoção sublimada.

E tenho dito.

Beijo todos!
Paulo Sabino.
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(do livro: A educação pela pedra e depois. autor: João Cabral de Melo Neto. editora: Nova Fronteira.)

 

 

A EDUCAÇÃO PELA PEDRA

 

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

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Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.

NO “FLA X FLU”, POESIA: A CASA QUE NÃO É MINHA
22 de outubro de 2014

Chave & Fechadura

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a vida, impreterivelmente, é feita de escolhas.

a fim de alcançar determinado objetivo, muitas vezes, algumas outras possibilidades, possibilidades de outros tantos caminhos, têm de ser deixadas para trás.

escolher é viver. o tempo inteiro, na vida, somos expostos a escolhas, aceitemos ou não. porém, as escolhas, em muitos casos, são inteiramente dispensáveis.

nos casos em que as escolhas são inteiramente dispensáveis & que, mesmo assim, escolhemos, podemos criar, ainda que sem intenção, verdadeiras disputas futebolísticas entre as coisas, onde nos obrigamos a escolher uma delas como quando escolhemos um time de futebol — flamengo OU fluminense — para vibrar & torcer & se emocionar.

determinadas questões não carecem de escolhas.

para determinadas questões, escolhas erguem muros espessos no caminho.

ao meu olhar, as belezas dispostas no mundo não carecem de escolhas. ao meu olhar, as belezas dispostas no mundo nasceram para serem complementares & não excludentes.

costumo dizer isto aqui sempre: a existência é um grande barato pela variedade de belezas que apresenta: variedade de bichos, de plantas, de mares, de rios, de rochas, de cores, de sons, de cheiros, de pessoas.

não seria diferente com as artes: com a arte da palavra, com a arte da música, com a arte do esporte.

portanto, por que escolher:

drummond ou joão cabral? chico ou caetano? anderson silva ou minotauro?

pepê ou rico de souza (dois grandes surfistas brasileiros)? mário de andrade ou oswald de andrade?

pepeu gomes ou armandinho (dois exímios guitarristas)? selton mello ou wagner moura? cartola ou nelson cavaquinho?

nelson piquet ou ayrton senna? clarice lispector ou cecília meireles? paula ou hortênsia (duas feras do basquete)?

mônica ou cebolinha? titãs ou os paralamas do sucesso? joão gilberto ou tom jobim? chacrinha ou sílvio santos? maysa ou elis regina?

antonio cicero ou waly salomão? renato russo ou cazuza? mundo livre s.a. ou nação zumbi?

determinadas questões não carecem de escolhas.

para determinadas questões, escolhas erguem muros espessos no caminho.

ao meu olhar, as belezas dispostas no mundo não carecem de escolhas. ao meu olhar, as belezas dispostas no mundo nasceram para serem complementares & não excludentes.

assim como, na vida, algumas coisas se tratam de escolhas, outras coisas, não; há aquelas para as quais não há o poder de escolha, não há opção: trata-se de sina ou maldição, não se pode afirmar ao certo o que seja.

não fui eu quem escolhi a poesia, não fui eu quem optei por ela. foi a poesia quem me escolheu, foi a poesia quem optou por mim. porque não está nas minhas mãos o poder de decidir quando adentrar a casa da poesia. é a poesia quem escolhe a hora da visita do poeta. não é o poeta o responsável pela decisão.

desse modo, a casa da poesia, essa casa não é minha: a casa da poesia pertence somente à poesia.

minha chave, a chave da minha casa, não serve à casa da poesia, não cabe em sua casa. desconheço a fechadura, desconheço o dispositivo de destrancar a sua porta, e, conseqüentemente, desconheço a metragem, o tamanho, da sua sala (até porque a sala de estar muda de metragem, altera de tamanho, a cada visita realizada).

tudo me é estranho, tudo me é diferente, tudo me é irreconhecível, na casa da poesia.

a cada visita, uma nova casa, uma grande surpresa: nunca se sabe o que encontrar na casa: metragem desconhecida, o teto que nada me diz, o ar estranho da cozinha, o quarto que não é meu, a cama em que nunca dormi, um ambiente que causa certo desconforto — não é certamente confortável estar entre as paredes da casa poética, sem saber se tal construção lírica é segura ou se pode desabar a qualquer momento.

essa casa não é minha.

ser poeta não é opção: é sina ou é maldição.

às coisas que não se tratam de sina, de maldição, nem de escolhas (como quando escolhemos um time de futebol — flamengo OU fluminense — para vibrar & torcer & se emocionar), abrigá-las todas dentro da morada do ser: a existência é um grande barato pela variedade de belezas que apresenta: variedade de bichos, de plantas, de mares, de rios, de rochas, de cores, de sons, de cheiros, de pessoas.

aproveitemos todas!

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: A sombra do faquir. autor: Mauro Sta. Cecília. editora: 7Letras.)

 

 

FLA X FLU

 

Drummond ou João Cabral
Caetano ou Chico
Anderson Silva ou Minotauro
Pepê ou Rico

Mário ou Oswald
Pepeu ou Armandinho
Selton ou Wagner
Cartola ou Nelson Cavaquinho

Piquet ou Senna
Clarice ou Cecília
Paula ou Hortênsia
Mônica ou Cebolinha

Titãs ou Paralamas
João Gilberto ou Tom Jobim
Chacrinha ou Sílvio Santos
Maysa ou Elis

FHC ou Lula
Antonio Cicero ou Waly
Renato Russo ou Cazuza
Mundo Livre ou Nação Zumbi.

Escolhas erguem muros espessos no caminho.

 

 

ESSA CASA NÃO É MINHA

 

Minha chave aqui não cabe
desconheço a fechadura
e a metragem desta sala.
O teto não me diz nada
o ar da cozinha é estranho.
Claro que não é o meu quarto
onde me deparo agora.
Nunca dormi nesta cama,
nem me sinto bem aqui
depois de todos esses anos.

Ser poeta não é opção
é sina ou é maldição.

EPIGRAMA: O PRESENTE
4 de dezembro de 2012

Paulo Sabino_Lençóis maranhenses

(Paulo Sabino & seu epigrama: avançar, sempre, com o presente que se desembrulha nas mãos.)
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epigrama: consta no dicionário houaiss: “entre os antigos gregos, qualquer inscrição, em prosa ou verso, colocada em monumento, estátuas, moedas etc., dedicada à lembrança de um evento memorável, uma vida exemplar etc.”
 
epigrama:
 
bom é ser árvore, vento, e sua grandeza inconsciente: não pensar, não temer; apenas: “ser”.
 
e, assim sendo (árvore, vento, e sua grandeza inconsciente), temer coisa alguma, ser “altamente”. “altamente” porque o único compromisso de vida num caso como esse — o de viver sendo como árvore & vento, dentro das suas grandezas inconscientes — é viver sem se preocupar em como, até quando, ou por quê.
 
bom é ser árvore, vento: ser, apenas: altamente.
 
permanecer uno, íntegro, inteiriço, permanecer sem se pensar em partes, fragmentos, pedaços, olho boca cérebro rim coração, permanecer sem se pensar como tipo, modelo, categoria, permanecer uno, sempre só, alheio à própria sorte, sem qualquer tipo de preocupação com o mais adiante, sem qualquer tipo de preocupação com o segundo seguinte (bom é ser árvore, vento: ser, apenas: altamente), sem qualquer tipo de preocupação com o minuto que atravessa estas linhas quando escrevo.
 
(meu tempo é quando.)
 
permanecer uno & sempre só & alheio à própria sorte, com o mesmo rosto tranqüilo, sereno, diante da vida ou da morte.
 
o rosto tranqüilo, sereno, diante da vida (assustadora por suas artimanhas & reviravoltas) ou diante da morte (assustadora por representar o fim & o desconhecido, viagem de onde não mais se retorna): a grandeza inconsciente de não pensar & de, não pensando, não temer: ser, apenas: altamente.
 
apenas “ser”: viver no mais cristalino, no mais puro presente: permanecer uno, alheio à própria sorte, sem qualquer tipo de preocupação com o mais adiante, sem qualquer tipo de preocupação com o segundo seguinte, sem qualquer tipo de preocupação com o minuto que atravessa estas linhas quando escrevo.
 
apenas “ser”: viver no mais cristalino, no mais puro presente:
 
o presente:
 
para mim, este rumor alado de primavera: pássaros a riscar o céu azul da estação que representa o eterno renascer, a presente renovação das coisas & do mundo.
 
dia claro, céu limpo de nuvens: o vinho da claridade, vinho doce, nada rascante, servido em copos de mais azul.
 
vida: dia claro céu azul: tua lúcida presença.
 
vida: viva acesa intransponível: este rumor alado de primavera.
 
enquanto a terra, que não sabe este instante (em sua grandeza inconsciente, assim como a árvore, o vento), enquanto a terra, distante (terra: por mais distante, este errante navegante: quem jamais te esqueceria), enquanto a terra, com toda a sua umidade, com todo o seu frescor primaveril, terra onde se renasce, onde se revive, segura & sem pressa (apoiada — a terra — na firmeza própria da sua matéria), a terra espera, a terra aguarda, espera por nosso encontro, encontro nosso que ocorrerá a qualquer instante, num instante qualquer.
 
(terra: o meu rosto, no futuro, sendo aquele de todos os teus mortos, mais um rosto passado, anônimo, desconhecido: rosto nenhum.)
 
o meu epigrama: desembrulhar eternamente o presente que me chega nas mãos, enquanto a terra, distante, com toda a sua umidade, segura & sem pressa, espera (por mim).
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Antologia poética. autora: Marly de Oliveira. organização: João Cabral de Melo Neto. editora: Nova Fronteira.)
 
 
 
EPIGRAMA
 
 
Bom é ser árvore, vento,
sua grandeza inconsciente;
e não pensar, não temer,
ser, apenas: altamente.
 
Permanecer uno e sempre
só e alheio à própria sorte,
com o mesmo rosto tranqüilo
diante da vida ou da morte.
 
 
 
PRESENTE
 
 
Para mim, este rumor
alado de primavera.
 
O vinho da claridade
em copos de mais azul.
 
Tua lúcida presença.
Enquanto, distante, a terra,
 
 com toda a sua umidade,
segura e sem pressa, espera.

INÉDITO DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO + ARS POETICA
8 de maio de 2012

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INFORMAÇÃO LUXUOSÍSSIMA!

Acho um PRIVILÉGIO o acesso tão direto a ela.

Me disse a sempre benvinda & querida Inez Cabral de Melo:

 

estou organizando uma edição com um manuscrito inédito do véio (estudos para um auto q ele não terminou) e o armando [freitas filho] escreveu a apresentação. ficou D+! em agosto ou setembro nas melhores livrarias…

 

OBAAAAA! Material INÉDITO do mestre João Cabral de Melo Neto com apresentação de Armando Freitas Filho!

Aos fãs, fica a expectativa & a espera!

(Certamente estarei na noite do lançamento! Armando + João Cabral + Inez Cabral = IMPERDÍVEL!)

João Cabral é considerado, juntamente com Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira & Ferreira Gullar, um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos.

A sua poética é conhecida por ser direta, sem floreios, árida, seca, apenas o estritamente necessário, as palavras ponderadas & milimetricamente medidas, explorando ao máximo as potencialidades do mínimo, sem espaço para excessos & verborragia.

Abaixo, aos senhores, um poema lindíssimo do mestre, uma espécie de ars poetica (versos que tratam da natureza da poesia, versos que tratam do processo de criação poética), poema, portanto, que revela o modo de criar poemas utilizado por João Cabral, poema comentado magistralmente pelo meu querido amigo, o poeta & filósofo Antonio Cicero.

Enquanto não chega o lançamento do material inédito de João Cabral, deliciem-se com a bela análise do Cicero e com os belos & clássicos versos do mestre!

Beijo todos!
Paulo Sabino.
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(do livro: A educação da pedra e depois. autor: João Cabral de Melo Neto. editora: Nova Fronteira.)

 

CATAR FEIJÃO

A Alexandre O’Neill

Catar feijão se limita com escrever:
jogam-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na da folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

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Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.

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(trecho do livro: Poesia e filosofia. autor: Antonio Cicero. editora: Civilização Brasileira.)

 

No poema “Catar feijão”, o poeta João Cabral de Melo Neto exprime, metafórica porém ostensivamente, algumas ideias sobre escrever: sobre, no fundo, escrever poemas (…).

Tratando-se de uma espécie de ars poetica, esse poema chega bastante perto de ser proposicional, dizendo que o poeta deve livrar-se do que é leve (superficial) e oco (insubstancial), palha (ninharia) e eco (repetição do que já foi dito); e que, longe de buscar uma dicção de musicalidade convencional e fácil, deve criar ruídos, obstáculos, surpresas que obriguem o leitor a se manter acordado e atento, retirando-o, através de usos fonéticos, sintáticos, semânticos inesperados, da sonolência, do torpor e da autossatisfação do habitual, do que já tenha sido digerido. A surpreendente comparação entre catar feijão e escrever um poema faz parte da sua estratégia.

Ora, o próprio poema é admirável, não porque proponha essa ars poetica, mas porque realiza magistralmente aquilo que prescreve. Não é no que diz, mas em como diz o que diz que reside sua poesia. É que o poema iconicamente realiza o que aparentemente prescreve.

CANTO ÓRFICO
9 de agosto de 2011

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o canto é minha explicação.
 
a poesia é o que dá sentido ao meu rumo.
 
o poema é o meu grande guru.
 
(quem faz um poema salva um afogado.)
 
mesmo quando digo o que não sei, o canto é minha explicação: afinal, somos repletos de saberes & de desconhecimentos.
 
em verdade, nas vivências, mais não sabemos que sabemos.
 
o mundo, o entorno, é um absoluto silêncio, e esse silêncio soa-nos como uma absoluta incógnita.
 
sou o sentido do que se transforma, sou a rota do que se modifica, sou o norte do que se reconfigura, sou o sentido, sou a orientação, do que resiste à petrificação, do que não se cristaliza (o sempre ser para todo o sempre), e não conheço o declínio.
 
não conheço o declínio porque, na minha vida, o tombo é, no fundo, um passo a mais na trajetória de constante aprendiz: afinal, com os tombos aprende-se muito; as quedas principiam novas veredas, apontam setas inéditas, caminhos não imaginados não fossem os tombos.
 
vocês, que ouvem o que lhes digo:
 
saibam que tudo repara o tempo, em tudo o tempo dá jeito, tudo o tempo reinventa.
 
somos agentes, seres históricos, construímos, fazemos a História.
 
a existência é árdua. crises econômicas, pobreza, matança, extermínio, extinção, destruição. pessoas jurídicas, corporações nocivas ao convívio social, que destroem o que lhes atravesse o caminho, agindo, aqui & ali, lá & cá, diagnosticadas, inclusive, como “sociopatas”.
 
a existência é árdua. mas podemos repará-la.
 
(somos agentes, seres históricos, construímos, fazemos a história.)
 
tudo o tempo repara, menos a morte, mensageira do escuro, do oculto, do que finda, poderosa, que põe nos corações, desde o princípio, o seu germe vingador.
 
diz o dito popular: “para morrer, basta estar vivo”.
 
a morte coloca o seu germe vingador em nós desde o princípio: seja homem, mulher, jovem, velho, preto, branco, triste, feliz, saudável, doente, sensível, endurecido, hetero, gay, solteiro, casado, honesto, ladrão, crente, ateu, seja quem for, seja o que for, a morte, mensageira do escuro, implacável, poderosa, acerta-nos seu golpe, impiedoso, a qualquer hora do dia ou da noite, em momentos os mais variados possíveis.
 
nenhum sustento, nenhum amparo, nenhum apoio, nenhum suporte, nenhum sustentáculo, é eterno, ainda que tal sustento, que tal amparo, que tal apoio, que tal suporte, que tal sustentáculo, seja extraído da seiva que arde nas veias grossas do mundo.
 
nada é eterno. somos mortais. nada nos é dado sem o cobro, sem a cobrança, dos deuses — um dia, a seiva que arde nas veias grossas do mundo nos é negada, e chega ao fim a nossa jornada neste chão que pisamos…
 
por isso, ouçam:
 
aos senhores, estimo a insubmissão do amor, aos senhores, estimo a capacidade revolucionária do amor, de transformar realidades, de romper barreiras, de apagar fronteiras,  aos senhores, estimo o desígnio divino do amor, de querer o bem-estar de tudo o que pulsa & compõe a sua paisagem.  
 
aos senhores, também estimo a dor, pois a dor representa um modo de aprendizado. a dor é uma das dimensões existenciais; não existe vida sem insatisfações, sem inquietações, e sem cólera.
 
que a insatisfação & a dor & a cólera os salvem deste destino de todos, menor & implacável, que é: a morte.
 
(se sofremos, se a dor existe, é porque amamos. a dor está incluída no pacote. portanto, dêem-se por satisfeitos em abrigar a dor de amar.)
 
já que, um dia, nos será negada a seiva que arde nas veias grossas do mundo:
 
aproveitemos enquanto há tempo.
 
aos senhores, o amor & a sua dor!
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Antologia poética. autora: Marly de Oliveira. organização: João Cabral de Melo Neto. editora: Nova Fronteira.)
 
 
 
1.
 
O canto é minha explicação,
mesmo que diga o que não sei.
Sou o sentido do que se transforma,
do que resiste à petrificação
 
e não conheço o declínio. Ó vós que ouvis
o que vos diz Orpheu, sabei que tudo
repara o tempo, salvo a morte,
mensageira do escuro, poderosa,
que põe nos corações desde o princípio
seu germe vingador. Nenhuma Fúria
se lhe compara, nenhum sustento é eterno,
mesmo se subtraído à seiva que arde
nas veias grossas do mundo. Sois mortais
e vosso sacrifício há de ser grande,
que nada nos é dado sem o cobro
dos deuses.
 
       Ouvi, no entanto, vós, que a ilusão
buscais  sempre na vã agitação:
eu vos ensino a insubmissão do amor,
a inquietude que leva até o inferno
 
em vida, o êxtase, o delírio. Eu vos ensino
a dor e vos ensino a cólera,
que ela vos salve de vosso destino
menor e implacável. E vos ensino a glória.    

CARTÃO DE NATAL
24 de dezembro de 2010

pensam os homens que, reinaugurando essa criança, reinauguram o caderno onde são escritas as nossas aventuras mundo afora.
 
como se fosse consagrado, nestes dias, um caderno novo, e a aventura maior, que é viver, estivesse em ponto de vôo, e explodissem as sementes a serem semeadas nos campos que cruzamos e cruzaremos.
 
que, desta vez, esse caderno, no qual escrevemos as nossas dores & delícias, não perca sua atração casadoura para o dente, e possa, enfim, o ferro comer a ferrugem, não o contrário, possa o dente roer a cárie, não o contrário, o “sim” comer o “não”, não o contrário.
 
coragem grande é poder dizer sim (caetano veloso).
 
deixemos que se escreva no caderno, como cabeçalho para todo & qualquer texto que nele publicarmos:
 
sim à vida!
 
beijo bom em todos!
paulo sabino. / paulinho.
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(do livro: A educação pela pedra e depois. autor: João Cabral de Melo Neto. editora: Nova Fronteira.) 
 
 
CARTÃO DE NATAL
 
Pois que reinaugurando essa criança
pensam os homens 
reinaugurar a sua vida
e começar novo caderno,
fresco como o pão do dia;
pois que nestes dias a aventura
parece em ponto de vôo, e parece
que vão enfim poder
explodir suas sementes:
 
que desta vez não perca esse caderno
sua atração núbil para o dente;
que o entusiasmo conserve vivas
suas molas,
e possa enfim o ferro
comer a ferrugem,
o sim comer o não.
                                                                    (1952)

AQUISIÇÃO FABULOSA
22 de novembro de 2010

este que vos escreve possui uma estória curiosa com um dos poemas que seguem.
 
ao findar a sua leitura, fiquei fascinado pelos versos e, por um erro de leitura, pensei que eram da autoria de joão cabral de melo neto; mas não. os versos eram dedicados a joão cabral, foram criados PARA joão cabral, e não POR joão cabral.
 
daí, a descoberta: na verdade, linhas poéticas delineadas pelo meu AMADO & TALENTOSO poeta das alagoas, que TANTO ADMIRO por uma série de questões, adriano nunes.
 
antes desse ocorrido, havia dito já ao adriano que, muitas vezes, leio poemas de outros vates, vates que eu e o meu poeta das alagoas admiramos, e vejo que tais poemas poderiam, perfeitamente, ter saído da sua esfero-gráfica afiada, pronta para grandes sobrevôos ao papel.
 
uma aquisição fabulosa feita por adriano, feita por mim, a partir de tudo o que o mestre joão cabral de melo neto nos deixou de herança: 
 
a lapidação do poema, para que este seja, sempre, lançado lindo à língua, sem o peso do vácuo, sem o peso do que não é cheio (paradoxo poético lindíssimo), sem o peso do vazio, do vão.
 
cuidar do texto poético, palavra por palavra, pensá-lo milimetricamente, com precisão cirúrgica, sem proezas supérfluas, sem pretensões precárias.
 
para, assim, devolvê-lo nu aos deuses, devolvê-lo nu, devolvê-lo descoberto, ao seu lugar de origem — ao olimpo, casa dos deuses, ao lado das musas.
 
acompanhando a pérola poética, uma outra que ilustra bem os meios alcançados pelo GRANDE mestre (meu, do adriano) para transportar a sua poesia:
 
o trabalho obstinado com os versos, para que eles abriguem estritamente o essencial; para tanto, o estudo no uso de cada palavra lançada ao papel, lançada ao poema, a fim de extrair todo o sumo que elas, as palavras, têm a oferecer e de, assim, criar as imagens as mais potentes possíveis.
 
(tudo isso sem perder o humor nas linhas, traço forte na poética de joão cabral.)
 
deliciem-se com os poetas a seguir. ninguém se arrependerá das aquisições feitas, aquisições sempre fabulosas.
 
GRANDE beijo nos senhores!
um outro, GIGANTE, no meu poeta das alagoas, adriano nunes!
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: A educação pela pedra e depois. autor: João Cabral de Melo Neto. editora: Nova Fronteira.) 
 
 
MEIOS DE TRANSPORTE
 
§ O câncer é aquele ônibus
   que ninguém quer mas com que conta;
   não se corre atrás dele,
   mas quando ele passa se toma;
 
   que ninguém quer mas sabe;
   e que um dia ao sair-se do sono,
   lá está, semi-surpresa,
   quase pontual, no seu ponto.
 
§  Sem pontos de parada
   solto nas ruas como um táxi,
   sem o esperar, querer,
   sem ter por que, se toma o enfarte:
 
   táxi que, de repente,
   ao lado de quem não se pensava,
   pára, no meio-fio,
   toma, quem não o vira ou chamara.
 
 
(autor: Adriano Nunes.)
 
 
AQUISIÇÃO FABULOSA  (para João Cabral de Melo Neto)
 
Lapidar o poema.
Lançá-lo lindo à língua,
sem o peso do vácuo.
Palavra por palavra,
 
Sem prematura pressa.
Palavra por palavra,
Sem proezas supérfluas.
Palavra por palavra,
 
Sem pretensões precárias.
Para depois de pronto,
devolvê-lo nu aos deuses,
sem o peso do véu.  

O ÚNICO LIVRO: ÁGUA CORRENTE
29 de outubro de 2010

Sempre pensara em ir
caminho do mar.
Para os bichos e rios
nascer já é caminhar.
Eu não sei o que os rios
têm de homem do mar;
sei que se sente o mesmo
e exigente chamar.

(trecho do poema “o rio”, de joão cabral de melo neto, do livro “serial e antes”.)
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as tantas escrituras sacras que tentam dar conta de explicar o mundo e a existência humana:

os vedas, escritos sagrados do hinduísmo,

o evangelho, obra sagrada do cristianismo,

o alcorão, livro sagrado do islamismo,

mais os livros dos mongóis, seguidores do budismo,

ergueram, juntos, uma pira de poeira rasteira & estrume seco. por sobre a pira, pousaram. e ali permaneceram.

ergueram as escrituras sacras uma pira de poeira rasteira & estrume ressequido: pira que, pelo menos a mim, não serve. (creio que nem para “nada” sirva.)

somente um livro deve ser lido, um único livro consegue dar conta do assunto em questão.

o gênero humano é o leitor do livro.

um livro único, cujas páginas são maiores que o mar, tremem como asas de borboletas (viúvas brancas).

um livro em cujas folhas a baleia salta quando a águia, dobrando a página no canto, desce sobre as ondas, para, após, repousar no leito de um falcão marinho.

nesse livro, lições de uma lei divina: a lei da vida, a lei da natureza, das mudanças constantes, imorredouras.

sobre tudo,

o olhar dos homens, o olhar de cada qual a ler os seus rios, sempre a passar, o olhar peculiar de cada um a vivenciar os seus rios, as suas águas a seguir.

é só pensarmos nos grandes rios do planeta e nos seus homens, e nos seus modos de existir junto a eles, junto aos rios:

o volga, o maior rio da europa; o danúbio, o segundo maior do continente; o yang-tze-kiang, também chamado rio azul, o maior rio da ásia; o nilo, na áfrica, que só perde em extensão para o amazonas; o mississípi, o segundo maior dos estados unidos, que, juntamente ao rio missouri, forma a maior bacia hidrográfica do país; o ganges, um dos principais rios da índia; o zambeze, rio da áfrica austral, que possui as maiores quedas d’água do mundo, as cataratas vitória; o rio óbi, o quarto mais longo da rússia, rio que deságua no mar ártico; o tâmisa, que passa por londres e desemboca no mar do norte, rio de grande importância para a região.

todos esses grandes rios & os seus homens com os seus modos de existir, com a leitura que fazem das suas existências hídricas.

o gênero humano é o leitor do livro, é o leitor do mundo que corre aos seus olhos, é o leitor do mundo que enxerga, e que o abriga. na capa do livro, o timbre do artífice, do criador: o nome de cada um, em caracteres azuis, cor celestial.

o livro único: anos, países, povos, fogem no tempo, como água corrente. a natureza é um espelho móvel. e os deuses: visões da treva.

leiamos com cuidado, carinho & atenção o livro único, volume onde escrevemos os nossos enredos.

já disse o poeta casimiro de brito:

Único livro que não se pode reler: o da vida.

grande beijo!
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Poesia Russa Moderna. organização e tradução: Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman. editora: Perspectiva.)

(autor: Vielimir Khlébnikov.)

Anos, países, povos
Fogem no tempo
Como água corrente.
A natureza é espelho móvel,
Estrelas — redes; nós — os peixes;
Visões da treva — os deuses.

(tradução: Augusto de Campos.)
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O ÚNICO LIVRO

Vi que os negros Vedas,
o Evangelho e o Alcorão,
mais os livros dos mongóis
em suas tábuas de seda
— como as mulheres calmucas todas as manhãs —
ergueram juntos uma pira
de poeira da estepe
e odoroso estrume seco
e sobre ela pousaram.
Viúvas brancas veladas numa nuvem de fumo,
apressavam o advento
do livro único,
cujas páginas maiores que o mar
tremem como asas de borboletas safira,
e há um marcador de seda
no ponto onde o leitor parou os olhos.
Os grandes rios com sua torrente azul:
— o Volga, onde à noite celebram Rázin;
— o Nilo amarelo, onde imprecam, ao Sol;
— o Yang-tze-kiang, onde há um denso lodo humano;
— e tu, Mississípi, onde os ianques
trajam calças de céu estrelado,
enrolando as pernas nas estrelas;
— e o Ganges, onde a gente escura são árvores de ciência;
— e o Danúbio, onde em branco homens brancos
de camisa branca pairam sobre a água;
— e o Zambeze, onde a gente é mais negra que uma bota;
— e o fogoso Óbi, onde espancam o deus
e o voltam de olhos para a parede
quando comem iguarias gordurosas;
— e o Tâmisa, no seu tédio cinza.
O gênero humano é o leitor do livro.
Na capa, o timbre do artífice —
meu nome, em caracteres azuis.
Porém tu lês levianamente;
presta mais atenção:
és por demais aéreo, nada levas a sério.
Logo estarás lendo com fluência
— lições de uma lei divina —
estas cadeias de montanhas, estes mares imensos,
este livro único,
em cujas folhas salta a baleia
quando a águia dobrando a página no canto
desce sobre as ondas, mamas do mar,
e repousa no leito do falcão marinho.

(tradução: Haroldo de Campos.)