A PROVA
10 de novembro de 2011

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do outro lado da porta,
 
certo homem deixa tombar sua corrupção.
 
do outro lado da porta, silêncio frio,
 
um homem deixa tombar sua deterioração, deixa tombar sua decomposição física, sua putrefação.
 
é inútil, entende o homem, elevar, esta noite, uma prece a seu curiosíssimo deus, deus que é três — o pai o filho o espírito santo — e que, ao mesmo tempo, é dois, e também um.
 
o homem entende que, esta noite, é inútil elevar uma prece a seu intrigante deus, deus que se julga, que acredita ser, imortal, porque seu intrigante deus não pode livrá-lo do seu destino fatal.
 
(o homem compreende que o seu deus nada pode fazer, que o seu deus não o livrará do vôo do pássaro definitivo, pássaro que passa, passara & passará, pássaro que nos retalha & nos faz sangrar com sua derradeira bicada, não havendo cicatrização para este rumo.)
 
agora o homem ouve a profecia, ouve a previsão, de sua morte (ouve o canto do pássaro que vem ao seu encontro), e sabe que é um animal assentado, animal pousado, animal firmado, na sua parca condição corrompível, condição mortal.
 
tu és, irmão, esse homem.
 
tu & eu somos esse homem.
 
essa, a condição de todos nós, seres corruptíveis; essa, a nossa condição, frutos que somos com tempo de início & tempo de fim.
 
agradeçamos os vermes & o esquecimento (já que não adianta lutar contra o inevitável) e aproveitemos a vida enquanto vida houver, aproveitemos a vida, senhores, enquanto não for fechada (a trinco) a última porta.
 
aproveitemos.
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Poesia. autor: Jorge Luis Borges. tradução: Josely Vianna Baptista. editora: Companhia das Letras.)  
 
 
 
A PROVA
 
 
Do outro lado da porta certo homem
deixa tombar sua corrupção. É inútil
elevar esta noite uma prece
a seu curioso deus, que é três, dois, um,
acreditando-se imortal. Agora
ouve a profecia de sua morte
e sabe que é um animal assentado.
Tu és, irmão, esse homem. Agradeçamos
os vermes e o esquecimento. 

AVISO AOS NAVEGANTES — FÉRIAS 2
14 de junho de 2010

navegantes,
 
como já sabido, pois aqui anunciado, estou no meu período de férias.
 
quarta-feira, dia 16 de junho, embarco para buenos aires. passarei 10 dias (retorno no dia 26) na casa de um grande amigo.
 
conhecemo-nos em 1995, há exatos 15 anos(!), quando tínhamos 18 aninhos… cursamos comunicação social juntos, e, desse encontro, nasceu uma amizade muito bonita, muito verdadeira, de muito querer-bem. 
 
ele mora em buenos aires há 7 anos, e eu, muito sem-vergonha (rs), nunca o visitei. ele já veio aqui umas boas vezes, rever família & amigos, para férias, e são sempre MUITO divertidos os nossos encontros. ele é companhia para toda & qualquer hora. por isso, estou muito feliz em fazer a viagem.
 
curiosamente, comemorarei as minhas 34 primaveras a serem vencidas no dia 24 de junho (dia de são joão!: [cantarolando para mim] “ai, xangô, xangô menino/ da fogueira de são joão/ quero ser sempre o menino, xangô/ da fogueira de são joão”) ao seu lado. lembro-me que o dani (daniel oiticica) foi um dos poucos amigos do curso que foi à minha festinha de aniversário de 19 anos (aproximamo-nos logo no início do curso. à época do aniversário eu ainda não conhecia a turma da faculdade, não tinha a intimidade que passei a ter com muitos). quinze anos depois a história não se repete, não mesmo, mas, sob algum aspecto sentimental em mim, se assemelha (rs).  
 
essas tantas linhas apenas para avisar-lhes que as publicações, nesse período de viagem (16 a 26/06), ficarão ainda mais incertas. 
 
levarei alguns poucos livrinhos de poesia, porque não conseguiria viajar sem, pelo menos, dois. mas não sei se os lerei, não sei o que será, o que é ulterior, não sei de quase nada (rs).
 
estou alheio, estou lateral (coisas que são do tempo).   
 
a única postagem certa é a do dia do aniversário deste que vos escreve. haverá um “poeminha” (lindo, já selecionado!) comemorando a data (rs). 😉 
 
(buenos aires: o bairro que não é seu nem é meu.
 buenos aires: o que ignoramos e amamos…
 
 que assim seja!)
 
beijo bom em todos!
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Poesia. autor: Jorge Luis Borges. tradução: Josely Vianna Baptista. editora: Companhia das Letras.)
 
 
BUENOS AIRES
 
O que será Buenos Aires?
É a praça de Maio à qual voltaram, depois de guerrear
     no continente, homens cansados e felizes.
É o dédalo crescente de luzes que divisamos do avião e
     sob o qual estão a sotéia, a calçada, o último pátio, as
     coisas quietas.
É o paredão da Recoleta contra o qual morreu,
     executado, um de meus antepassados.
É uma grande árvore da rua Junín que, sem saber,
     depara-nos sombra e frescor.
É uma rua longa de casas baixas, que perde e
     transfigura o poente.
É a Doca Sul da qual zarpavam o Saturno e o Cosmos.
É a calçada de Quintana na qual meu pai, que estivera
     cego, chorou, por enxergar as antigas estrelas.
É uma porta numerada, atrás da qual, na escuridão,
     passei dez dias e dez noites, imóvel, dias e noites que
     são na memória um instante.
É o ginete de pesado metal que projeta do alto sua série
     cíclica de sombras.
É o mesmo ginete sob a chuva.
É uma esquina da rua Perú, na qual Julio César Dabove
     nos disse que o pior pecado que um homem pode
     cometer é gerar um filho e sentenciá-lo a esta vida
     espantosa.
É Elvira de Alvear, escrevendo em cuidadosos
     cadernos um longo romance, que no início
     era feito de palavras e no fim de vagos traços
     indecifráveis.
É a mão de Norah, traçando o rosto de uma amiga
     que é também o de um anjo.
É uma espada que serviu nas guerras e que é menos
     uma arma do que uma memória.
É uma divisa descolorida ou um daguerreótipo gasto,
     coisas que são do tempo.  
É o dia em que deixamos uma mulher e o dia em que
     uma mulher nos deixou.
É aquele arco da rua Bolívar do qual se divisa a
     Biblioteca.
É o cômodo da Biblioteca, no qual descobrimos, por
     volta de 1957, a língua dos ásperos saxões, a língua
     da coragem e da tristeza.
É a sala contígua, na qual morreu Paul Groussac.
É o último espelho que repetiu o rosto de meu pai.
É o rosto de Cristo que vi no pó, desfeito a
     marteladas, numa das naves de La Piedad.
É uma alta casa do Sul na qual minha mulher e
     eu traduzimos Whitman, cujo grande eco oxalá
     reverbere nesta página.
É Lugones, olhando da janela do trem as formas que
     se perdem e pensando que já não o aflige o dever
     de traduzi-las para sempre em palavras, porque
     esta viagem será a última.
É, na desabitada noite, certa esquina do Once na qual
     Macedonio Fernández, que morreu, continua me 
     explicando que a morte é uma falácia.
Não quero prosseguir, estas coisas são excessivamente
     individuais, são excessivamente o que são, para serem
     também Buenos Aires.
Buenos Aires é a outra rua, a que nunca pisei, é o centro
     secreto das quadras, os pátios últimos, é o que as
     fachadas ocultam, é meu inimigo, se ele existir, é a
     pessoa a quem meus versos desagradam (também
     me desagradam), é a modesta livraria em que talvez 
     tenhamos entrado e que esquecemos, é essa rajada
     de milonga assoviada que não reconhecemos e que
     nos toca, é o que se perdeu e o que será, é o ulterior,
     o alheio, o lateral, o bairro que não é teu nem
     é meu, o que ignoramos e amamos. 

AS COISAS
11 de janeiro de 2010

senhores,
 
gosto destes poemas assim, desta maneira, juntos. dois poemas, um deles, um poema-canção, de autores diferentes.
 
encanta-me a similitude do assunto tratado. apontam para questões existenciais, auferidas a partir da avaliação das coisas.
 
estas, as coisas, possuem uma série de características, de particularidades. todavia, uma elas não têm: paz (em quaisquer sentidos que essa particularidade possa ter).
 
as coisas não têm paz. nós temos.
 
pensem nisso.
 
beijo!
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Poesia. autor: Jorge Luis Borges. tradução: Josely Vianna Baptista. editora: Companhia das Letras.)
 
 
AS COISAS
 
A bengala, as moedas, o chaveiro,
A dócil fechadura, as tardias
Notas que não lerão os poucos dias
Que me restam, o baralho e o tabuleiro,
Um livro e entre suas folhas a esvaecida
Violeta, monumento de uma tarde
Memorável, decerto, e já esquecida,
O rubro espelho ocidental em que arde
Uma ilusória aurora. Quantas coisas,
Limas, umbrais e atlas, taças, cravos,
Servem-nos como tácitos escravos,
Cegas e estranhamente sigilosas!
Nós já esquecidos, e durarão mais;
Sem nem saber que partimos, jamais.
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(do livro: Gilberto Gil — todas as letras. organização: Carlos Rennó. editora: Companhia das Letras.)
 
 
AS COISAS (letra de Arnaldo Antunes — música de Gilberto Gil)
 
As coisas têm
Peso, massa, volume
Tamanho, tempo
Forma, cor
Posição
Textura, duração
Densidade
Cheiro
Valor
Consistência
Profundidade, contorno
Temperatura, função
Aparência
Preço, destino, idade
Sentido
 
As coisas não têm paz
 
As coisas