UM DOMINGO
17 de fevereiro de 2013

Pão-de-açúcar

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hoje amanheceu um domingo.

e não me escapa este domingo de ser domingo:

soberbo, isto é, grandioso, magnífico, um domingo enxuto, em que se eliminou ou reduziu o que é excessivo ou supérfluo, um domingo enxuto, sem lágrimas, sem lembranças que emocionem (sem infância & seu tempo passado), um domingo ávido de si, um domingo que só olhe para o seu umbigo, um domingo preocupado em se dar enquanto domingo.

um domingo rútilo, um domingo cintilante, reluzente, um domingo em pêlo & sem mais sentido que o sentido próprio de ser um domingo soberbo, enxuto, sem infância, ávido de si:

à espreita de uma surpresa, à espera de algum deleite.

(que assim seja.)

um ótimo domingo a todos!

beijo nocês tudo!
paulo sabino.
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(do livro: A estrela fria. autor: José Almino. editora: Companhia das Letras.)

 

 

UM DOMINGO

 

Não me escapa este domingo
de ser domingo: soberbo

um domingo enxuto,
sem infância,
ávido de si,
do seu umbigo,

um domingo rútilo,
em pelo
e sem mais sentido:
à espreita de uma surpresa,
de algum deleite.

ENIGMAS
31 de maio de 2012

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enigma: segundo o dicionário houaiss, “definição de algo por suas qualidades ou particularidades, mas difícil de entender”. por extensão de sentido, “texto ou parte dele, frase ou discurso cujo sentido seja incompreensível ou ambíguo”.

 enigma: segundo o dicionário aurélio, “questão proposta em termos obscuros, ambíguos, para ser interpretada ou adivinhada por alguém”. por extensão de sentido, “enunciado ambíguo ou velado”, “coisa inexplicável, aquilo que é difícil compreender; mistério”.
 
portanto, os enigmas carecem da argúcia alheia (precisam ser interpretados ou adivinhados por alguém) & da retórica. é mal de enigmas não se decifrarem a si próprios.
 
a condição dos enigmas: procuram uma qualidade em pedra & cal: 
 
os enigmas são como uma parede lisa branca, pois, a princípio, por conta das ambigüidades do que propõem, por conta das dicas obscuras, parecem uma barreira intransponível. os enigmas buscam uma qualidade em parede, em pedra, barreira branca como cal, parede branca como uma folha de papel em branco (como se nada houvesse ali).
 
no entanto, ao mesmo tempo que os enigmas procuram uma qualidade em pedra & cal, repelem-na, repelem essa qualidade que procuram, posto que todo o enigma, no fundo no fundo, por possuir uma resposta, busca a sua solução.
 
todo o enigma, por possuir uma resposta, apesar de toda a engenharia semântica em prol do silêncio, quer ser decifrado.
 
por conta da engenharia semântica dos enigmas, muitos quedam-se por aí: esguios ao tato, ocos de imagem, ferozes no seu silêncio. isto é: indecifráveis.
 
dignos & sós. 
 
existirmos: a que será que se destina?
 
este, o maior, o grande enigma bolado pela humanidade. e um enigma muito complexo, uma vez que, para ele, em princípio, não há resposta.
 
(será que a existência se destina a algo?…)
 
alguns enigmas merecem a ferocidade do seu silêncio. deixemos a busca pela resposta. vivamos. é o que nos resta. e vivamos em busca de paisagens que animem o ser.
 
lembrem-se sempre: as viagens são os viajantes.
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: A estrela fria. autor: José Almino. editora: Companhia das Letras.)  
 
 
 
É mal de enigmas não se decifrarem a si próprios.*
Carecem de argúcia alheia
e da retórica.
Procuram uma qualidade
em pedra e cal.
 
(Repelem-na,
ao mesmo tempo.
Tal é a condição dos enigmas.)
 
Quedam-se por aí:
esguios ao tato,
ocos de imagem,
ferozes no seu silêncio.
 
Dignos e sós
como um concerto de violoncelo.
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*autor da citação no poema: Carlos Drummond de Andrade  

CANÇÃO DO EXILADO: A ESTRELA FRIA
5 de outubro de 2011

(paulo sabino, de gracinha para a foto – rs, ainda bem jovenzinho: tempo que não volta mais.)

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o presente — até porque é a única coisa que nos resta — é o que importa, é o que, de fato, temos à disposição.
 
se eu voltar a lamber as botas do passado,
 
se eu voltar a visitar o passado com tamanha veemência,
 
se eu voltar a chorar a memória da memória:
 
que me seque a mão direita! que me seque a mão com a qual rascunho os meus rabiscos que revivem o passado!
 
quando o calor do passado vier pelo vento tardio desta primavera tão pura e o meu tato corromper, e o meu tato desvirtuar, estragar; e o roçar da nuca do passado me fizer tremer, tremer por lembrar o roçar daquela nuca do passado; se eu assobiar a mínima canção do passado; se eu procurar a boca do passado e o ruído das ruas do passado estrangular o meu coração:
 
que a língua cole no paladar!
 
ó, língua, ó, devastadora filha de babel (da torre, arruinada pelo alarido das línguas desencontradas), feliz é aquele que devolve a você o mal que me é causado por querer resgatar aquilo que não pode ser resgatado, feliz é aquele que rejeita esse mal, feliz é aquele que não aceita essa sua oferta: falar do passado.
 
feliz é o que se oferece ao que está. ao que: disponível: o presente.
 
não pedirei mais nada ao passado.
 
repetirei, em desassombro, repetirei, sem espanto ou surpresa (se eu lembrar de você, passado, cidade-além), repetirei em desassombro para o passado o que, no passado, alguns disseram a jerusalém: “arrasai-a! arrasai-a até os alicerces!”
 
morte ao morto!, o passado.
 
longa vida ao que fica!, o presente.
 
o passado: a estrela fria.
 
a estrela fria: a infância, a memória, o passado, é a luz de uma estrela fria, fria porque a sua luz não mais aquece, está longe, morta, está no passado.
 
a estrela fria: as recordações do poeta:
 
o verão, avassalador, o rangido do sol a pino, em pernambuco, varrendo a sombra & a árvore: quintal pelado; o medo, um companheiro do poeta de todas as horas.
 
os ermos da infância abrigam os olhos do poeta: 
 
ele sabe que a sua própria história, que escuta de si mesmo, vem tangida, vem tocada, pela memória de um “outro”, de um “outro” que é identificado com o tato, com o toque, de hoje, “outro” que nada mais é do que o poeta do tempo presente, este, sim, em constante transformação, e que, por viver em contínua mudança, será sempre um “outro”.
 
preocupemo-nos mais com este “outro” que formamos a cada dia.
 
que este “outro” — que formamos a cada dia — se sinta pleno na vida em que está, que este “outro” se sinta realizado na existência que abriga, a fim de que as lembranças sejam puramente (boas) lembranças (lembranças de um presente outrora bem vivido), e o presente, aquilo que mais vale o seu olhar.
 
morte ao morto!, o passado.
 
longa vida ao que fica!, o presente.
 
beijo todos!
paulo sabino.  
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(do livro: A estrela fria. autor: José Almino. editora: Companhia das Letras.)
 
 
 
CANÇÃO DO EXILADO
 
 
Se eu voltar a lamber as botas do passado,
se eu voltar a chorar a memória da memória:
que me seque a mão direita!
 
Quando o teu calor vier
pelo vento tardio deste verão tão puro
e corromper o meu tato;
e o roçar da tua nuca me fizer tremer,
se eu assobiar a tua mínima canção,
se eu procurar a tua boca
e o ruído das tuas ruas estrangular o meu coração:
que me cole a língua ao paladar!
 
Ó devastadora filha de Babel,
feliz quem devolver a ti
o mal que me fizeste!
 
Não pedirei mais
perdão às virtudes do passado.
Repetirei, em desassombro
— se eu me lembrar de ti, Jerusalém —,
com os que diziam:
“Arrasai-a!
Arrasai-a até os alicerces!”
 
 
 
A ESTRELA FRIA
 
 
There’s no there there.*
 
 
I
 
O verão era permanente.
Tanto fazia: alegria e dor
tinham
o calor do meio-dia.
 
 
II
 
De primeiro, era o
sol
que em Pernambuco leva dois sóis **
e aterrisa de chofre
sobre a palha da cana
sobre a cabroeira do eito,
imundas,
ao arrepio da carícia
das geladeiras,
ao largo de azulejos
azuis.
 
Depois
é trinado de cancão
no salão de barbeiro
suor do descamisado
capinado
o descampado.
 
Não há crepúsculo
mas o rangido do sol a pino
varrendo a sombra
e a árvore:
quintal pelado.
 
De longe,
a infância queima:
ela é a luz de uma estrela fria.
 
 
III
 
      e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.***
 
 
Quando o medo andava pelas ruas,
era apenas ele, nosso pai e nosso companheiro:****
entrava na padaria, passeava o cachorro,
pousava a mão no meu ombro.
 
Na minha infância já não se morria de tifo,
mas havia o medo,
sufocando-me durante as noites,
com lágrimas
e o travesseiro.
 
 
IV
 
Vou não.
Pego tudo e sacudo fora:
avoo no mato.
 
 
V
 
O sol de Sócrates amanhece lúcido, vigilante:*****
não é o meu.
Teço apenas o fiozinho de um desejo
que escreve letras tortas por linhas incertas.
Às vezes bobeio, quando os meus olhos abrigam os ermos
                                                                                             [da infância.
Morei no Zumbi, um lugar que sumiu.
Perdi a pátria nos trilhos sonolentos do bonde de Caxangá.
 
 
VI
 
Os adjetivos mastigam metáforas que desafinam:
há muito não vejo um rosto na multidão
e, qual Ulisses, volto a escutar a minha própria história
tangida pela memória de um outro
que com o tato de hoje identifico,
frente a uma tarde
quando aprendi a ver.
 
Eu era um signo opaco,
menino chutando pedra
no oco do mundo,
liberto de escolhas,
entre o ócio e o espanto.
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*autores das citações no poema “a estrela fria”:
 
* Gertrude Stein
** João Cabral de Melo Neto
*** Carlos Drummond de Andrade
**** Murilo Mendes
***** Carlos Drummond de Andrade