SOMOS TROPICÁLIA — 50 ANOS DO MOVIMENTO — 3º CICLO: JULIANA LINHARES, MIHAY, HELIO MOULIN E SALGADO MARANHÃO — MÃE DA MANHÃ (GILBERTO GIL)
18 de abril de 2017

(Os participantes desta 3ª etapa do projeto: em pé, Juliana Linhares e Salgado Maranhão; sentados, Helio Moulin e Miray junto ao Guilherme Araújo e à Gal Costa — Foto: Rafael Millon)
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“Bravo, Paulo Sabino. Aqueceram-me o coração sua desenvoltura e alta voltagem poética. Grato. Abs. RCAlbin”.

(Ricardo Cravo Albin — musicólogo & membro da Academia Carioca de Letras — ACL)

 

“Que massa que o Helinho vai tocar contigo [Mihay]! Adorei.”

(Tulipa Ruiz — cantora e compositora)

 

 

Alô Alô! Alegria Alegria!

Aqui para anunciar os participantes da 3ª etapa de encontros do projeto “Somos Tropicália”, em homenagem aos 50 anos do movimento que chacoalhou a música popular brasileira. O projeto vem reunindo, desde fevereiro, mensalmente, artistas da nova geração da nossa música, para a releitura das canções tropicalistas, com poetas consagrados, para a leitura de textos/poemas de bossa tropicalista.

Para esta edição de abril, o imenso prazer de receber só feras: a atriz e cantora Juliana Linhares (cantora e integrante da banda “Pietá” e do projeto “Iara Ira”, ao lado das cantoras Júlia Vargas e Duda Brack), o cantor, compositor e videomaker Mihay (o Mihay já cantou com o Chico César, excursionou com o João Donato, e tem, no seu segundo disco, participação da Tulipa Ruiz, Mariana Aydar, do Robertinho Silva, Kassin, e do próprio João Donato, entre outros), o instrumentista-violonista Helio Moulin (o Hélio é filho do monstro violonista e guitarrista da música popular brasileira e do jazz Helio Delmiro, que tocou com Elis Regina, Clara Nunes, Milton Nascimento, a diva da música norte-americana Sarah Vaughan, entre outros), e o poeta vencedor do prêmio Jabuti de poesia (o mais importante prêmio literário, pelo seu belíssimo livro “Ópera de nãos”) Salgado Maranhão.

Tudo divino-maravilhoso! Certeza de mais noites lindas para a música e para a poesia! E toda essa maravilhosidade “di grátis”!

Depois deste texto sobre o “Somos Tropicália”, um poema-canção que não é tropicalista porém foi composto por um mestre tropicalista e cantado pela musa tropicalista — Gilberto Gil e Gal Costa. Isso porque a Juliana Linhares, que é a grande cantora e intérprete que terei o prazer e a honra de receber no projeto, no espetáculo “Iara Ira”, canta com a Julia Vargas e a Duda Brack o poema-canção da publicação, poema-canção que é o meu preferido do álbum em que foi lançado, “O sorriso do gato de Alice”, da Gal. A Juliana, a Julia e a Duda abrem o “Iara Ira” com este poema-canção.

Sobre o “Somos Tropicália”: espalhem a notícia! Compartilhem a boa nova!

Esperamos todas e todos!

 

Serviço:

Gabinete de Leitura Guilherme Araújo apresenta –

SOMOS TROPICÁLIA – 50 anos do movimento

Juliana Linhares, Mihay, Helio Moulin e Salgado Maranhão / Pocket-show e leitura de poesias
Dias 26/04 (4ª-feira) e 27/04 (5ª-feira)
A partir das 19h30
Rua Redentor, 157 Ipanema
Tel infos. 21-2523-1553
Entrada franca c/ contribuição voluntária
Lotação: 60 lugares
Classificação: livre

Link do evento no Facebook: http://www.facebook.com/events/1881892262099199/
Página do projeto no Facebook: http://www.facebook.com/somostropicalia/
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(Extraído do livro “Gil — todas as letras”, organizado por Carlos Rennó, editora Companhia das Letras.)

 

para Gal Costa & Juliana Linhares

 

 

gilberto gil fez este poema-canção para gal costa, que foi dedicado à mãe da cantora, mariah costa penna, amiga do poeta-compositor & que havia morrido há pouco tempo.

a perda de uma pessoa que muito se ama, a que mais se ama, a grande amiga, aquela que sentimos ser a única pessoa a fazer absolutamente tudo & qualquer coisa para o bem-estar da cria, dos filhos: uma dor profunda, uma tristeza abissal, o recolhimento, o luto, a escuridão.

meu canto em momentos de escuridão é o meu grande amparo. minha voz é meu amparo em momentos difíceis.

minha voz, que é um aro de luz da manhã, que é um aro de luz que nasce do dia, voz solar, iluminada, voz brilhante, num momento de dor, de perda de alguém tão caro, a minha voz brota na gruta da dor.

mãe da manhã, mãe do raiar do dia, mãe da luz nascente do dia, mãe maria, mãe de todos nós, eu faria de tudo pra conservar vosso amor.

uma espécie de súplica, de pedido, à mãe da manhã, à mãe do raiar do dia, à mãe da luz nascente do dia, à mãe maria, à mãe de todos nós: pra conservar vosso amor, mãe da manhã, eu faria de tudo — a cada ano, eu faria uma romaria, eu faria uma oferenda, eu faria uma prenda, eu daria a vós uma flor. faria uma romaria, uma oferenda, uma prenda, daria uma flor — tudo para conservar o amor da mãe da manhã.

assim, na minha existência, a cada instante, teria direito a um grão, a um momento, a um pedaço, de alegria — e todos os grãos de alegria, por conservar o amor da mãe da manhã, seriam lembranças do vosso amor, lembranças do amor que a mãe da manhã me dedica.

santa virgem maria — mãe maria, mãe de todos nós —, vós que sois mãe do filho daquele que nos permite o nascer do dia, vós que sois mãe do filho daquele que nos possibilita a vida, daquele que nos determina a morte, santa virgem maria, mãe da manhã, mãe da luz, mãe solar: abençoai minha voz, meu cantar.

na escuridão da nostalgia causada pela perda de alguém que muito se ama, pela perda de alguém que nos é tão importante, tão caro, dai-nos a luz do luar.

na noite, na escuridão, na dor, na perda, no momento difícil: luz, sempre. seja qual for: solar ou lunar: luz, quero luz.

mãe da manhã, que assim seja.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Gil — Todas as letras. organização: Carlos Rennó. autor: Gilberto Gil. editora: Companhia das Letras.)

MÃE DA MANHÃ

Meu canto na escuridão
Minha voz, meu amparo
Aro de luz nascente do dia
Brota na gruta da dor
Mãe da manhã, de tudo eu faria
Pra conservar vosso amor

A cada ano, uma romaria
Uma oferenda, uma prenda, uma flor
A cada instante, um grão de alegria
Lembranças do vosso amor

Santa Virgem Maria
Vós que sois Mãe do Filho do Pai do Nascer do Dia

Abençoai minha voz, meu cantar
Na escuridão dessa nostalgia
Dai-nos a luz do luar.

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(do site: Youtube. áudio extraído do álbum: O sorriso do gato de Alice. gravadora: BMG Ariola. artista e intérprete: Gal Costa. canção: Mãe da manhã. autor: Gilberto Gil.)

AGRADECIMENTOS: 10ª EDIÇÃO DO SARAU DO LARGO DAS NEVES
24 de dezembro de 2015

Paulo Sabino_Sarau Lgo das Neves_Dezembro 2015 1

Largo das Neves_Igreja

Largo das Neves_Música Sarau Dez 2015
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“Parabéns pelo conjunto de incansáveis e qualificadas atividades em prol da poesia!”

(Antonio Carlos Secchin — poeta, tradutor, crítico literário & membro da Academia Brasileira de Letras — ABL)

 

 

 

Queridos,

Como descrever as minhas vivências, como definir o encerramento, neste 2015, do sarau do Largo das Neves, que coordeno & organizo com uma turma linda de amigos, no bairro de Santa Teresa (Rio de Janeiro), como agradecer devidamente toda a beleza da noite do evento, ocorrido em 22 de dezembro?…

Começo pela belíssima luz do fim do dia? ou pela dindinha lua, soberana no céu? ou pela quantidade de pessoas comemorando & celebrando a vida com poesia?

Eu realmente não sei… O que sei é que depois de ouvir tanta coisa linda sobre a importância do sarau na vida de algumas várias pessoas, a certeza de que devemos continuar aportou no meu coração, no meu sentimento, de maneira contundente.

Praça lotada, muita gente dizendo poesias lindas lindamente, a generosidade dos mestres do “tambor de crioula” (sim, também teve tambor de crioula!) que pediram a continuidade do sarau por mais tempo, a felicidade estampada nos sorrisos que recebi de cada participante da grande farra literária, o fechamento com o super grupo musical — formado por amigos — que tomou conta do largo fazendo da praça um grande salão de dança ao fim de tudo.

Eu, hoje, sou amor da cabeça aos pés.

Bem-vindos sempre, pessoas queridas, amigos pruma vida inteira, muitíssimo obrigado por fazerem da minha vida algo maior, por ter vocês & a poesia tão presentes.

Presente maior da vida!

Janeiro do ano que chega tem mais!

2015 contente para a poesia!

(Este ano, o “Prosa Em Poema” já alcançou a marca das mais de 103 mil — 103.000 — visualizações!)

O Sarau do Largo das Neves voltará em 2016 com a corda toda, é só aguardar!

No embalo desta alegria que me habita, aproveito para desejar, a todos que festejam, belas noites de festejos.

A minha mensagem aos senhores: mesmo o mundo sendo um grande bocejo, um grande tédio, de tanto que o homem já pesquisou & já apreendeu sobre as coisas mundanas, permitam chegar até vocês a impressentida essência do bem-estar & procurem uma alegria na flor do cotidiano, na beleza & no perfume do dia-a-dia: no vôo de um pássaro & de uma canção: Poesia!

Poesia: a arte, ao meu ver, mais capacitada a nos fazer voar, viajar!

Beijo todos!
Paulo Sabino.
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(do livro: Receita de Ano Novo. autor: Carlos Drummond de Andrade. editora: Record.)

 

 

MENSAGEM

 

Todas as coisas foram pesquisadas,
Conferidas, catalogadas em séries.
Não resta mais nenhum prodígio
No seio da Terra, no seio do ar.
O mundo é um bocejo.
Entretanto (como explicar?)
Chega de manso, infiltra-se em nossas paredes
De casa, de carne,
Impressentida essência
(Melodia, memória)
E nos subjuga: Natal.

 

 

PROCURO UMA ALEGRIA

 

Procuro uma alegria
na mala vazia
do fim do ano
e eis que tenho na mão
— flor do cotidiano —
o voo de um pássaro
e de uma canção.

O MENINO POETA
10 de maio de 2015

Paulo Sabino_Azul_Búzios
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ventos líricos me sopraram a existência do menino poeta.

o menino poeta — dizem os ventos — habita as palavras que compõem os versos, é o responsável pelos jogos semânticos & pelas brincadeiras & peripécias estilísticas entre signos.

ventos líricos me sopraram que o menino poeta percorre os quatro cantos do mundo, peralta, irrequieto, traquinas.

o menino poeta — não sei onde está.

procuro dali, procuro de lá. tem olhos azuis ou tem olhos negros? parece jesus ou índio guerreiro?

mas onde andará o menino poeta, que ainda não o vi? nas águas de lambari, em minas gerais? nos reinos do canadá, lá em cima, no norte das américas?

onde andará o menino poeta, que ainda não o vi? estará no berço, brincando com os anjos? estará na escola, travesso, rabiscando bancos?

o vizinho, ali, disse que, acolá, existe um menino com dó dos peixinhos. um dia, o menino pescou — pescou por pescar, não pretendia — um peixinho de âmbar, coberto de sal (âmbar: resina fóssil, de cor entre o acastanhado & o amarelado, utilizada na fabricação de objetos ornamentais). depois, o menino soltou o peixinho de âmbar outra vez nas ondas.

ai, que curiosidade! será esse o menino poeta? será que não? que será esse menino? que não será?…

certo peregrino — passou por aqui — conta que um menino, das bandas de lá, furtou uma estrela. a estrela, por causa do furto, caiu no choro; o menino, por tê-la furtado, ria. porém, de repente, o menino, tão lindo!, vendo o choro da estrela, subiu pelo morro & tornou a pregá-la, com três pregos de ouro, nas saias da lua.

ai, que curiosidade! será esse o menino poeta? será que não? que será esse menino? que não será?…

procuro daqui, procuro de lá. o menino poeta, habitante das palavras que compõem os versos, responsável pelos jogos semânticos & pelas brincadeiras & peripécias estilísticas entre signos, quero ver de perto.

quero ver de perto — o menino poeta — para me ensinar as bonitas coisas do céu & do mar. quero ver de perto — o menino poeta — para me ensinar a voar, cada vez mais alto, e a mergulhar, cada vez mais fundo, nos braços do meu bem maior: a poesia.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Melhores poemas. autora: Henriqueta Lisboa. seleção: Fábio Lucas. editora: Global.)

 

 

O MENINO POETA

 

O menino poeta
não sei onde está.
Procuro daqui
procuro de lá.
Tem olhos azuis
ou tem olhos negros?
Parece Jesus
ou índio guerreiro?

Tra-la-la-la-li
tra-la-la-la-lá

Mas onde andará
que ainda não o vi?
Nas águas de Lambari,
nos reinos do Canadá?
Estará no berço
brincando com os anjos,
na escola travesso
rabiscando bancos?

O vizinho ali
disse que acolá
existe um menino
com dó dos peixinhos.
Um dia pescou
— pescou por pescar —
um peixinho de âmbar
coberto de sal.
Depois o soltou

outra vez nas ondas.
Ai! que esse menino
será, não será?…
Certo peregrino
— passou por aqui —
conta que um menino
das bandas de lá
furtou uma estrela.

Tra-la-li-la-lá.

A estrela num choro
o menino rindo.
Porém de repente
— menino tão lindo! —
subiu pelo morro
tornou a pregá-la
com três pregos de ouro
nas saias da lua.

Ai! que esse menino
será, não será?

Procuro daqui
procuro de lá.
O menino poeta
quero ver de perto
quero ver de perto
para me ensinar
as bonitas cousas
do céu e do mar.

A ORIGEM DA POESIA
25 de fevereiro de 2015

Michelangelo_A criação de Adão

(Na foto, o afresco “A criação de Adão”, do pintor, escultor, arquiteto, o grande gênio italiano Michelangelo Buonarotti.)
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a experiência poética, para mim, é uma experiência existencial.

lendo poesia, interpretando os jogos semânticos criados nos, e entre os, versos, reinvento o homem que sou, e, reinventando-me, promulgo a minha constante atualização como homem, ao me perceber humano & mortal a cada ato, ao me perceber ser pensante & atuante na vida; é disso que vem a poesia.

pelo tanto que a poesia comporta, por tudo que a poesia pode, porque a poesia reinventa o homem em sua trajetória, a origem da poesia em nada difere da origem do homem, uma vez que, sem poesia, não há sequer a possibilidade do humano.

pois que a possibilidade do humano pulsa dentro da prática poética: não sabemos vivenciar o mundo sem poetizá-lo, sem mitificá-lo, sem criar metáforas & saberes fantásticos atribuídos a ele; não damos conta de tanto & criamos a poesia, os mitos & as lendas, que acabam por recriar o mundo.

a ciência define a lua, por exemplo, como um “satélite”. mas a definição “satélite” pouco dá conta das possibilidades & dimensões reais dessa imagem tão suave & concreta. antes, a definição “satélite” detém-se em uma de suas possíveis & talvez a mais pobre faceta, lacrando-a em uma caixa semântica sem comunicação externa. como “satélite”, a lua esquece de suas dimensões sonhadas & não sonhadas. pois, para além de resumir-se a um “corpo celeste que gravita em torno de outro”, a lua é, também, a lua-fruta do poeta chinês (antes de cristo) qu yuan, que pende madura na ponta de um galho, a lua das crendices populares, inusitadamente relacionada a são jorge, meu santo protetor, a deusa-lua selene (na mitologia grega, selene é a personificação da lua), a lua que influi misteriosamente na menstruação das mulheres, a lua que influi, com o seu magnetismo, nos fluxos das marés, a lua que transforma homens em lobos — todas diferentes luas, mas, ainda assim, a mesma lua.

em última instância: a experiência humana é experiência poética, é o modo que temos, que descobrimos, que inventamos, de viver, de experimentar, o mundo que nos cerca.

a poesia é uma condição — e condenação — do homem.

reinventando-me, a poesia me reafirma homem, mortal/ transitório/ inacabado, me reafirma ser pensante & pulsante entre as coisas.

sobretudo o verso é o que pode lançar mundos no mundo.

salve a poesia!
salve a sua existência nas nossas!

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Ensaios radioativos. autor: Márcio-André. editora: Confraria do Vento.)

 

 

A ORIGEM DA POESIA

 

Debater a origem da poesia em nada difere do se debruçar sobre a origem do homem, uma vez que sem poesia não há sequer a possibilidade do humano. Claro que essa afirmação vai contra tudo o que estamos acostumados a ouvir e entender por poesia e por origem, e só pode ser minimamente aceita se questionarmos antes duas posturas que estão no cerne de nossa maneira de pensar: 1) a compreensão evolutiva do espaço, do tempo e da história, 2) a noção, insistentemente fundamentada pela funcionalidade da máquina moderna, de que a arte é uma forma de entretenimento, um meio de expressão ou válvula de escape, fantasia sem importância, presente unicamente para embelezar o mundo.

Essa tradicional visão da instrumentalidade da poesia, da linguagem e da história, nos limita a entrever o mundo como uma série de processos estanques; perspectiva segundo a qual a arte nada teria a ver com a realidade, distante da história, da física, da biologia, da economia e da política — coisas “sérias”. Entretanto, se prestamos um pouco mais de atenção, seremos capazes de vislumbrar uma verdade simples e óbvia, a de que todas as coisas do homem surgem a partir de uma mesma perspectiva, que é o agir do homem enquanto agir-se. Na Grécia antiga, havia um nome para isso: poiesis, princípio pelo qual se dava o ato criador. Não um ato criador qualquer, como entendemos hoje. Naquela época, em que os deuses eram muitos, presentes e irritados, essa criação envolvia, por si só, a condição e a condenação desse homem que, ao criar, criava-se a si mesmo. O que acontece hoje, porém, é que, distante dessa noção remota, a instrumentalidade da linguagem acarreta a instrumentalização do corpo, e o homem perde parte do que é primordial e verdadeiro em sua produção, restando-lhe apenas o sentido da contínua repetição característica dos sistemas.

Certamente, como tradução moderna dessa poiesis clássica, ou de toda potência geradora na camada subcutânea dos ritos de todos os povos, a poesia é, ainda, dentre todas as coisas que o homem produz hoje, a mais grave. Isso porque não é o homem quem cria a poesia, mas a poesia que o cria. Mais: a poesia é a própria ação criadora em si, na qual se atesta o homem ao criar e as coisas ao serem criadas. Vico dizia que no interior da poesia estava a origem das línguas. Não podemos, então, nos referir a ela como uma coisa qualquer entre outras coisas, nem como um artifício retórico que se vale da linguagem como matéria-prima. Pelo contrário, a própria poesia começa por tornar a linguagem possível, agora e sempre. A poesia é a linguagem primogênita de um povo — afirma Heidegger. A poesia é o primeiro e o mais fundamental testemunho do homem, atestação de sua presença e de seu pertencimento à Terra. É através da poesia que ele se desvenda como linguagem e, então, propriamente, homem.

Basta lembrar que os primeiros físicos do Ocidente não perdiam de vista o poético em suas realizações. Seria até mesmo uma traição classificá-los por arquétipos profissionais, quando não havia de fato qualquer separação entre ser poeta, físico, filósofo, matemático — todas essas dimensões se articulavam em apenas uma mesma: a do sagrado. Estes eram homens espantados diante da complexidade da physis que se erguia com seus grandes milagres de tempestades e números. O mesmo espanto que milhares de anos depois surpreende o cientista de hoje diante da imprevisibilidade das partículas e da grandiosidade do cosmos. O sol é do tamanho de um pé humano, disse Heráclito, numa afirmação que, antes de tentar ser uma reflexão “lógica”, é poética e só pode ser poética por estar na regência do sagrado. Não é uma assertiva ingênua, como poderiam sugerir alguns. Heráclito sabia do distanciamento do sol, mas sabia também que o sol, como ainda hoje, encerrava uma medida celeste para a terrenidade do homem. Esse sol adquiria uma dimensão poeticamente moldável como o horizonte de Manuel de Barros, onde se enfiam pregos, ou a florflamejante de Sousândrade. É o espaço onde as coisas são e deixam de ser.

A nós, homens da modernidade, depois do cogito cartesiano, depois da metafísica kantiana, depois do existencialismo de Sartre, depois que o homem expulsou os deuses de seu convívio e se tornou seu próprio deus e oráculo através da metafísica dos sistemas, isso tudo parece distante e absurdo. Resistimos em aceitar o conhecimento científico como uma especulação do mundo tão “fantástica” quanto qualquer outra. A ciência define a lua, por exemplo, como um satélite. Mas a definição “satélite” pouco dá conta das possibilidades e dimensões reais dessa imagem tão suave e concreta. Antes detém-se em uma de suas possíveis e talvez sua mais pobre faceta, lacrando-a em uma caixa semântica sem comunicação externa. Como satélite, a lua esquece de suas dimensões sonhadas e não sonhadas. Pois para além de resumir-se a um “corpo celeste que gravita em torno de outro”, a lua é também a lua-fruta de Qu Yuan, que pende madura na ponta de um galho, ou a lua das crendices populares, inusitadamente relacionada a São Jorge, ou a deusa-lua Selene, ou a lua que influi misteriosamente na menstruação das mulheres e que transforma homens em lobos — todas diferentes luas, mas ainda assim a mesma lua. Os próprios cientistas hoje se dão conta do absurdo que é a realidade. Ilya Prigogine, prêmio Nobel de física, afirmou ser a realidade somente uma das realizações do possível.

O absurdo da poesia não é nada mais que o absurdo do real. A poesia e a arte não surgiram em um momento específico de uma história inventada, mas surgem a cada instante e com ela o homem, pois nisto consiste sua humanidade e cultura — a constante atualização do homem como homem, ao se perceber humano e mortal a cada ato; disso vem a poesia. Ao contrário da visão tradicional à qual estamos acostumados, a arte não é um jogo subjetivo de gênios excêntricos. Não é também exclusividade de uma elite ou de qualquer grupo que detenha seu poder de realização. A arte está em tudo. Sua essência sagrada está na física moderna e clássica, está nas casas e edifícios, nas ruas das cidades, na política real e feita com paixão, na matemática, em todos nós. A poesia é a linguagem primordial de todo espanto e está na base de tudo o que produzimos enquanto ato criador não alienado. A poesia é o que permite a própria realidade, ainda que a realidade, hoje, a esconda sob a rotina massacrante dos sistemas.

DISTRIBUIÇÃO DA POESIA: CONVITE PARA A ILHA
4 de junho de 2014

Ilha Maldivas

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mel silvestre tirei das plantas, sal tirei das águas, luz tirei do céu.

escutai, meus irmãos: poesia tirei de tudo para oferecer à vida, para oferecer à força criadora que move este mundo.

não tirei ouro da terra nem sangue de meus irmãos.

estalajadeiros, que são os donos de estalagem, não me incomodeis.

bufarinheiros, que são vendedores ambulantes de bufarinhas (coisas bobas, insignificantes), e banqueiros, sei fabricar distâncias para vos recuar.

a vida está malograda, está fracassada, está malsucedida, e eu creio nas mágicas da força criadora do universo.

os galos não cantam, a manhã não raiou: a vida está malograda, está fracassada, está malsucedida.

vi navios irem & voltarem (não completando a sua viagem), vi infelizes irem & voltarem (não completando a sua viagem), vi ziguezagues na escuridão: a vida está malograda, está fracassada, está malsucedida.

capitão-mor, governador de capitania hereditária, homem de conhecimentos, onde é o congo? me diz, capitão-mor, governador de capitania hereditária, homem de conhecimentos, onde é a ilha de são brandão?

capitão-mor, governador de capitania hereditária, que noite escura!

(os galos não cantam, a manhã não raiou: a vida está malograda, está fracassada, está malsucedida.)

uivam molossos, uivam cães de aspecto robusto & ameaçador, na escuridão.

ó indesejáveis, ó indivíduos cuja presença não é desejável por mostrarem-se perniciosos aos interesses dos demais irmãos de terra, qual o país, qual o país que desejais?…

(os indesejáveis só sabem denegrir a vida, os indesejáveis só sabem obscurecer os caminhos dos demais irmãos de terra.)

mel silvestre tirei das plantas, sal tirei das águas, luz tirei do céu: só tenho poesia para vos dar.

abancai-vos, meus irmãos!

para vos dar, só tenho: poesia: e um convite para a ilha:

não digo em que signo se encontra esta ilha, não falo sob que forma avista-se a ilha, mas ilha mais bela não há no alto-mar.

o peixe cantor existe por lá.

ao norte dá tudo: baleias azuis, o ouriço vermelho, o boto voador.

a leste da ilha há o gêiser gigante (gêiser: fonte termal que lança no ar jatos de água ou vapor em intervalos regulares), deitando água morna. quem quer se banhar?

há plantas carnívoras sem gula, que amam & não devoram.

ao sul o que há? há rios de leite, há terras bulindo, mulheres nascendo, raízes subindo, lagunas tremendo, coqueiros gemendo, areias se entreabrindo.

a oeste o que há? não há o ocidente nem coisa de lá: a terra está nova: devemos olhar o sol se elevar.

convido os rapazes & as raparigas para ver esta ilha, correr nos seus bosques, nos vales em flor, nadar nas lagunas, brincar de esconder, dormir no areal, caçar os amores que existem por lá.

o sol da meia-noite, a aurora boreal, o cometa de halley, as moças & moços nativos, podeis desfrutar.

partamos todos, enquanto esta ilha não vai afundar, enquanto não chegam guerreiros das terras, enquanto não chegam piratas do mar.

(os indesejáveis só sabem denegrir a vida, os indesejáveis só sabem obscurecer os caminhos dos demais irmãos de terra.)

as noites! que noites de imenso luar! podeis, todos vós, no céu da ilha, contemplar constelações: a ursa maior, a lira, a órion, a luz de altair, estrelas cadentes correndo no espaço, a estrela dos magos — a tão célebre estrela de belém, que guiou os três reis magos do ocidente até o recanto onde nascera o redentor — parada no ar.

que noites de imenso luar!

e as sestas? e as horas de descanso após o almoço? que sestas! a brisa é tão mansa! há redes debaixo dos coqueirais, sanfonas tocando, o sol se encobrindo, as aves cantando canções de ninar.

partamos todos, que as noites de escuro não tardam, não demoram, a chegar na ilha.

(partamos todos, enquanto não chegam guerreiros das terras, enquanto não chegam piratas do mar.)

partamos todos! mas onde fica a ilha? em que parte exatamente do oceano? então que é da ilha, da ilha mais bela que há pelo mar & onde se pode sonhar com os amores que nunca na vida nos hão de chegar?

o jeito é partir em busca desta ilha, o jeito é partir em busca do meu paraíso aqui na terra, o jeito é partir em busca do recanto que desejo a mim, que desejo ao meu bem-estar, sem mapa ou bússola para orientar. simplesmente partir, singrando os mares da vida.

eu, o antinavegador de moçambiques, goas, calecutes.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Melhores poemas. seleção: Gilberto Mendonça Telles. autor: Jorge de Lima. editora: Global.)

 

 

DISTRIBUIÇÃO DA POESIA

 

Mel silvestre tirei das plantas,
sal tirei das águas, luz tirei do céu.
Escutai meus irmãos: poesia tirei de tudo
para oferecer ao Senhor.
Não tirei ouro da terra
nem sangue de meus irmãos.
Estalajadeiros não me incomodeis.
Bufarinheiros e banqueiros
sei fabricar distâncias
para vos recuar.
A vida está malograda,
creio nas mágicas de Deus.
Os galos não cantam,
a manhã não raiou.
Vi os navios irem e voltarem.
Vi os infelizes irem e voltarem.
Vi homens obesos dentro do fogo.
Vi ziguezagues na escuridão.
Capitão-mor, onde é o Congo?
Onde é a ilha de São Brandão?
Capitão-mor que noite escura!
Uivam molossos na escuridão.
Ó indesejáveis, qual o país,
qual o país que desejais?
Mel silvestre tirei das plantas,
sal tirei das águas, luz tirei do céu.
Só tenho poesia para vos dar.
Abancai-vos meus irmãos.

 

 

CONVITE PARA A ILHA

 

Não digo em que signo se encontra esta ilha
mas ilha mais bela não há no alto-mar.
O peixe cantor existe por lá.
Ao norte dá tudo: baleias azuis,
o ouriço vermelho, o boto voador.
A leste da ilha há o Gêiser gigante
deitando água morna. Quem quer se banhar?
Há plantas carnívoras sem gula que amam.
Ao sul o que há? — há rios de leite,
há terras bulindo, mulheres nascendo,
raízes subindo, lagunas tremendo,
coqueiros gemendo, areias se entreabrindo.
A oeste o que há? — não há o ocidente nem coisa de lá:
a terra está nova: devemos olhar o sol se elevar.
Convido os rapazes e as raparigas
pra ver esta ilha, correr nos seus bosques,
nos vales em flor, nadar nas lagunas,
brincar de esconder, dormir no areial,
caçar os amores que existem por lá.
O sol da meia-noite, a aurora boreal,
o cometa de Halley, as moças nativas,
podeis desfrutar. Meninas partamos
enquanto esta ilha não vai afundar,
enquanto não chegam guerreiros das terras,
enquanto não chegam piratas do mar.
As noites! Que noites de imenso luar!
Podeis contemplar a Ursa maior,
A Lira, a Órion, a Luz de Altair,
estrelas cadentes correndo no espaço,
a estrela dos magos parada no ar.
Que noites, meninas, de imenso luar!
E as sestas? Que sestas! A brisa é tão mansa!
Há redes debaixo dos coqueirais,
sanfonas tocando, o sol se encobrindo,
as aves cantando canções de ninar.
Meninas partamos que as noites de escuro
não tardam a chegar. Então que é da ilha,
da ilha mais bela que há pelo mar
e onde se pode sonhar com os amores
que nunca na vida nos hão de chegar?

A NOSSA CASA
16 de janeiro de 2014

Paulo Sabino_PerfilAmor-perfeito

 

(Na primeira foto: a minha casa. Na segunda foto: um mato que floresce, conhecido por “amor-perfeito”.)
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a nossa casa é de carne & osso: porque o que, de fato, nos abriga, o que, de fato, nos dá guarida, é o corpo.

a nossa casa é de carne & osso porque a nossa casa é o nosso corpo, este, de onde se pronuncia o paulo sabino.

sem o abrigo do corpo, nada feito.

a nossa casa não é sua nem minha (não dispomos desta morada a que chamamos corpo: não compramos, não vendemos, não alugamos, não hipotecamos — simplesmente: habitamos) & também não tem campainha para quem nos chegue de visita, ou para quem venha conosco morar.

a nossa casa, diferentemente das demais (as de tijolo & concreto), tem varanda dentro (e não fora), pois o lugar onde, na nossa casa, passa o vento para ventilar — a fim de trazer vida à residência — é dentro do corpo. o ar passa numa varanda que vem dentro, e não fora, da casa.

a nossa casa tem varanda dentro & tem um “pé de vento” para respirar (assim como em quintais com um pé de manga, ou de goiaba, ou de abacate, para comer): um pé-de-vento para respirar: ventania forte, boca & narinas adentro, que traz, com seu ar, vida à residência.

por essa razão (por ser o corpo a nossa mais legítima morada):

a nossa casa é onde a gente está, a nossa casa é em todo lugar.

basta cuidar dessa casa, da sua arquitetura, deixar que nela more um pé de vento, deixar que nela entre a luz, para que ela possa estabelecer-se segura em qualquer localidade: aqui, no rio; ali, em sampa; lá, no pará; acolá, no japão:

a nossa casa é onde a gente está, a nossa casa é em todo lugar.

basta atentar à casa, à sua arquitetura, deixar que nela entre um pé-de-vento, deixar que nela more a luz, para que ela possa estabelecer-se segura em qualquer localidade: em local onde “amor-perfeito” é mato (até porque “amor perfeito”, se não for mato, inexiste) & o teto estrelado (teto com constelações que brilham no escuro de um cômodo) também tem luar; em local que pareça um ninho, onde surja um passarinho para acordar a casa; em local onde passe um rio no meio & onde o leito (a cama, o lugar de repouso) possa ser o mar:

a nossa casa é onde a gente está, a nossa casa é em todo lugar.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do encarte do cd: Saiba. artista: Arnaldo Antunes. gravadoras: Rosa Celeste / BMG.)

 

 

A NOSSA CASA

 

na nossa casa amor-perfeito é mato
e o teto estrelado também tem luar
a nossa casa até parece um ninho
vem um passarinho pra nos acordar
na nossa casa passa um rio no meio
e o nosso leito pode ser o mar
a nossa casa é onde a gente está
a nossa casa é em todo lugar
a nossa casa é de carne e osso
não precisa esforço para namorar
a nossa casa não é sua nem minha
não tem campainha pra nos visitar
a nossa casa tem varanda dentro
tem um pé de vento para respirar
a nossa casa é onde a gente está
a nossa casa é em todo lugar

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(do site: Youtube. videoclipe da canção: A nossa casa. Artista: Arnaldo Antunes. gravadoras: Rosa Celeste / BMG.)

LUZ DO SOL, LUZ DA RAZÃO
4 de setembro de 2013

Luz do sol

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(para o Otto, meu anjo da guarda, que, hoje, completa os seus 7 anos)

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luz do sol, que a folha traga & traduz: a folha traga a luz solar & a traduz em verde novo (a renovação do seu verde, de tempos em tempos), em graça, em vida, em força (o fortalecimento do ser através da luz que é tragada & traduzida em verde novo), em luz (a quem sabe mirar & ad-mirar, robusta, sadia, vigorosa, a beleza natural).

por isso, e mais, tu, sol, é que me alegras. a mim & ao mundo, pois sou eu, paulo sabino, parte integrante da vida mundana.

encaro-te de frente, sol, e, embora tua luz me cegue, ergo meus olhos acima & recebo-a a flux, isto é, recebo a tua luz em grande quantidade.

sonhar é para a noite: quando se está a dormir, sem consciência de si & do entorno: sonhar é como morrer.

sonhar é para a noite: mas para o dia, ver!

sim, ver com ambos os olhos, com ambos devassar os astros & os deuses sobre o altar em que residem, com ambos os olhos devassar, ver onde firmamos os pés & erguemos nossas mãos.

e quer nos montes altos, quer nos terrenos chãos, a terra é sempre amiga se, à luz da aurora, à luz do alvorecer, a terra se erguer.

pois, à luz da aurora, à luz do alvorecer, conseguimos bem ver em que tipo de terreno pisamos — se perigoso porque movediço, ou se seguro porque sólido.

e quer nos montes altos, quer nos terrenos chãos, é sempre bom viver se, ao amor, a vida se erguer.

pois, à luz do amor, à luz de sentimento tão nobre, a vida entrega-se pródiga, a vida permite-se longânime, a vida propõe-se elevada & inventiva.

em toda a parte, as ondas desse mar, infinito no horizonte, por mais que andemos longe, nos podem embalar se tivermos o mar conosco, dentro de nós.

em toda a parte, o peito sente brotar a flux, sente brotar em profusão, e sempre & de maneira farta, a vida…

vida: calor & luz!

nos seixos dessas praias, se o sol lá lhes bater, num átomo de areia, deus pode aparecer: deus pode erguer-se à luz solar: pois se considerarmos real a existência de deus e, a partir da sua existência, a sua presença em todas as coisas (como dizem os que nele crêem), então deus é flores & árvores & mares & rios & céus & bichos & gentes. se assim o é, então intitulemo-lo flores & árvores & mares & rios & céus & bichos & gentes.

desprezos para a terra, como se ela fosse menos que o paraíso oferecido nas alturas?! também a terra é céu! afinal, para quem nele crê, deus está em tudo que há no mundo, deus está nas coisas terrenas (nas flores nas árvores nos mares nos rios nos céus nos bichos nas gentes); e a terra que pisamos, em verdade, está suspensa no espaço sideral, a terra é um componente estelar se avistada de fora (se observada da lua, por exemplo).

a terra mora no céu.

e quem, lá desse espaço infinito denominado sideral, vir a terra brilhar ao longe, dirá que é paraíso & um éden a sorrir.

(o melhor lugar do mundo é aqui & agora. os momentos felizes não estão escondidos nem no passado & nem no futuro.)

há quem propale que este mundo é ruim, nocivo, porque não moramos junto às estrelas no céu; não morando junto às estrelas, para alguns, vivemos “embaixo”.

mas a terra, que é nossa morada, esta habita o céu! portanto: o que é exatamente “embaixo”? e, ainda que consideremos morar “embaixo”, que tem estar “embaixo”, qual seria o problema de morar “embaixo” de alguma coisa?

ninguém nos condenou à eterna noite, ninguém nos condenou à eterna escuridão, ninguém nos condenou à eterna sombra, ninguém!

a luz solar tudo alcança!

não! não há “céu” & “inferno”: divino é quanto é! divino é o existir!

para que a rocha brilhe, basta que o sol lhe dê a sua luz. basta que o sol beije a lua para que ela, apagada nas alturas, se transforme em sol também.

e a escuridão da nossa alma, as trevas que nos povoam, a nossa cerração, como se desbarata, como se dissipa, como se afasta, com a aurora da razão!

a razão crítica pesa & pondera. a razão crítica se informa & estuda. é a razão crítica que nos faz ser o lobo do lobo do homem. é a razão crítica que nos impede de terminar ovelhas no bolso de um pastor.

e se a razão, surgindo, esclareceu, clareou, a nossa alma, também tu, sol, no espaço, surges como razão do céu azul que avistamos na festa das retinas.

por isso é que me alegras o coração, ó luz!

por isso vos estimo, luzes maiores da minha existência: tu, sol, e tu, razão!

(luz, quero luz! mais, quero mais! nem que todos os barcos recolham ao cais, que os faróis da costeira me lancem sinais! arranca, vida! estufa, vela! me leva, leva longe, longe, leva mais!)

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Antologia. autor: Antero de Quental. organização: José Lino Grünewald. editora: Nova Fronteira.)
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LUZ DO SOL, LUZ DA RAZÃO

 

Tu, sol, é que me alegras!
A mim e ao mundo. A mim…
Que eu não sou mais que o mundo,
Nem mais que o céu sem fim…

Nem fecho os olhos baços
Só porque os fere a luz…
Ergo-os acima — e embora
Cegue, recebo-a a flux!

Crepúsculos são sonhos…
E sonhos é morrer…
Sonhar é para a noite:
Mas para o dia, ver!

Sim, ver com os olhos ambos,
Com ambos devassar
Os astros n’essa altura,
E os deuses sobre o altar!

Ver onde os pés firmamos,
E erguemos nossas mãos!
E quer nos montes altos,
Quer nos terrenos chãos,

É sempre amiga a terra
E é sempre bom viver,
Se a terra à luz da aurora
E a vida ao amor se erguer!

Em toda a parte as ondas
D’esse infinito mar,
Por mais que andemos longe,
Nos podem embalar!

Em toda a parte o peito
Sente brotar a flux,
E sempre e à farta, a vida…
Vida — calor e luz!

Nos seixos d’essas praias,
Se o sol lá lhes bater,
N’um átomo de areia,
Deus pode aparecer!

Bate-lhe o sol de chapa,
E um deus se vê também
No pó, tornado um astro
Como esses que o céu tem!

Desprezos para a terra?!
Também a terra é céu!
Também no céu a impele
O amor que a suspendeu…

E quem lá d’esse espaço
Brilhar ao longe a vir
Dirá que é paraíso
E um éden a sorrir!

Embaixo! o que é embaixo?
Embaixo estar que tem?
Ninguém à eterna sombra
Nos condenou! ninguém!

Se até nos surdos antros,
Nas covas dos chacais,
Penetra o sol, vestindo-os
Com raios triunfais

Se ao céu até se viram
As bocas dos vulcões…
E têm os próprios cegos
Um céu… nos corações!

Não! não há céu e inferno:
Divino é quanto é!
Para que a rocha brilhe,
Basta que o sol lhe dê…

Basta que o sol lhe beije
As chagas que ela tem,
E a morta d’essa altura,
A lua, é sol também!

E as trevas da nossa alma,
A nossa cerração,
Oh! como se desbarata
A aurora da razão!

Mas se a razão, surgindo,
Nossa alma esclareceu,
Também tu, sol, no espaço
Surges, razão do céu…

Por isso é que me alegras,
Ó luz, o coração!
Por isso vos estimo…
Tu, sol, e tu, razão!

(1865.)

MUSA DA INSPIRAÇÃO: CAIA ESTE CÉU SOBRE MIM
14 de abril de 2012

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Há mulheres que se pintam de caulim (argila branca, espécie de barro branco), na Costa do Marfim (África), para o deus louvar.

Eu também me pinto, deixo caiada a minha alma, caiados os meus sentidos, para o luar, em mim, derramar a sua prata.

Ó lua, ó musa da inspiração, ó musa dos amantes, ó musa dos notívagos, ó musa dos insones: faça com que caia, isto é, faça com que desabe, por sobre mim, este céu sem fim que você habita.

Ó lua, ó musa da inspiração, faça com que caia, sobre mim, este céu sem fim, isto é, faça com que este céu sem fim seja pintado em mim, ó musa da inspiração, e que, assim, com o céu pintado & desabado por sobre mim, eu reúna apenas o que seja da natureza celeste:

sentimentos os mais altos, quereres os mais elevados, vontades as mais altivas.

(Que assim seja.)

Beijo todos!

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HÁ MULHERES  (autora: Vania Borges)

Há mulheres que se pintam de caulim
Na Costa do Marfim
Para o deus louvar

Eu também me pinto
Para o luar, em mim
A prata derramar

Ó Musa da inspiração!
Ó Musa da inspiração!
Ó Musa da inspiração!

Caia sobre mim
Este céu sem fim

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(do site: Youtube. canção: Há mulheres. autora: Vania Borges. intérprete: Rita Ribeiro.)

UM FELINO GRÁVIDO DE PALAVRAS
7 de março de 2012

(Paulo Sabino & seu felino enjaulado no peito, grávido de palavras.)_____________________________________________________________

eu,

paulo sabino,

sou um preto.
 
eu,
 
paulo sabino,
 
negro sou,
 
orgulhosamente bem-nascido à sombra dos palmares, orgulhosamente bem-nascido à sombra dos palmeirais do meu brasil varonil, e também orgulhosamente bem-nascido à sombra dos palmares, à sombra do quilombo que se tornou o grande símbolo da resistência negra contra a escravidão, orgulhosamente bem-nascido à sombra das tantas lutas que me possibilitam, hoje, preto, ser quem eu sou.
 
eu,
 
paulo sabino,
 
orgulhosamente bem-nascido à sombra da chamada grande democracia racial, ocidental, tropical…
 
(isso me faz lembrar que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”…)
 
sou bem um outdoor de preto, body and soul, com a cara para o luar (porque um alucinado pela lua, por suas fases & seu brilho prata), sou bem um outdoor de preto com a cara para o luar, como a noite (minha amante aventurosa) quando alta, sou bem um outdoor de preto (com a cara para o luar) inflando a percussão do peito, inflando a percussão trabalhada pelo músculo oco que me habita, feito um anjo feliz.
 
um anjo feliz. 
 
um livre livro.
 
livro que escreve a sua história ao passo em que vive a sua escrita existencial, a escrita dos fatos, dos acontecimentos. nada já riscado, nada já rabiscado, como quando um quadro-negro atrás de um giz: um quadro negro atrás de um giz é um quadro-negro já riscado, já rabiscado, com linhas já delineadas em sua superfície (que também é o fundo do quadro). livro com suas linhas a serem desenhadas.
 
eu,
 
paulo sabino:
 
um anjo feliz.
 
um livre livro.
 
e também o sangue de outras sagas, o sangue de outras narrativas fecundas em incidentes.
 
e também o brilho de outros breus, o brilho de outras escuridões que necessitaram resplandecer em lágrima, resplandecer em dor, resplandecer em sangue, em solidão, para que eu, paulo sabino, um preto, possa falar, hoje, aos senhores.
 
negro é feito cana no moedor: sofre & tira mel da própria dor. 
 
(vide o samba, que é a tristeza que balança — e a tristeza tem sempre uma esperança: a de, um dia, não ser mais triste, não…)
 
negro resiste: quanto mais me matam, mais eu sobrevivo.
 
e vou tocando os passos (avante!), vou tocando ginga (jogo de cintura para com a vida), vou tocando, e, com meu “toque”, vou a deitar sangue (vermelho, sangue-vida, sangue-paixão, sangue-sentimento) nos cruzamentos, vou colorindo a palidez dos que não têm cor (apesar do absurdo, os negros, ainda hoje, por alguns, são chamados de “gente de cor”), vou colorindo a palidez daqueles a quem peço piedade.
 
eu,
 
paulo sabino,
 
sou um preto,
 
sou um negro,
 
rigorosamente um negro, à sombra dos palmares (como já lhes disse), à sombra da grande democracia/demagogia racial, ocidental:
 
tropicálice!, democracia tropical à base do vinho tinto de sangue (sangue pisado, pisado por mortes sumárias & humilhações sociais), democracia tropical à base do “cale-se!”, à base do “cala boca, porra, que eu não tô a fim de ouvir discurso humanitário!”, democracia tropical à base da sentença de morte promulgada, por exemplo, por arbitrárias (abusivas, despóticas, violentas) milícias civis & do estado, democracia tropical à base de porrada na nuca de malandros pretos.
 
(lembrar: “a carne mais barata do mercado é a carne negra”…)
 
mas negro resiste: quanto mais me matam, mais eu sobrevivo.
 
negro é feito cana no moedor: sofre & tira mel da própria dor.
 
mel da própria dor:
 
dentro da jaula do peito, meu coração é um leão faminto, leão ávido a devorar tudo o que vê & encontra pela frente, leão que devassa a madrugada como um felino atento à órbita da urbe, atento ao movimento da cidade capturada pelos sentidos aguçados da fera, e atento à têmpera (ao modo, ao estilo, ao gosto) do tempo, compositor de destinos, tambor de todos os ritmos.
 
meu coração já foi casa de marimbondos (com seus ferrões a postos), já foi covil de serpentes (com seus dentes afiados a postos), já foi um sol sob nuvens (com o mau tempo a postos, tapando o brilho do astro-rei).
 
mas ele, meu coração (um leão faminto que devassa a madrugada), sabe vestir a calma de uma floresta sem pássaros (aparente quietude…), enquanto rosna em sigilo, afiando as garras para o próximo salto…
 
meu coração é uma grande cidade com seus engarrafamentos de concreto, uma grande cidade com suas impossibilidades de circulação, coração entupido, coração repleto do que não consegue espaço para locomoção, e ali fica, inerte. para o que “poderia ter sido” não há portas de emergência, não há saídas possíveis.
 
falharam todos os despachos em prol de saídas ao que “poderia ter sido”. falharam todos os medicamentos.
 
o que “poderia ter sido” permanece estagnado no meu coração como as coisas nos engarrafamentos de concreto de uma grande cidade.
 
o que “poderia ter sido”: estagnado, em estado estacionário, paralisado: no peito aprisionado, feito assombração.
 
como um soldado no front, como um soldado na linha de frente de combate, tenho os meus medos, as minhas inseguranças. tenho medos, inseguranças, de viver determinados perigos existenciais. estes, naturalmente, permanecem enjaulados no peito, não seguem adiante (no front), são postos para fora de combate. 
 
porém,
 
eu,
 
paulo sabino,
 
um preto,
 
acumulo assombramentos e, com eles, também palavras.
 
por sorte — quis a vida — estou grávido de palavras. 
 
estou carregado de palavras. 
 
estou prenhe de todas elas.
 
e contra os engarrafamentos & ressentimentos & envenenamentos que possam surgir:
 
palavras!
 
(elas me salvam de todo mal.)
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: A cor da palavra. autor: Salgado Maranhão. editora: Imago.)
 
 
 
NEGRO SOUL
 
                                   Para Edimilson de Almeida Pereira e Éle Semog
 
 
sou um negro,
orgulhosamente bem-nascido
à sombra dos palmares,
da grandemocracia
racial
ocidental
tropical.
 
sou bem um outdoor
de preto
com a cara pro luar
inflando a percussão
do peito
feito um anjo feliz.
 
sou mais que um quadro-negro
atrás de um giz: um livre livro.
e sangue de outras sagas;
e brilho de outros breus:
quanto mais me matam
mais eu sobrevivo.
 
(negro é feito cana no moedor,
sofre e tira mel da própria dor.)
 
vou tocando passos,
vou tocando ginga,
vou tocando, vou
a deitar sangue
nos cruzamentos,
colorindo a palidez
dos que não têm cor.
 
sou um negro,
rigorosamente um negro,
à sombra dos palmares
da grandemagogia
racial
ocidental
tropicálice!
 
 
 
FELINO
 
 
dentro da jaula do peito
meu coração é um leão faminto
que devassa a madrugada
como um felino atento
seguindo a órbita da urbe
e a têmpera do tempo.
já foi casa de marimbondos,
já foi covil de serpentes,
já foi um sol sob nuvens.
vez em quando veste a calma
de uma floresta sem pássaros,
enquanto rosna em sigilo,
afiando as garras para o próximo salto.
 
 
 
ESTADO DE ÂNIMO
 
 
meu coração é uma grande cidade
com seus engarrafamentos de concreto.
 
não há portas de emergência
para o que poderia ter sido.
 
falharam todos os despachos.
falharam todos os medicamentos.
 
como um soldado no front
morro de assombração
diante do perigo.  
 
e estou grávido de palavras.

UMA CRIATURA: LUA NOVA, MINHA MUSA
8 de setembro de 2011

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sei de uma criatura antiga, muito antiga, que devora os próprios membros & entranhas com a sofreguidão da fome insaciável.
 
a criatura habita, ao mesmo tempo, os vales & as montanhas. no mar, espreguiça-se em convulsões.
 
a criatura traz, na fronte, o obscuro despotismo. é ela que sempre dá a palavra final, por isso parece estar entre o amor & o egoísmo.
 
a criatura contempla, friamente, o desespero & o gozo; gosta do colibri assim como gosta do verme, e põe ao redor do seu coração o belo & o monstruoso.
 
duas realidades divergentes — o belo & o monstruoso — coexistem no coração da criatura.
 
para ela, o chacal é tão inerme, tão inofensivo, quanto um passarinho, e passeia na terra, imperturbável criatura, como caminha um paquiderme num vasto areal.
 
a criatura está em toda obra: cria & destrói.
 
a criatura, depois de fazer rebentar o primeiro gomo numa árvore, e fazer vir a folha, que lenta se dosdobra, para então a flor e, por último, o suspirado pomo, a criatura, depois de todo esse trabalho de realizações, a criatura cresta, queima, o seio da flor e corrompe-lhe o fruto.
 
(é nesse “destruir” que as suas forças se renovam & dobram.)
 
a criatura ama de igual amor o poluto & o impoluto, ama de igual amor o belo & o monstruoso, e seu despotismo habita um lugar entre o amor & o egoísmo, entre a bondade & a brutalidade.
 
a criatura começa & recomeça numa lida perpétua.
 
a criatura déspota: a vida.
 
começar & recomeçar: eis o ciclo infindo da vida; inicia & finda, finda & inicia, como a lua, que, do crescente ao miguante, varia.
 
começar & findar, findar & recomeçar: eis os ciclos da vida & da lua.
 
lua nova: na teogonia indígena, “jaci”, mãe dos frutos, deusa que presidia a vida vegetal, a quem os indígenas faziam grandes festas, com comida & bebida, cantos & danças.
 
jaci, mãe dos frutos: lua nova, lua cujo rosto é encoberto por um amplo véu, deixando à mostra somente um filete do seu brilho.
 
lua nova, lua que apresenta, e representa, um novo ciclo, lua que representa o renascimento, que representa o novo início:
 
jaci, vós que sois mãe dos frutos,
 
abençoai os meus. que os frutos que vos sirvo possam saciar a fome de quem desejar comê-los.
 
que, na dura peleja, o olho adverso, o olho divergente, o olho indesejado, não veja este braço cair frouxo, que os frutos-poemas alcancem, sempre, a minha mão.
 
na dura peleja, seja mais longa a vida, seja mais duradoura a jornada, e que, durante o percurso, exista o benefício de ver vencidos os arcos contrários.
 
jaci, mãe dos frutos, peço a vós o vosso germe, germe que faz brotar, enfolhar, verdejar, germe que se abre em flor.
 
que vingue o vosso germe fecundo em mim, mãe dos frutos, em mim & em minha musa.
 
minha musa:
 
é ela que inspira meus cantos.
 
é doce & risonha, se o amor lhe sorri.
 
é grave & saudosa, se a saudade lhe carpir.
 
a musa me inspira os meus cantos de prece, cantos de prece endereçados à “criatura”; a musa desperta a crença de que, um dia, tudo tudo tudo vai dar pé, de que, um dia, o brasil (terra gigante, meu berço infantil, um nome de afetos na idéia) faça jus aos tantos brasileiros que lutam por um lugar melhor para todos.
 
a musa que inspira meus cantos é LIVRE.
 
 a musa que inspira meus cantos DETESTA os preceitos da opressão.
 
a musa que inspira meus cantos ABOMINA rótulos & conchavos.
 
a musa que inspira meus cantos não está comprometida com “panelinhas”, nem com “grupinhos”, nem com estilo & escola literários.
 
a minha musa é deveras severa; ela está comprometida, unica & exclusivamente, com a poesia.
 
o aroma da esperança, o aroma de tempos melhores, que recende, que exala, na minha alma, é a musa que aspira, no cálix (no cálice) da flor.
 
é a musa que me acende o estro (o entusiasmo artístico, o gênio criador) na fronte.
 
é a musa que inspira meus versos de amor.
 
(de amor à vida & às suas ambientações.)
 
beijo todos!
paulo sabino. 
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(do livro: A poesia completa. autor: Machado de Assis. organização: Rutzkaya Queiroz dos Reis. editoras: Edusp / Nankin Editorial.)
 
 
 
UMA CRIATURA
 
Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas,
Com a sofreguidão da fome insaciável.
 
Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.
 
Traz impresso na fronte o obscuro despotismo,
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.
 
Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.
 
Para ela o chacal é, como a rola, inerme;
E caminha na terra imperturbável, como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme.
 
Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se desdobra,
Depois a flor, depois o suspirado pomo.
 
Pois essa criatura está em toda a obra:
Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;
E é nesse destruir que as suas forças dobra.
 
Ama de igual amor o poluto e o impoluto;
Começa e recomeça uma perpétua lida,
E sorrindo obedece ao divino estatuto.
Tu dirás que é a Morte: eu direi que é a Vida.
 
 
 
LUA NOVA
 
Mãe dos frutos, Jaci, no alto espaço
Ei-la assoma serena e indecisa:
Sopro é dela esta lânguida brisa
Que sussurra na terra e no mar.
Não se mira nas águas do rio,
Nem as ervas do campo branqueia;
Vaga e incerta ela vem, como a ideia
Que inda apenas começa a espontar.
 
E iam todos; guerreiros, donzelas,
Velhos, moços, as redes deixavam;
Rudes gritos na aldeia soavam,
Vivos olhos fugiram pr’a o céu:
Iam vê-la, Jaci, mãe dos frutos,
Que, entre um grupo de brancas estrelas,
Mal cintila: nem pode vencê-las,
Que inda o rosto lhe cobre amplo véu.

E um guerreiro: “Jaci, doce amada,
Retempera-me as forças; não veja
Olho adverso, na dura peleja,
Este braço já frouxo cair.
Vibre a seta, que ao longe derruba
Tajaçu, que roncando caminha;
Nem lhe escape serpente daninha,
Nem lhe fuja pesado tapir.”

E uma virgem: “Jaci, doce amada,
Dobra os galhos, carrega esses ramos
Do arvoredo co’os frutos que damos
Aos valentes guerreiros, que eu vou
A buscá-los na mata sombria,
Por trazê-los ao moço prudente,
Que venceu tanta guerra valente,
E estes olhos consigo levou.”

E um ancião, que a saudara já muitos,
Muitos dias: “Jaci, doce amada,
Dá que seja mais longa a jornada,
Dá que eu possa saudar-te o nascer,
Quando o filho do filho, que hei visto
Triunfar de inimigo execrando,
Possa as pontas de um arco dobrando
Contra os arcos contrários vencer.”

E eles riam os fortes guerreiros,
E as donzelas e esposas cantavam,
E eram risos que d’alma brotavam,
E eram cantos de paz e de amor.
Rude peito criado nas brenhas,
— Rude embora, — terreno é propício;
Que onde o germe lançou benefício
Brota, enfolha, verdeja, abre em flor. 

 
 
 
MINHA MUSA
 
A Musa, que inspira meus tímidos cantos,
É doce e risonha, se amor lhe sorri;
É grave e saudosa, se brotam-lhe os prantos,
Saudades carpindo, que sinto por ti.
 
A Musa, que inspira-me os versos nascidos
De mágoas que sinto no peito a pungir,
Sufoca-me os tristes e longos gemidos,
Que as dores que oculto me fazem trair.
 
A Musa, que inspira-me os cantos de prece,
Que nascem-me d’alma, que envio ao Senhor,
Desperta-me a crença, que às vezes dormece
Ao último arranco de esp’ranças de amor.
 
A Musa, que o ramo das glórias enlaça,
Da terra gigante — meu berço infantil,
De afetos um nome na ideia me traça,
Que o eco no peito repete: — Brasil!
 
A Musa, que inspira meus cantos é livre,
Detesta os preceitos da vil opressão,
O ardor, a coragem do herói lá do Tibre,
Na lira engrandece, dizendo: — Catão!
 
O aroma da esp’rança, que n’alma recende,
É ela que me aspira, no cálix da flor;
É ela que o estro na fronte me acende,
A Musa que inspira meus versos de amor!