UM POUCO DE SILÊNCIO
4 de maio de 2012

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nesta trepidante cultura nossa, da agitação e do barulho, gostar de sossego é uma excentricidade.

sob a pressão do ter de parecer, ter de participar, ter de adquirir, ter de qualquer coisa, assumimos uma infinidade de obrigações.

é indispensável, em tempos modernos, circular, estar enturmado. quem não corre com a manada, quem não se apressa com a multidão inquieta, praticamente nem existe. se não se cuidar, botam numa jaula: um animal estranho.

ficar sossegado é perigoso. porque sossegar significa recolher-se em algum lugar (ou em casa, ou dentro de si mesmo), ação que propicia um contato mais fundo com quem — ou o que — somos, ato que ameaça quem leva um susto cada vez que examina sua alma.

ficar sossegado: recolher-se (ou em casa, ou dentro de si): ouvir a voz do silêncio.

o silêncio nos assusta por retumbar, por ressoar, no vazio (no oco, no desabitado, no desértico, no árido) dentro de nós. quando em silêncio, quando nada se move nem faz barulho, notamos as frestas, as fendas, por onde nos espiam coisas incômodas & mal resolvidas, ou enxergamos outro ângulo de nós mesmos.

em silêncio, um contato mais fundo com quem — ou o que — somos: “quem é esse que afinal sou eu? quais seus desejos & medos, seus projetos & sonhos?”

no susto que essa idéia provoca, a de tocar nas coisas incômodas & mal resolvidas, queremos ruído, almejamos ruídos, muitos ruídos, certa poluição sonora, a fim de que os ruídos nos distraiam & nos distanciem das coisas incômodas & mal resolvidas, coisas que, muitas vezes, não queremos perceber porque a percepção destas incita mudanças, e mudar coisas incômodas & mal resolvidas não é fácil, não…

silêncio faz pensar, remexe águas paradas, trazendo à tona sabe deus que desconserto, que desarranjo, que desordem, que estrago nosso…

com medo de ver quem — ou o que — somos, adia-se o defrontamento com nossa alma sem máscaras. com medo de ver, adia-se o defrontamento com nossa alma sem afetações, sem os maneirismos que não correspondem, sem as armaduras que nos tornam inacessíveis, que nos deixam fora do alcance de nós mesmos.

porém contudo todavia, se a gente aprende a gostar um pouco de sossego, descobre — em si & no outro — regiões antes não imaginadas, questões fascinantes & não necessariamente ruins.

no processo do autoconhecimento (processo que requer quietude, sossego, silêncio), questões são reafirmadas; há o prazer do reencontro com questões que alegram & animam o ser de ser & estar.

a quietude pode ser como a chuva que, atentos ao ar, observamos chegar: intensa & lenta, tornando tudo singularmente novo.

nela, na quietude, a gente se refaz para voltar mais inteiro ao convívio, às tarefas, aos amores.

(aquietar-se é preciso, viver não é preciso…)

então, por favor, me dêem isso: um pouco de silêncio bom, para que eu escute o vento nas folhas, a chuva nas lajes, o mar que quebra na areia, e tudo o que fala muito além das palavras de todos os textos & muito além da música dos sentimentos: o grito do silêncio. sua voz inaudita, voz de vazio, voz oca, voz que possibilita o diálogo entre tantas vozes outras, vozes que surgem do (aparente) vazio dentro de nós, e que retumbam, e que ressoam, vozes que se reafirmam satisfeitas, vozes que pedem mudanças, vozes que precisam ser encaradas & resolvidas se necessário.

ouvir a voz do silêncio: a pedra, toda exterioridade, um silêncio absoluto defronte para o mar: ouvir o que sua voz tem a nos ventar.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Pensar é transgredir. autora: Lya Luft. editora: Record.)

 

UM POUCO DE SILÊNCIO

 

Nesta trepidante cultura nossa, da agitação e do barulho, gostar de sossego é uma excentricidade. Sob a pressão do ter de parecer, ter de participar, ter de adquirir, ter de qualquer coisa, assumimos uma infinidade de obrigações. Muitas desnecessárias, outras impossíveis, algumas que não combinam conosco nem nos interessam.

Não há perdão nem anistia para os que ficam de fora da ciranda: os que não se submetem mas questionam, os que pagam o preço de sua relativa autonomia, os que não se deixam escravizar, pelo menos sem alguma resistência.

O normal é ser atualizado, produtivo e bem-informado. É indispensável circular, estar enturmado. Quem não corre com a manada praticamente nem existe, se não se cuidar botam numa jaula: um animal estranho.

Acuados pelo relógio, pelos compromissos, pela opinião alheia, disparamos sem rumo — ou em trilhas determinadas — feito hâmsteres que se alimentam de sua própria agitação.

Ficar sossegado é perigoso: pode parecer doença. Recolher-se em casa ou dentro de si mesmo, ameaça quem leva um susto cada vez nos que examina sua alma.

Estar sozinho é considerado humilhante, sinal de que não se arrumou ninguém — como se amizade ou amor se “arrumasse” em loja. Com relação a homem pode até ser libertário: enfim só, ninguém pendurado nele controlando, cobrando, chateando. Enfim, livre!

Mulher, não. Se está só, em nossa mente preconceituosa é sempre porque está abandonada: ninguém a quer.

Além do desgosto pela solidão, temos horror à quietude. Logo pensamos em depressão: quem sabe terapia e antidepressivo? Criança que não brinca ou salta nem participa de atividades frenéticas está com algum problema.

O silêncio nos assusta por retumbar no vazio dentro de nós. Quando nada se move nem faz barulho, notamos as frestas pelas quais nos espiam coisas incômodas e mal resolvidas, ou se enxerga outro ângulo de nós mesmos. Nos damos conta de que não somos apenas figurinhas atarantadas correndo entre casa, trabalho e bar, praia ou campo.

Existe em nós, geralmente nem percebido e nada valorizado, algo além desse que paga contas, transa, ganha dinheiro, e come, envelhece, e um dia (mas isso é só para os outros!) vai morrer. Quem é esse que afinal sou eu? Quais seus desejos e medos, seus projetos e sonhos?

No susto que essa idéia provoca, queremos ruído, ruídos. Chegamos em casa e ligamos a televisão antes de largar a bolsa ou pasta. Não é para assistir a um programa: é pela distração.

Silêncio faz pensar, remexe águas paradas, trazendo à tona sabe Deus que desconserto nosso. Com medo de ver quem — ou o que — somos, adia-se o defrontamento com nossa alma sem máscaras.

Mas, se a gente aprende a gostar um pouco de sossego, descobre — em si e no outro — regiões nem imaginadas, questões fascinantes e não necessariamente ruins.

Nunca esqueci a experiência de quando alguém botou a mão no meu ombro de criança e disse:

— Fica quietinha, um momento só, escuta a chuva chegando.

E ela chegou: intensa e lenta, tornando tudo singularmente novo. A quietude pode ser como essa chuva: nela a gente se refaz para voltar mais inteiro ao convívio, às tantas frases, às tarefas, aos amores.

Então, por favor, me dêem isso: um pouco de silêncio bom para que eu escute o vento nas folhas, a chuva nas lajes, e tudo o que fala muito além das palavras de todos os textos e da música de todos os sentimentos.

ÀS MULHERES
8 de março de 2010

Mulheres_PB
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o dia de hoje, 8 de março, é reservado internacionalmente a uma homenagem às mulheres. por essa razão, segue este poema-canção, lindíssimo, que se encaixa perfeitamente ao laurel proposto: versos que falam de mulheres, mais especificamente das mulheres do meu brasil varonil, porém possíveis de serem estendidos a todas as demais mulheres, debuxados por uma grande cantora & compositora & interpretados por outra grande companheira de profissão. eu, desde sempre, desde a minha mãe, desde as minhas tias, sou louco por mulheres, um grande fã. as que conheço & estão ao meu lado são habituadas a delicadezas. inteligentes, protetoras, perspicazes.

gosto muito de gente. gosto de escutar gente, de saber o que pensa, como anda. não seria diferente com as mulheres.

a elas, a capacidade não só de gerar, mas também de armazenar vida latente, vida pulsante. acho comovente mulher barriguda que vai ter menino.

à jurema, nely, joyce, maria, clarice, lya, lygia, marly, nélida, adélia, rachel, orides, cora, cecília, sophia, natália, florbela, cacilda, fernanda, marília, bibi, dolores, clara, gal, nana, rita, elis, elisa, alice, hilda, claudia, patrícia, zélia, e assim sucessivamente, em espiral vertiginosa: muitíssimo obrigado. por tanto, por tudo, agradeço a vocês, mulheres da minha trilha, irmãs porque a mãe natureza fez todas tão belas.

parir, gerar, criar: existir: eis a prova de destino tão valoroso.

a mulher brasileira, no alto a sua bandeira, saúda o povo & pede passagem!

que vocês, mulheres, de um modo bonito, de um modo delicado, conquistem o mundo!

um brinde a elas!

beijo todos!
paulo sabino.
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(do encarte do cd: Maria. artista: Maria Bethânia. autora dos versos: Joyce. gravadora: BMG Ariola.)

 

 

MULHERES DO BRASIL

 

No tempo em que a maçã foi inventada
Antes da pólvora, da roda e do jornal
A mulher passou a ser culpada
Pelos deslizes do pecado original
Guardiã de todas as virtudes
Santas e megeras, pecadoras e donzelas
Filhas de Maria ou deusas lá de Hollywood
São irmãs porque a Mãe Natureza fez todas tão belas
Tão belas
Ó Mãe, ó Mãe, ó Mãe
Nossa Mãe, abre teu colo generoso
Parir, gerar, criar e provar nosso destino valoroso
São donas de casa, professoras, bailarinas
Moças, operárias, prostitutas, meninas
Lá do breu das brumas vem chegando a bandeira
Saúda o povo e pede passagem a mulher brasileira
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(do site: Youtube. áudio extraído do álbum: Maria. artista & intérprete: Maria Bethânia. canção: Mulheres do Brasil. autora da canção: Joyce. gravadora: BMG Ariola.)

FILHOS POSSÍVEIS
18 de fevereiro de 2010

Nem sempre a filosofia de meus personagens tem muito a ver com a minha, nem vivo as suas trajetórias. Mas sou mãe desses que dormem dentro de mim como filhos possíveis, sementes plenas do sono do fruto. (Lya Luft)
 
Eu minto mas minha voz não mente (Caetano Veloso)
 
Meu palco: o papel. E as palavras, vestes com as quais enceno os espetáculos. (Paulo Sabino)
 
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PRECE DE LOUVOR À VIDA DE DUÍLIApara Caio Fernando Abreu e Cazuza
 
À sua fé na vida,
À sua mirífica ferida,
À sua alma bandida,
À sua força que às vezes me intriga;
 
À sua vontade suicida que me grila,
À sua carne de pó e heroína,
À sua louca pupila que cintila,
À sua coragem de atirar à revelia;
 
À sua postura de puta moralista,
À sua idéia de que é melhor sendo egoísta,
À sua audácia de não baixar a crista,
À sua maneira de partir sem deixar pista;
 
À sua atitude de escarrar na batina,
À sua trilha que em tudo é sua mina,
À sua ironia que raiva irradia,
À sua invectiva pra viver todos os dias;
 
À sua infantil rebeldia,
À sua cruz que fortifica,
À sua luz que mortifica,
À sua pus que estereliza:
 
Peço o amor que escandaliza
E o ódio que tranqüiliza
Para o ser, carente de carnificina,
Que desaceita o cagaço de viver
Como a tradução singela da sua sina.
 
Que assim seja,
Chacina.
 
 
ESFERA
 
Eu, poeta triste e distante
Das ambições e projetos deste mundo,
Convoco o sentimento dilacerante
Que consome o meu ser profundo.
 
Soturno como disse,
Não busquei espaço junto à humanidade.
Entregue ao meu mundo de sandice,
Criei escaninhos na obscuridade.
 
E agora,
Sentindo o passar da hora,
Deito o meu sono
Num dia cinza de outono.
 
E espero, deveras,
Dentro da minha esfera
Um dia claro de primavera.
 
(poemas de Paulo Sabino.)
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beijo em vocês.

NO RIO DO MEIO, VELHOS E JOVENS
11 de fevereiro de 2010

o rio do meio: a existência que nos escorre tempo afora.
 
o ato do escritor: o tempo transcorrido em palavras, transposto a partir da existência de quem o escreve.
 
sou dos que escrevem como quem assobia no escuro: vagar à beira do poço interior observando os vultos no fundo, misturados com minha imagem refletida na superfície. não vigio em quartos fechados, mas amo o vasto mar. não me atraem as sombras mas o sol. e minha literatura não emerge de águas tranqüilas, tantas as perplexidades vivenciadas.
 
nem sempre a filosofia dos meus personagens tem muito a ver com a minha, nem vivo as suas trajetórias. mas sou pai desses que dormem dentro de mim como filhos possíveis.
 
seja qual for o modo, escrever é uma forma de fazer valer a trilha escura.
 
digo e repito quantas vezes necessárias (isto é uma idéia que tenho para um novo poema): meu palco é o papel. e as palavras, vestes com as quais enceno os espetáculos.
 
inventemos as nossas ficções! (tenhamos a criança conosco, como adélia a jonathan.)
 
sobre o rio do meio, fica a lição:
 
No meio do caminho dessa vida
Vinda antes de nós
E estamos todos a sós
No meio do caminho dessa vida
E estamos todos no meio
Quem chegou e quem faz tempo que veio
Ninguém no início ou no fim
Antes de mim
Vieram os velhos
Os jovens vieram depois de mim
E estamos todos aí
 
(Velhos e Jovens, parceria de Arnaldo Antunes e Péricles Cavalcanti)
 
aproveitem-no — o rio do meio —, aproveitem as suas águas enquanto tais águas não ensecarem.
 
beijo em vocês,
o preto.
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(do livro: O rio do meio. trecho do capítulo: Assobiando no escuro. autora: Lya Luft. editora: Record.)
 
 
Há temas que se repetem, perguntas que se perpetuam; inquietações coincidem entre o escritor e seus leitores, entre quem dá algum depoimento e quem assiste.
 
“Por que você escreve?” é a primeira e universal indagação.
 
Um escritor respondeu que se parasse de escrever morreria, portanto escrevia para não morrer; uma mulher dizia que escrevia para não enlouquecer, outra revela que o faz para ser amada.
 
Sou dos que escrevem como quem assobia no escuro: falando do que me deslumbra ou assusta desde criança, dialogando com o fascinante — às vezes trevoso — que espreita sobre nosso ombro nas atividades mais cotidianas. Fazer ficção é, para mim, vagar à beira do poço interior observando os vultos no fundo, misturados com minha imagem refletida na superfície.
 
Tudo isso é jogo — contraponto da vida concreta, onde não me atraem as sombras mas o sol. Não vigio em quartos fechados, mas amo o vasto mar; não me esgueiro, mas, apesar de todas as fragilidades, avanço.
 
Minha literatura não emerge de águas tranqüilas: fala de minhas perplexidades enquanto ser humano, escorre de fendas onde se move algo que, inalcançável, me desafia. Escrevo quase sempre sobre o que não sei.
 
O artista — na minha linha de trabalho, gente da minha espécie — guarda a visão mágica da infância, quando o real e o imaginado convivem sem problemas. As entrelinhas — mais importantes do que as linhas — espelham essa dança de máscaras e desvendamentos.
 
Criar personagens trágicos não significa que o autor seja pessimista: muitos humoristas são calados e deprimidos. Nem sempre a filosofia de meus personagens tem muito a ver com a minha, nem vivo as suas trajetórias. Mas sou mãe desses que dormem dentro de mim como filhos possíveis, sementes plenas do sono do fruto. 
 
É preciso não sucumbir quando naufragam. O que nos resguarda? Que mão nos segura à margem? Talvez a crença de que tudo faz parte do mesmo fluir: amor e solidão, nascimento e morte, entrega e decepção. De que algum sentido existe — o essencial, que nossa inquietação procura.
 
Tenho um olho otimista que vive (e convive) e um olho pensativo: este, contempla, perscruta, inventa suas ficções.

A MÁXIMA TRANSGRESSÃO: PENSAR-SE
25 de janeiro de 2010

senhores,
 
a seguir, belíssima crônica que trata da audácia de pensar-se: tirar os disfarces, aposentar as máscaras, e reavaliar-se — isso, mais ou menos, sou eu. isso é o que eu queria ser, acredito ser, quero me tornar ou já fui —.
 
a reinvenção deve ser a tônica. e o ser: a metamorfose ambulante.
 
ser a metamorfose ambulante não é trabalho superficial, simples, ordinário. exige ousadia, exige arrojo, audácia, posto que pensar é uma transgressão, uma vez que pensar é transgredir a ordem do superficial, do simples, do ordinário, que nos pressionam tanto.
 
o autoconhecimento: até para sabermo-nos melhores não-sabedores das coisas que não sabemos.
 
olhar para dentro a fim de conhecer melhor o que vai fora. olhar para dentro e sair para as varandas de si mesmo, a fim de enxergar o que nos rodeia, o que nos cerca, o entorno. 
 
pensar-se: a máxima transgressão: muita inquietação por baixo das águas do cotidiano.
 
escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for.
 
(escapemos todos!)
 
beijo bom nocês!
o preto.
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(do livro: Pensar é transgredir. autora: Lya Luft. editora: Record.)
 
 
PENSAR É TRANSGREDIR
 
Não lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente reinvenção de nós mesmos — para não morrermos soterrados na poeira da banalidade embora pareça que ainda estamos vivos.
 
Mas compreendi, num lampejo: então é isso, então é assim. Apesar dos medos, convém não ser demais fútil nem demais acomodada. Algumas vezes é preciso pegar o touro pelos chifres, mergulhar para depois ver o que acontece: porque a vida não tem de ser sorvida como uma taça que se esvazia, mas como o jarro que se renova a cada gole bebido.
 
Para reinventar-se é preciso pensar: isso aprendi muito cedo.
 
Apalpar, no nevoeiro de quem somos, algo que pareça uma essência: isso, mais ou menos, sou eu. Isso é o que eu queria ser, acredito ser, quero me tornar ou já fui. Muita inquietação por baixo das águas do cotidiano. Mais cômodo seria ficar com o travesseiro sobre a cabeça e adotar o lema reconfortante: “Parar pra pensar, nem pensar!”
 
O problema é que quando menos se espera ele chega, o sorrateiro pensamento que nos faz parar. Pode ser no meio do shopping, no trânsito, na frente da tevê ou do computador. Simplesmente escovando os dentes. Ou na hora da droga, do sexo sem afeto, do desafeto, do rancor, da lamúria, da hesitação e da resignação.
 
Sem ter programado, a gente pára pra pensar.
 
Pode ser um susto: como espiar de um berçário confortável para um corredor com mil possibilidades. Cada porta, uma escolha. Muitas vão se abrir para um nada ou para algum absurdo. Outras, para um jardim de promessas. Alguma, para a noite além da cerca. Hora de tirar os disfarces, aposentar as máscaras e reavaliar: reavaliar-se.
 
Pensar pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto.
 
Somos demasiado frívolos: buscamos o atordoamento das mil distrações, corremos de um lado a outro achando que somos grandes cumpridores de tarefas. Quando o primeiro dever seria de vez em quando parar e analisar: quem a gente é, o que fazemos com a nossa vida, o tempo, os amores. E com as obrigações também, é claro, pois não temos sempre cinco anos de idade, quando a prioridade absoluta é dormir abraçado no urso de pelúcia e prosseguir, no sono, o sonho que afinal nessa idade ainda é a vida.
 
Mas pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a alma no espelho: é sair para as varandas de si mesmo e olhar em torno, e quem sabe finalmente respirar.
 
Compreender: somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequeno segredo individual. É o poderoso ciclo da existência. Nele todos os desastres e toda a beleza têm significado como fases de um processo.
 
Se nos escondermos num canto escuro abafando nossos questionamentos, não escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem compreenderemos que o prato das inevitáveis perdas pode pesar menos do que o dos possíveis ganhos.
 
Os ganhos ou os danos dependem da perspectiva e possibilidades de quem vai tecendo a sua história. O mundo em si não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem.
 
Viver, como talvez morrer, é recriar-se: a vida não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada. Conscientemente executada. Muitas vezes, ousada.
 
Parece fácil: “escrever a respeito das coisas é fácil”, já me disseram. Eu sei. Mas não é preciso realizar nada de espetacular, nem desejar nada excepcional. Não é preciso nem mesmo ser brilhante, importante, admirado.
 
Para viver de verdade, pensando e repensando a existência, para que ela valha a pena, é preciso ser amado; e amar; e amar-se. Ter esperança; qualquer esperança.
 
Questionar o que nos é imposto, sem rebeldias insensatas mas sem demasiada sensatez. Saborear o bom, mas aqui e ali enfrentar o ruim. Suportar sem se submeter, aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade.
 
Sonhar, porque se desistimos disso apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena. Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for.
 
E que o mínimo que a gente faça seja, a cada momento, o melhor que afinal se conseguiu fazer.

EROS E PSIQUE
21 de agosto de 2009

certa vez, perguntada por um jornalista sobre quem, na sua opinião, é a maior atriz do brasil, fernanda montenegro, uma das maiores, senão a maior atriz do país, respondeu, categórica: maria bethânia.

tenho muito a dizer sobre bethânia, sobre minha mãe e sobre a importância crucial dessas duas mulheres encantadas no meu gosto literário. foi a partir delas, de bethânia e da minha cabocla jurema, que tudo começou. um dia, mais a fundo, farei um texto para homenageá-las, eu sei.

hoje me atenho ao fato de bethânia ser, para mim e para muitos (inclusive para a maioria esmagadora dos poetas), uma das maiores intérpretes da palavra falada.

desde muito cedo, bethânia sentia que a palavra cantada não daria conta do que ambicionava em palco. por isso, tornou-se, talvez, a única (desculpem a minha ignorância, mas, de fato, não conheço nem nunca ouvi falar de outra artista, no mundo, que trabalhasse desta maneira) intérprete de música a levar textos, tanto em poesia quanto em prosa, para os seus espetáculos.

por conseguinte, a cantora é/foi próxima e amiga de grandes escritores: vinicius de moraes, clarice lispector (que inclusive escreveu textos exclusivos para alguns dos seus espetáculos), ferreira gullar, lya luft, waly salomão, arnaldo antunes, antonio cicero, entre tantos outros.

ela é a grande mestre. em 1977, gravou um long-play em estúdio cuja faixa primeira é um dos poemas, na minha humilde opinião, mais lindos do mundo: “eros e psique”, do extraordinário, do maior poeta da língua portuguesa, fernando pessoa. os versos narram o encontro dessas duas frentes, dessas duas forças que compõem e moldam todos nós.

eros, o infante esforçado, rompe o seu caminho, o caminho fadado, predestinado, sem saber que intuito, que razão, possui. a força cega, que segue um chamado sem bem decifrá-lo, a força do sentimento, o amor.

psique, a princesa, a alma, a consciência, que, se espera, espera adormecida o infante, sem nem saber que existe;  e vive, por isso mesmo, num reino distante, para além do muro da estrada.

eros, o infante, alcança psique, a princesa encantada, e desse encontro nasce a descoberta de que, “no fundo”, ele próprio, o infante, é a princesa que dormia.

é o momento, literal, da “tomada da consciência”, do “cair em si”, do “saber-se de si”.

o sentimento ligado à razão. a razão e a sensibilidade, unas.

a minha aposta reside exatamente na mescla dessas duas forças.

na voz de bethânia, com sua interpretação, suas pausas entre versos & palavras, sua dramaticidade, o poema ganha, às claras, a força que concentra e carrega. a primeira vez que ouvi as linhas na sua voz, e as entendi, chorei copiosamente. chorei chorei chorei feito criança que sou (rs).

experimente, quem nunca o fez, ler os versos com a bethânia. é esclarecedor. a intérprete ilumina todas as linhas.

(como caetano veloso, gosto do pessoa na pessoa. injetem-no na veia.)

um beijo nocês tudo,

o preto,

paulinho / paulo sabino.

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EROS E PSIQUE (Fernando Pessoa)
 
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.   
 
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
 
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
 
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.
 
Mas cada um cumpre o Destino —
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
 
E, se bem seja obscuro
Tudo pela estrada afora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.
 
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.

DENTRO E AGORA
5 de agosto de 2009

moças, rapazes, 

apaixonei-me por estes versos assim que os conheci. vindos de uma “autora-lady”, que tudo o que escreve é elegante, é bonito, os versos apontam um caminho no qual acredito para se viver bem a vida, pelo menos mais confortavelmente: sabendo-a sempre “dentro” e “agora”. 

“dentro”, porque, antes, é bom atentarmos para as nossas aspirações, para o que nos interessa,  para a voz que, dentro, nos guia, nos diz quais rumos tomar. é salutar ouvir os ecos que retumbam dentro de nós, para levarmos melhor os passos, ainda que saibamos que os escorregões e tropeços virão como parte natural do caminhar. 

“agora”, porque nada além do “presente” existe. o “passado”, feito de paisagens ausentes, existiu porque, um dia, fez-se “presente”. o “futuro”, para que chegue a existir, para que deixe de ser projeção, deixe de ser “ideal” — de ser apenas “do campo das idéias” –, é preciso, primordialmente, deixar de ser “futuro” para tornar-se: “presente”. portanto: viver de olho no agora, neste momento; ser feliz no minuto que escorre, para que se delineiem memórias felizes e surjam futuros memoráveis. sábio este verso de antonio cicero: “os momentos felizes não estão escondidos nem no passado e nem no futuro”. os momentos felizes escondem-se no presente. porque o presente é o único tempo que temos para viver. é preciso desvendá-los, desnudá-los, descobri-los (os momentos felizes) já. 

desta forma, acredito que uma vida possa florescer, desabrochar, renascer, durante toda a sua existência. contudo, para que este “desabrochar durante a existência inteira” aconteça, temos que trabalhar. são conquistas, buscas, válidas para todo o caminho enquanto caminho houver. 

que as flores nos venham, sempre! 

beijo em vocês, pessoas.

o preto.

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(sem título. autora: lya luft. livro: perdas & ganhos. editora: record)

Não  é  preciso  consenso
nem  arte,
nem  beleza  ou  idade:
a  vida  é  sempre  dentro
e  agora.
(A  vida  é  minha
para  ser  ousada.)
 
A  vida  pode  florescer
numa  existência  inteira.
Mas  tem  de  ser  buscada,  tem  de  ser
conquistada.