A FOGUÊRA DE SÃO JOÃO — SARAU DE ANIVERSÁRIO
22 de junho de 2015

Sarau Largo das Neves_PEmP

São João_Fogueira
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Um convite a TODOS:

Para a 4ª edição do SARAU DO LARGO DAS NEVES, em SANTA TERESA (Rio de Janeiro), em frente ao BAR ALQUIMIA (percebe-se o bar pela movimentação das pessoas no largo), na quinta-feira dia 25 DE JUNHO, concentração às 19h, comemorando os 39 aninhos que completo no dia anterior ao do sarau, dia de são João Xangô menino, 24 de junho — viva são João! viva o milho verde! viva a refazenda!

(Vai ter bolo para o parabéns!)

Justamente por ser um sarau à época dos festejos juninos, preparei uma seleção, para a abertura do sarau, toda voltada ao são João, aos festejos em nome do santo. Abro com 6 autores: Patativa do Assaré; Décio Valente; Waly Salomão; Cecília Meireles; Noel Rosa; Roque Ferreira. 6 poemas todos com a temática do são João. Para o decorrer do evento, separei alguns outros poemas que ampliam a temática da festa para a sua ambiência: o interior, a roça, a vida simples & ordinária, ao mesmo tempo riquíssima & sofisticada, do campo: Thiago de Mello, Manoel de Barros, Cora Coralina, Adélia Prado, Manuel Bandeira, Paulo César Pinheiro, e mais o que pintar!

Queridos, saliento o fato de que NÃO SE TRATA de um sarau TEMÁTICO. NÃO. Estou me propondo a questão de recitar poemas juninos & de temática interiorana — para a abertura & algumas costuras no decorrer da noite — mas isso, de maneira nenhuma, é OBRIGATÓRIO para participar das leituras. O sarau continua aberto a TODO & QUALQUER TEMA. Sei que todos nós temos cotidianos agitados, cotidianos por vezes (inúmeras!) apressados, então não quero ninguém catando, feito louco, poemas de são João ou com temas do interior. Pelamor! Vamos relaxar, minha gente! Estamos aqui, antes de tudo & qualquer coisa, para GOZAR & SER FELIZ! Então: se quiser levar, se quiser procurar, se tiver em casa, se se lembrar, ótimo, venha com seus versos juninos e/ou interioranos. Se não quiser, não tiver, não lembrar, ótimo também, traga os versos de amor, de amizade, de solidariedade, de humor, de protesto, enfim, versos são sempre BEM-VINDOS!

A idéia, desta vez, é o sarau literalmente na praça do largo, pegando, emprestada, a energia do bar Alquimia, comandado pela querida amiga Denise Cunha, para o microfone & a caixa de som. Sairmos do bar & invadirmos a praça: com amor no coração, preparamos a invasão!

O sarau é organizado por mim & por uma turma de amigos imprescindível, que faz a coisa acontecer da maneira mais delicada & generosa! Obrigadíssimo, turma amada & idolatrada (salve salve!), por existir na minha vida!

No mais, o mesmo de sempre: vamos com a nossa alegria, o nosso sorriso, os nossos versos, a nossa vontade de ser feliz!

Recapitulando:

Sarau no largo das Neves (na frente do bar Alquimia), em Santa Teresa
Quinta-feira (25/06), a partir das 20h30
19h: concentração para uns drinques & um bate-papo animado
– Comemoração dos 39 aninhos deste que vos escreve

Poeme-se!
Eu & a turma organizadora aguardamos vocês!

Ilustrando esta publicação, deixo um poema, comovido, delicado, que integra a minha seleção para o sarau, sobre a noite alegre & rica, o lindo festejo & o santo sertanejo.

Beijo todos!
Paulo Sabino.

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(do livro: Melhores poemas. seleção: Cláudio Portella. autor: Patativa do Assaré. editora: Global.)

 

 

A FOGUÊRA DE SÃO JOÃO

 

Meu São João, meu São Joãozinho!
Quanto amô, quanto carinho,
Quanto afiado e padrinho
Nesta terra brasilêra
Não tem a gente arranjado,
No quilaro abençoado,
Tão belo e tão respeitado,
Da sua foguêra.

Meu querido e nobre santo,
Que a gente qué e ama tanto,
Sua foguêra é o encanto
Da gente do meu sertão.
Não pode sê carculada
A porva que vai queimada
Nessas noite festejada
Da foguêra de São João.

Quantos véio bacamarte
Virge, que nunca fez arte,
Não tão guardado de parte,
Com amô e devoção,
Mode o povo sertanejo
Com eles fazê trovejo,
No mais alegre festejo
Da foguêra de São João!

Pois quarqué arma ferina,
Bacamarte ou lazarina,
Já criminosa, assarsina,
Como é a do caçadô,
Não tem a capacidade
De atirá com liberdade
Na santa quilaridade
Desta foguêra de amô.

Meu São João! Meu bom São João!
Santo do meu coração,
Repare e preste tenção
Quanto é lindo o seu festejo.
Repare lá do infinito
Como isto tudo é bonito,
Sempre digo e tenho dito
Que o senhor é sertanejo!

O homem pode sê ruim
E tê mardade sem fim,
Vivê da intriga e moitim,
Socado na perdição,
Mas a farta mais grossêra,
Mais e feia e mais agorêra,
É de quem não faz foguêra
Na noite de São João.

No mundo tem tanta gente
Véia, já quage demente,
Que não sente o que nós sente
E desfruita por aqui,
Gente sem gosto e sem sorte,
Que já vai perto da morte,
Sem vê um São João do Norte,
Nas terras deste Brasí.

Quem veve lá na cidade
Não conhece de verdade
A maió felicidade,
Três cabôco empareiado,
Com seus bacamarte armado
Dá três tiro encarriado:
— Pei! Pei! Pei! Viva São João!

E o foguete e o buscapé,
E o traque faz rapapé,
Arvoroçando as muié,
Quando elas vai sê madrinha,
E a contente criançada,
Na mais doce gargaiada,
Vai puxando uma toada,
Brincando de cirandinha.

Nesta noite alegre e rica
O prazê se mutiprica,
Na latada de oiticida
Tudo dança com despacho.
O véio Jirome Guéde,
Que sacrifiço não mede,
Toca o que o povo lhe pede
Numa armonca de oito baxo.

Meu São João! Meu bom São João!
Chuvinha, tiro e balão
Nós lhe manda do sertão,
Do nosso grande país,
Damo viva a toda hora
Quando o bacamarte estora,
Dos santo lá da Gulora
O senhô é o mais feliz!

A cinza santa e sagrada
De sua foguêra amada,
Com fé no peito guardada
Quem tira um pôquinho dela
Despois que se apaga a brasa
E bota em roda da casa,
Na vida nunca se atrasa,
Se defende das mazela.

É tão grande, é tão imensa
A minha fé e minha crença,
Que se Deus me dé licença,
Quando eu morrê, vou levá
Grosso fêcho de madêra
De angico e de catinguêra,
Pra fazê uma foguêra
Lá no céu, quando eu chegá.

AUTO-RETRATO FALADO
13 de novembro de 2014

Manoel de Barros 05

Manoel de Barros_Sorriso

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Hoje, 13/11, aos 97 anos, nos deu adeus aquele que foi, é & sempre será um dos maiores poetas da língua portuguesa, Manoel de Barros.

Desde que tive contato com sua figura física & sua poesia, quis o Manoel para meu avô.

Um mestre, um exímio cantador, o homem das ignorãças, das grandezas do ínfimo, o gramático do chão, o arranjador de assobio, o homem que conhecia o “nada” como ninguém, o guardador de águas, o pantaneiro que se dava concertos a céu aberto para solos de ave, o menino do mato, o fazedor de amanhecer.

Manoel de barro lindo, divino, agora voa que nem passarinho, na asa da sua poesia.

Vivas ao Manoel, vivas à sua existência, vivas à sua obra poética!

Beijo todos!
Paulo Sabino.
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(do livro: O livro das ignorãças. autor: Manoel de Barros. editora: Record.)

 

 

AUTO-RETRATO FALADO

 

Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da
……..Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do
……..chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de
……..estar entre pedras e lagartos.
Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz.
Já publiquei 10 livros de poesia; ao publicá-los me
……..sinto como que desonrado e fujo para o
……..Pantanal onde sou abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me achei — pelo
……..que fui salvo.
Descobri que todos os caminhos levam à ignorância.
Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de
……..gado. Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral, porque só
……..faço coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore.

O POETA & SUAS INVENÇÕES DE COMPORTAMENTO
16 de março de 2013

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(Nas fotos, o poeta Manoel de Barros & suas invenções de comportamento: alguns dos seus livros de poesia & a inscrição “Só dez por cento é mentira”, título do documentário de Pedro Cezar sobre o poeta.)
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vão dizer que o poeta não existe propriamente “dito”: o que existe propriamente “dito” são os versos, o que existe propriamente “dito” é a poesia. afinal, o corpo, a carne, da poesia constitui-se de palavras, a poesia constitui-se de matéria verbal, constitui-se daquilo que é propriamente “dito”.

(o poeta se faz da poesia. é a poesia quem justifica a existência do poeta. um alguém só se diz poeta caso pouse nele a poesia.)

vão dizer que o poeta é um ente de sílabas, um ente formado por fonemas, um ente formado por verbos, um ente de carne, osso & palavras.

vão dizer que o poeta tem vocação para “ninguém”. o pai do poeta costumava alertá-lo: “quem acha bonito & pode passar a vida a ouvir o som das palavras, ou é ninguém ou zoró.”

(zoró: povo indígena habitante da região noroeste do mato grosso do sul & da região sul de rondônia.)

o poeta & sua vocação para “ninguém”: ele não serve para mais nada que não seja achar bonito & passar a vida a ouvir o som das palavras. um alienado do mundo, um vagabundo existencial.

o poeta & sua vocação para “ninguém”: tendo vocação para “ninguém”, o poeta pode transfigurar-se no que desejar, no que bem entender — o que, no fundo, é uma exigência da poesia.

o poeta teria treze anos. de tarde, foi olhar a cordilheira dos andes, que se perdia nos longes da bolívia, e veio uma iluminura nele.

foi a sua primeira iluminura, a sua primeira arte de ornar uma página.

daí, botou o seu primeiro verso.

mostrou a obra para sua mãe. a mãe falou: “agora você vai ter que assumir as suas irresponsabilidades.”

o poeta assumiu: entrou no mundo das imagens.

o poeta é um irresponsável da linguagem porque a poesia não possui responsabilidades. a poesia não tem que. a poesia simplesmente é. sem maiores pretensões, obrigações & expectativas. a poesia pode justamente tudo porque não deve absolutamente nada. para com a poesia não existem formalidades. não se trata de memorando, requerimento ou carta de intenção: não existe um propósito, um objetivo.

a poesia mora no mundo das imagens, das metáforas, dos jogos sintáticos, dos deslocamentos da linguagem.

o poeta não quer saber como as coisas se comportam. o poeta quer inventar comportamento para as coisas.

segundo o poeta, a tarefa mais lídima, mais genuína, mais autêntica, da poesia é a de equivocar, é a de confundir, é a de deslocar, o sentido das palavras, não havendo nenhum “descomportamento”, não havendo nenhuma falta de comportamento adequado, não havendo nenhum “desvio de conduta”, senão que alguma experiência lingüística.

é apenas um descomportamento semântico, apenas um descomportamento para com os sentidos (convencionais) das palavras.

se o poeta se desvirtua a pássaros, se o poeta se desvirtua em árvores, se o poeta se desvirtua para pedras, essa mudança de comportamento “gental” (referente à gente, a pessoas) para comportamento animal, vegetal ou pedral, é apenas um descomportamento semântico, um descomportamento ligado ao sentido convencional dessas palavras.

o poeta apenas faz, apenas cria, apenas produz, o desvio do sentido das palavras & das finalidades das coisas: se ele diz que “grota” é uma palavra apropriada para ventar nas pedras ou que os passarinhos faziam paisagens na sua infância, isso é apenas um desvio das tarefas da grota (que não é a de ventar nas pedras) & dos passarinhos (que não é a de fazer paisagens).

isso — de gerar o desvio do sentido das palavras & das finalidades das coisas — é apenas um descomportamento lingüístico que não ofende, que não fere, que não prejudica, que não viola, que não contraria, a natureza dos passarinhos nem das grotas.

se o poeta diz ainda que é mais feliz quem descobre o que não presta do que quem descobre ouro, o poeta pensa que, ainda assim, não será atingido pela bobagem, pela tolice, pela asneira. ele apenas não tem sabedoria demais, conhecimentos aprofundados: o poeta apenas não tem polimentos de ancião.

(o poeta: um inventor de comportamentos: uma sempre criança do verbo, um sempre aprendiz da palavra.)

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Poesia completa. autor: Manoel de Barros. editora: Leya.)

 

 

O POETA

 

Vão dizer que não existo propriamente dito.
Que sou um ente de sílabas.
Vão dizer que eu tenho vocação pra ninguém.
Meu pai costumava me alertar:
Quem acha bonito e pode passar a vida a ouvir o som
das palavras
Ou é ninguém ou zoró.
Eu teria treze anos.
De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes que
se perdia nos longes da Bolívia
E veio uma iluminura em mim.
Foi a primeira iluminura.
Daí botei meu primeiro verso:
Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.
Mostrei a obra pra minha mãe.
A mãe falou:
Agora você vai ter que assumir as suas
irresponsabilidades.
Eu assumi: entrei no mundo das imagens.

 

 

COMPORTAMENTO

 

Não quero saber como as coisas se comportam.
Quero inventar comportamento para as coisas.
Li uma vez que a tarefa mais lídima da poesia é a
de equivocar o sentido das palavras
Não havendo nenhum descomportamento nisso
senão que alguma experiência linguística.
Noto que às vezes sou desvirtuado a pássaros, que
sou desvirtuado em árvores, que sou desvirtuado
para pedras.
Mas que essa mudança de comportamento gental
para animal vegetal ou pedral
É apenas um descomportamento semântico.
Se eu digo que grota é uma palavra apropriada para
ventar nas pedras,
Apenas faço o desvio da finalidade da grota que
não é a de ventar nas pedras.
Se digo que os passarinhos faziam paisagens na
minha infância,
É apenas um desvio das tarefas dos passarinhos que
não é a de fazer paisagens.
Mas isso é apenas um descomportamento linguístico que
não ofende a natureza dos passarinhos nem das grotas.
Mudo apenas os verbos e às vezes nem mudo.
Mudo os substantivos e às vezes nem mudo.
Se digo ainda que é mais feliz quem descobre o que não
presta do que quem descobre ouro —
Penso que ainda assim não serei atingido pela bobagem.
Apenas eu não tenho polimentos de ancião.

POESIA: O DELÍRIO DO VERBO
13 de dezembro de 2010

poesia é  voar “fora da asa”, é voar absurdamente, é voar um vôo de delírio.

as coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis. elas, as coisas, desejam ser olhadas de azul — desejam ser olhadas diferentemente, por ângulos inopinados, por lentes inventivas, por vistas delirantes.

poesia é voar fora da asa, dando asas à imaginação alucinada.

há de se buscar a alucinação no começo do verbo: lá quando criança, quando na infância, fase apta a inventividades.

no descomeço, isto é, no “não-começo”, ou seja, antes do começo — numa alusão à criação do mundo —, era o verbo (a palavra do criador). nada mais existia, a não ser o verbo dando voz às façanhas mundanas.

só depois de tudo aprontado, tudo aqui disposto, só depois de nomeadas as façanhas mundanas, veio o delírio do verbo.

e o delírio do verbo estava lá no começo de tudo (logo depois do descomeço, logo após a nomeação das coisas), quando começamos a nos dar conta do entorno que nos cerca, deste mundo ao qual pertencemos:

quando crianças, quando na infância, fase apta a inventividades.

por exemplo:

a criança pode dizer: eu escuto a cor dos passarinhos. 

a criança não sabe que o verbo escutar não funciona para cor, mas para o som.

o verbo tem a sua função alterada, e a partir da alteração, delira.

em poesia, o verbo tem que pegar delírio. se não, não acontece.

(o grande serviço que o desconhecimento, que o não-saber, pode prestar: um estado de início, primordial, um estado de infância, de desconhecimentos que acendem luzes.)

as coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis, medianas.

tipo:

uma criança observa o rio que fazia uma volta por detrás da sua casa. a imagem que tinha era a de um vidro mole que fazia uma volta atrás da sua casa, era a de uma cobra de vidro que fazia sua curva & que seguia seu rumo, macio corpo vítreo-sinuoso.

um dia, um homem disse à criança que a volta que o rio fazia por detrás da sua casa se chama “enseada”. à criança, ficou o fato de que, então, o rio, não mais a imagem duma cobra de vidro mole a serpear pelo quintal da sua casa. aquilo passou a ser uma “enseada”.

e o nome, “enseada”, certamente empobreceu a imagem delirante, a imagem em condições infantis…

(com esta pobreza, a poesia não pode interagir.)

em poesia, há de haver o delírio do nome, a alucinação do verbo, sempre!

lembrem-se: as coisas devem ser vistas não por olhares razoáveis, e sim por olhares excêntricos, por olhares alucinados, em delírio.

vamos comer poesia, pelo bem da alma!

beijo bom em vocês!
paulo sabino.  
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(do livro: O livro das ignorãças. autor: Manoel de Barros. editora: Record.)

VII

No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.

XIII

As coisas não querem mais ser vistas por pessoas
razoáveis:
Elas desejam ser olhadas de azul —
Que nem uma criança que você olha de ave.

XIV

Poesia é voar fora da asa.

XIX

O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a
imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás
de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta que o
rio faz por trás de sua casa se chama enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que
fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.

AS GRANDEZAS DO ÍNFIMO
21 de maio de 2010

senhores,
 
eis, aqui, parte de um tratado geral das grandezas do ínfimo (do desimportante, do quase nada), formulado por um poeta.
 
diz-se que há, na cabeça dos poetas, um parafuso a menos.
 
o mais justo, no entanto, seria dizer que o poeta tem um parafuso trocado ao invés de um a menos.
 
a troca de parafusos provoca nos poetas uma certa “disfunção lírica”.
 
“disfunção lírica”: mais do que o mau funcionamento, mais do que o distúrbio, a disfunção é a função desobrigada de função. é a função inútil, que serve para: nada.
 
a partir da “disfunção lírica” o poeta elege as suas importâncias (alguém saberia medir a importância das coisas?): as importâncias do manoel: o que está nos chãos, nas frestas, nos musgos, nos barros: as grandezas do ínfimo.
 
entre elas:
 
o cisco, que, segundo o dicionário houaiss, pode significar: 1) pó ou miudezas do carvão. 2) lixo. 3) material sólido e heterogêneo (gravetos, ramos, algas etc.) trazido pelas enxurradas. 4) designação comum às aparas miúdas (…).
 
os passarinhos e tudo o que é necessário para compor um tratado sobre eles.
 
(essas disfunções líricas acabam por dar mais importância aos passarinhos do que aos senadores.)
 
a poesia, guardada nas palavras (é tudo o que sabe o poeta).
 
(poesia é uma graça verbal.)
 
o retorno à infância, que traz ao ser a sua ascensão. (é quando se vê como o adulto é sensato!)
 
as coisas inúteis (que garantem a soberania do Ser). 
 
dedico este apanhado poético a dois irmãos, dois anjos, amigos a quem recorro, com quem choro, e que admiro: césar guerra chevrand & flávio chedid
 
na noite da quarta-feira passada (19/05), reunimo-nos os três na casa do flavinho (onde derrubamos uma garrafa de jack daniel’s – rs) para um dos tantos encontros já ocorridos, encontros para colocarmos os nossos assuntos & interesses em dia.
 
e, como sempre, foi MARAVILHOSO.
 
flavinho, como eu, possui o livro de onde saltaram os poemas. li, durante o encontro, boa parte dos textos que seguem.
 
meninos (flavinho & césar): obrigadíssimo. por tudo. como lhes disse na quarta, e que fique registrado: vocês são peças-chaves, fundamentais na minha existência.
 
(que bom!)
 
beijo nos dois!
o preto de vocês.
 
outro nos senhores!
paulo sabino / paulinho.  
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(do livro: Poesia Completa. autor: Manoel de Barros. editora: Leya / Texto Editores.)
 
 
A DISFUNÇÃO
 
Se diz que há na cabeça dos poetas um parafuso de
a menos
Sendo que o mais justo seria o de ter um parafuso
trocado do que a menos.
A troca de parafusos provoca nos poetas uma certa
disfunção lírica.
Nomearei abaixo 7 sintomas dessa disfunção lírica.
1– Aceitação da inércia para dar movimento às
palavras.
2 — Vocação para explorar os mistérios irracionais.
3 — Percepção de contiguidades anômalas entre
verbos e substantivos.
4 — Gostar de fazer casamentos incestuosos entre
palavras.
5 — Amor por seres desimportantes tanto como pelas
coisas desimportantes.
6 — Mania de dar formato de canto às asperezas de
uma pedra.
7 — Mania de comparecer aos próprios desencontros.
Essas disfunções líricas acabam por dar mais
importância aos passarinhos do que aos senadores.
 
 
DE PASSARINHOS
 
Para compor um tratado sobre passarinhos
É preciso por primeiro que haja um rio com árvores
e palmeiras nas margens.
E dentro dos quintais das casas que haja pelo menos
goiabeiras.
E que haja por perto brejos e iguarias de brejos.
É preciso que haja insetos para os passarinhos.
Insetos de pau sobretudo que são os mais palatáveis.
A presença de libélulas seria uma boa.
O azul é muito importante na vida dos passarinhos
Porque os passarinhos precisam antes de belos ser
eternos.
Eternos que nem uma fuga de Bach.
 
 
TRIBUTO A J. G. ROSA
 
Passarinho parou de cantar.
Essa é apenas uma informação.
Passarinho desapareceu de cantar.
Esse é um verso de J. G. Rosa.
Desapareceu de cantar é uma graça verbal.
Poesia é uma graça verbal.
 
 
O CISCO
 
(Tem vez que a natureza ataca o cisco para o bem.)
Principais elementos do cisco são: gravetos, areia,
cabelos, pregos, trapos, ramos secos, asas de mosca,
grampos, cuspe de aves, etc.
Há outros componentes do cisco, porém de menos
importância.
Depois de completo, o cisco se ajunta, com certa
humildade, em beiras de ralos, em raiz de parede,
Ou, depois das enxurradas, em alguma depressão de
terreno.
Mesmo bem rejuntado o cisco produz volumes quase
sempre modestos.
O cisco é infenso a fulgurâncias.
Depois de assentado em lugar próprio, o cisco
produz material de construção para ninhos de
passarinhos.
Ali os pássaros vão buscar raminhos secos, trapos,
asas de mosca
Para a feitura de seus ninhos.
O cisco há de ser sempre aglomerado que se iguala
a restos.
Que se iguala a restos a fim de obter a contemplação
dos poetas.
Aliás, Lacan entregava aos poetas a tarefa de
contemplação dos restos.
E Barthes completava: Contemplar os restos é
narcisismo.
Ai de nós!
Porque Narciso é a pátria dos poetas.
Um dia pode ser que o lírio nascido nos monturos
empreste qualidade de beleza ao cisco.
Tudo pode ser.
Até sei de pessoas que propendem a cisco mais do
que a seres humanos.
 
 
INFANTIL
 
O menino ia no mato
E a onça comeu ele.
Depois o caminhão passou por dentro do corpo do
menino
E ele foi contar para a mãe.
A mãe disse: Mas se a onça comeu você, como é que
o caminhão passou por dentro do seu corpo?
É que o caminhão só passou renteando meu corpo
E eu desviei depressa.
Olha, mãe, eu só queria inventar uma poesia.
Eu não preciso de fazer razão.
 
 
ASCENSÃO
 
Depois que iniciei minha ascensão para a infância,
Foi que vi como o adulto é sensato!
Pois como não tomar banho nu no rio entre pássaros?
Como não furar lona de circo para ver os palhaços?
Como não ascender ainda mais até na ausência da voz?
(Ausência da voz é infantia, com t, em latim.)
Pois como não ascender até a ausência da voz —
Lá onde a gente pode ver o próprio feto do verbo —
ainda sem movimento.
Aonde a gente pode enxergar o feto dos nomes —
ainda sem penugens.
Por que não voltar a apalpar as primeiras formas da
pedra. A escutar
Os primeiros pios dos pássaros. A ver
As primeiras cores do amanhecer.
Como não voltar para onde a invenção está virgem?
Por que não ascender de volta para o tartamudo!
 
 
POEMA
 
A poesia está guardada nas palavras — é tudo que
eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as
insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.
 
 
SOBRE IMPORTÂNCIAS
 
Uma rã se achava importante
Porque o rio passava nas suas margens.
O rio não teria grande importância para a rã
Porque era o rio que estava ao pé dela.
Pois Pois.
Para um artista aquele ramo de luz sobre uma lata
desterrada no canto de uma rua, talvez para um
fotógrafo, aquele pingo de sol na lata seja mais
importante do que o esplendor do sol nos oceanos.
Pois Pois.
Em Roma, o que mais me chamou atenção foi um
prédio que ficava em frente das pombas.
O prédio era de estilo bizantino do século IX.
Colosso!
Mas eu achei as pombas mais importantes do que o
prédio.
Agora, hoje, eu vi um sabiá pousado na Cordilheira
dos Andes.
Achei o sabiá mais importante do que a Cordilheira
dos Andes.
O pessoal falou: seu olhar é distorcido.
Eu, por certo, não saberei medir a importância das
coisas: alguém sabe?
Eu só queria construir nadeiras para botar nas
minhas palavras.
 
 
O CATADOR
 
Um homem catava pregos no chão.
Sempre os encontrava deitados de comprido,
ou de lado,
ou de joelhos no chão.
Nunca de ponta.
Assim eles não furam mais — o homem pensava.
Eles não exercem mais a função de pregar.
São patrimônios inúteis da humanidade.
Ganharam o privilégio do abandono.
O homem passava o dia inteiro nessa função de catar
pregos enferrujados.
Acho que essa tarefa lhe dava algum estado.
Estado de pessoas que se enfeitam a trapos.
Catar coisas inúteis garante a soberania do Ser.
Garante a soberania de Ser mais do que Ter.

O GUARDADOR DE ÁGUAS
3 de dezembro de 2009

moços e moças,
 
o guardador de águas oblíquas, de vozes ocultas, ensinador das linguagens das coisas, diz que o sentido normal das palavras não faz bem ao poema. pois que a poesia se dá, segundo bem escreveu o poeta eucanaã ferraz, através do deslocamento da linguagem. a linguagem em diferente estado, que não comunica exatamente uma coisa, alguma coisa, qualquer coisa.
 
poesia comunica coisas nenhumas a fim de dizer todas.
 
há que se dar um gosto incasto aos termos. pois que poesia brinca com os vareios, com as variedades, do dizer. a língua do poema deflora significâncias nas pedras-palavras. há um inauguramento de falas. 
 
poesia é casada com as imagens formadas pelas palavras. porém, as imagens são, no fundo, palavras que nos faltaram. poesia: o vão que ocupa: poesia: ocupação da palavra pela imagem: ocupação da imagem pelo ser. no fundo, é a nós, leitores-seres, que alguma coisa é dita, retida, é guardada, calada. 
 
este veio poético instala em suas águas-obra uma agramaticalidade (quase) insana, pois com a linguagem poética o que importa é a reinvenção, e, com esta, o escurecimento das relações entre os termos, entre as palavras — ao invés do clareamento. assim como quando anoitece para que se acendam os vagalumes. poesia: escurecer, tornar turvo, para alumiar, para resplandecer, para acender as palavras, os termos, através das reinvenções com a linguagem.
 
à poesia cabe: portas abertas, veios, ventos, vãos. à poesia cabe: parede. não a que oprime, a que proíbe, mas a parede de tijolo, a parede que abriga, que acolhe, que aconchega. nesta parede, ao poeta cabe a lascívia da hera, que se funde à amurada sempre que a roça & penetra & finca & firma. 
 
ao poeta faz bem desexplicar.
 
(poetas e tontos se compõem com palavras.)
 
manoel de barros, poeta das imagens mirabolantes, das imagens com o pé na cabeça, o rei dos neologismos, para mim, é uma espécie de mistura — única, diferenciada — de graciliano ramos com joão cabral de melo neto. isto é: uma riqueza do brasil.
 
tonteiem-se um tanto no tonteio da poesia!
 
beijo em vocês.
o preto.
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(do livro: O guardador de águas. autor: Manoel de Barros. editora: Record.) 
 
I
 
Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
— Imagens são palavras que nos faltaram.
— Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
— Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo).
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos,
retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.
 
 
II
 
Todos os caminhos — nenhum caminho
Muitos caminhos — nenhum caminho
Nenhum caminho — a maldição dos poetas.
 
 
V
 
Escrever nem uma coisa
Nem outra —
A fim de dizer todas —
Ou, pelo menos, nenhumas.
 
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar —
Tanto quanto escurecer acende os vagalumes.
 
 
VII
 
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa liberdade com a luxúria convém.
 
 
VI
 
No que o homem se torne coisal — corrompem-se nele
      os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana, que
      empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um
      inauguramento de falas.
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.
 
 
VIII
 
Nas Metamorfoses, em duzentas e quarenta fábulas,
        Ovídio mostra seres humanos transformados em
        pedras, vegetais, bichos, coisas.
Um novo estágio seria que os entes já transformados
        falassem um dialeto coisal, larval, pedral etc.
        Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica,
        edênica, inaugural —
Que os poetas aprenderiam — desde que voltassem às
        crianças que foram
Às rãs que foram
Às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de
        reaprender a errar a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma
        nos mosquitos?
Seria uma demência peregrina.
 
 
12.
 
Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância
etc. (essas coisas que acham os
reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdômen de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas — com lascívia de hera.
Sobre o tijolo ser um lábio cego.
Tal um verme que iluminasse.