LITORÂNEA
20 de novembro de 2013

Paulo Sabino_Lençóis Maranhenses

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cismando cá com meus botões, existencialmente, percebo que sou um homem de beiras. um ser de margens. alguém que não veio para ocupar centros, alguém periférico, alguém que se apercebe “marginal” (à margem) em sua essência.

um homem de beiras, um ser de margens: beira de rio, beira de mar: os meus maiores encantos.

alguém alucinado pelas sílabas aquáticas, sobretudo pelas litorâneas: o mar respira no litoral. um pulmão — que não é meu — ouço inchar-se na areia, um pulmão — que não é meu — ouço derraMAR-se na areia, devolvendo-se, num movimento próprio de recuo logo após o derramamento, em perigoso chamado (chamado que incita ao jogar-se desmedido nas águas, chamado que incita ao afogar-se em espuma & sal): “você não tem história e, ainda que tivesse, nada é seu nesta cidade: números, cifras, senhas sem milagre: nada é seu. muito menos este corpo que se banha & se encanta com as sílabas incontáveis de um murmúrio que espera seu retorno com eterna paciência”.

nada é meu: pois “nada” é a única coisa que me pertence: viemos dele, de um “nada absoluto” (até que se fundissem óvulo & espermatozóide), e para ele, para o “nada absoluto”, voltaremos o dia em que se encerrar a jornada.

retornaremos ao nada, sem nada mais: história, números, cifras, senhas sem milagre, este corpo: nada é meu nesta cidade.

enquanto não chega o chamado final, fatal, enquanto um murmúrio — marulho — de sílabas incontáveis espera, com eterna paciência, meu retorno, enquanto me for permitido, sigo: litorâneo. homem de beiras. ser de margens.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Cosmologia. autor: Marcelo Diniz. editora: 7Letras.)

 

 

LITORÂNEA

 

O mar respira no litoral,
um pulmão que não é meu
ouço inchar-se na areia,
derramar-se, devolvendo-se,
perigoso chamado: — você
não tem história e, ainda
que tivesse, nada é seu
nesta cidade, números,
cifras, senhas sem milagre,
nada é seu, muito menos
este corpo que se banha
e se encanta com as sílabas
incontáveis de um murmúrio
que espera seu retorno
com eterna paciência.

DELÍRIO: SALTOS À ALEGRIA
30 de agosto de 2011

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não precipitemos as coisas: essa vertigem que parece insuflar fôlego, que parece insuflar palpitação ao inanimado, palpitação ao sem vida, ainda é muda, essa vertigem ainda não diz nada além da própria vertigem, vertigem incipiente, inicial, ainda inominável.
 
saibamos perceber esse estado.
 
não devotemos às coisas que nos afete, às coisas que nos atinja, neste perímetro, no perímetro da vertigem que parece insuflar fôlego ao inanimado, o discurso-poema que se deseja vindo do cosmos, que é a morada das musas, não estimemos apelos de inspiração artística aos astros no que ainda é simples vibração inaudita no íntimo espanto que se instaura dentro dos nossos corações.
 
sintamos apenas — não denominemos o amor.
 
afinal, o que se sente ainda é vertigem que parece insuflar fôlego ao inanimado, o que se sente ainda é simples vibração inaudita.
 
tenhamos calma. tempo ao tempo. não precipitemos as coisas.
 
sintamos apenas (não denominemos o amor) na língua, na saliva, no beijo, no momento em que as coisas são; sintamos as agulhas do instante translúcido a nos perfurar os sentidos; sintamos apenas o conteúdo evanescente, o conteúdo de curta duração, conteúdo-instante que passa como tudo na vida (como um rio passa a caminho do mar); aproveitemos as coisas no seu devido tempo — aproveitemos um abraço enquanto abraçamos, aproveitemos o beijo enquanto beijamos, aproveitemos o amor enquanto amamos.
 
sintamos apenas, após estourada a fina esfera de toda metáfora, após o silêncio da linguagem.
 
(no momento da simples vibração inaudita, não nos afete o discurso esperado do cosmos…)
 
aproveitar cada coisa, cada instante, enquanto cada coisa, cada instante, é.
 
assim, vamos consumindo melhor o tempo que disponibilizamos aos nossos afazeres, às nossas tarefas diárias, enquanto “levitamos” nas profundezas de um tempo, maior, que nos consome — a cada dia, um dia a menos.
 
nós & as coisas (medusas marinhas, campânulas fluorescentes, e muitas outras formas naturais) consumimos o tempo que é nosso, tempo consumido com os nossos afazeres, enquanto somos consumidos por um “tempo maior”, enquanto somos consumidos no sorvedouro dos passos — a cada dia a mais, um dia a menos.
 
eis a minha crença, a minha crucial verdade.
 
eis a nossa crença, a nossa crucial verdade.
 
eis a hipótese-delírio: medusas marinhas engolfadas, engolidas, por um mesmo & único pélago (abismo marinho); campânulas (flores silvestres) fluorescentes consumindo o tempo de seus afazeres enquanto levitam nas profundezas de um outro tempo que as consome.
 
eis a hipótese-delírio, que assim o é por abrigar imagens delirantes, imagens delirantes colhidas nas margens da maré.
 
eis a teimosa hipótese, hipótese que se repete, insistente, hipótese que a maré nos despeja quando estamos ao seu pé, hipótese que a maré nos despeja quando estamos juntos do mar, hipótese que, por mais insólita, hipótese que, por maior o delírio, um possível hálito do que, desde todo o sempre, a eternidade; hipótese que, por mais delirante, um possível odor que exala da boca da existência desde o seu primórdio — todos nós, engolidos pelo mesmo pélago escuro & definitivo, todos nós, consumindo o tempo nosso enquanto um tempo maior nos consome.
 
portanto, saibamos aproveitar o tempo das nossas funções diárias; portanto, saibamos mergulhar, saibamos saltar, na existência.
 
enquanto há vida, enquanto a existência persiste em nós, há saltos, há mergulhos.
 
a cada dia, um novo dia, e um outro mergulho, e um outro salto.
 
um velho, por exemplo, mergulha várias vezes antes que seu corpo abrace, por completo, a vertiginosa dose do vazio desse evento — o salto último, mergulho na eterna obscuridão.
 
as várias crianças de um velho, todos os seus jovens, lançam-se, saltam, pulam, mergulham, em sua busca, em busca do velho, que está seco, retornado à borda da vida, recebendo todos esses corpos que se atiram e que se sentam, sucessivamente, onde está sentado.
 
a cada dia, um novo mergulho, a cada dia, um novo salto na existência.
 
e, para cada novo mergulho, e, para cada novo salto, uma (BOA) dose de alegria.
 
alegria: esse estado indomável, indomável como as imagens, ariscas, arredias: peixes em fuga.
 
alegria: esse modo de acariciar o tempo, o modo de afagar o tempo sem afogá-lo num mar de lamentações.
 
alegria: inalar a essência, inalar o perfume que o tempo exala, perfume inodoro (perfume sem cheiro, perfume impossível de ser captado & decifrado), sem perder o fôlego.
 
(há que se perceber na vida, e isso é um trabalho de cada um, a essência, o perfume, o cheiro bom, que o tempo exala.)
 
 alegria: inalar, do tempo, a sua essência, isto é, inalar, do tempo, o seu centro, o seu cerne, inalar aquilo que, ao tempo, é fundamental, sem perder o fôlego, sem perder o ânimo, sem perder o gás.
 
agruras nos acometem. lutemos para resolvê-las a fim de empregarmos melhor o nosso tempo neste tempo maior que nos consome.
 
lembrem-se sempre: tudo passa; tudo, sempre, passará.
 
lembrem-se sempre: bom não é viver, mas viver bem. 
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Trecho. autor: Marcelo Diniz. editora: Aeroplano.)
 
 
AGULHAS
 
Não precipitemos as
coisas: essa vertigem
que parece insuflar
fôlego, palpitação
ao inanimado, ainda 
é muda, saibamos
perceber esse estado.
Não devotemos ainda
às pedras ou a qualquer
outro ente que nesse
perímetro nos afete
o discurso esperado
do cosmos, não estimemos
apelos dos astros no que
ainda é simples vibração
inaudita e presente
nesse íntimo espanto.
Sintamos apenas — não
denominemos o amor —
na língua as agulhas
do instante translúcido,
o conteúdo evanescente
após estourada a fina
esfera de toda metáfora.
 
 
DELÍRIO
 
Essa insistente hipótese
mal se sugere: súbito,
o clarão, tão logo a revela,
dissipa-a como um
íntimo equívoco. Delírio,
nesse silêncio, um batimento
de medusas engolfadas
por um mesmo pélago,
campânulas fluorescentes
consumindo o tempo
de seus afazeres enquanto
levitam nas profundezas
de um outro tempo
que as consome. Essa
teimosa hipótese se repete,
precipita, nesse relance,
nossa crença, nossa crucial
verdade, e o que se colhe
nessas margens, essas bolsas
que a maré despeja, talvez
um possível hálito, insólito
que seja, do que, desde
sempre, a eternidade.
 
 
SALTO
 
Um velho mergulha
várias vezes, várias
crianças, todos os seus
jovens lançam-se
antes que seu corpo
abrace, por completo,
a vertiginosa dose
de vazio desse evento.
Um velho está sempre
um instante a mais no
ar, terço de segundo
sem peso, suspenso,
enquanto vê os tantos
corpos descerem a queda
disciplinada e reta da lei
da gravidade irreversível.
Um velho já está no solo,
retornado à borda, já lá,
seco, certo de ter feito
todos os mergulhos,
e recebe todos esses
corpos que se sentam,
sucessivamente, onde
está sentado, há tempos,
após saltarem em sua busca.
 
 
ALEGRIA
 
Alegria, indomável
como as imagens,
ariscas, peixes em
fuga, esse modo de
acariciar o tempo e
deixá-lo, afagá-lo sem
afogá-lo, inalar-lhe a
impossível essência
sem perder o fôlego. 

SEM SOBREVÔO
9 de novembro de 2010

uma existência sem sobrevôo:

dentro da vida, apartado da beleza que reside em lótus & sua flor, preso ao labirinto de passos & esquinas seqüentes, fechado em algum gabinete, trancado entre portas, corredores & corrimões para todos os lados, dia & noite, noite & dia, sem conseguir sobrevoar, atracado ao dédalo.

uma existência sem sobrevôo:

um número de pessoas, agora, na imensidão do estreito “agora”, na imensidão do apertado “presente”, em funções as mais diversificadas — ajustando roldanas, ajustando porca em parafuso que faltasse, acertando linha em olho único de agulha —, sem perceber, sem desconfiar que tais funções as ocupam de viver.

são essas as funções que as mantêm concentradas no que nem desconfiam — concentradas em viver, concentradas em se fazerem vivas, pouco antes de dormirem: seja o sono intermitente, seja o sono eterno.

são essas pequenas mecânicas funções que sustentam as pessoas de vida sem sobrevôo, concentradas no que nem desconfiam (concentradas em fazer valer a existência).

um mundo sem sobrevôo:

a construção da realidade se dá através da idéia que fazemos da realidade circundante.

podemos enxergá-la sem nenhuma eternidade sobre telhados, podemos percebê-la sem nenhuma grande novidade — nenhum céu que o de sempre —.

no entanto, idéias se fazem de conceitos que podem ser repaginados, que podem ser reformulados, a cada instante das nossas existências.

nada maior do que a idéia realizada do mundo, idéia que é, a cada minuto, nova legião deslembrada, isto é, a cada minuto, um novo conceito, o acréscimo ou decréscimo de certas constatações, dúvidas, certezas…

nada maior do que a idéia, esta colmeia (casa de abelhas, com seu zunido contínuo, incessante, inquietas, zanzando de um lado a outro, fabricando mel) ávida, esta colmeia simultânea ao mundo, mundo que a colmeia ávida enxerga ordinário, ou extraordinário, ou a mescla das duas qualidades.

a vida seguirá o seu sempre mesmo eterno fluxo. nós passamos e o mundo permanece, independentemente de nós.

tudo o que hoje fascina os nossos pequenos olhos é fruto, é resultado, de um esplendor passado; tudo o que hoje fascina os nossos pequenos olhos é irradiação arrefecida do que fora o mundo, com toda a sua fúria & inospitalidade.

não vimos o início, não participamos da gênese de absolutamente nada; e quando passarmos, seres transitórios que somos, deixaremos tudo como tem de ser: os céus serão os mesmos.

portanto, fazer valer a existência que é nossa.

fazer valer a sua possível história, e que ela consiga acender o estopim do espanto de outras tantas possíveis histórias.

(se obtiver algum êxito nesse sentido, creio já ter valido a pena & ter valido o gozo.)

beijo bem em todos!
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Cosmologia. autor: Marcelo Diniz. editora: 7Letras.)

DÉDALO

Dentro, se ainda se pode dizer
dentro o que é apenas contíguo,
passos e esquinas seqüentes,
ou, que se apartasse em lótus,
fechado em algum gabinete,
corrimões para todos os lados,
e onde houver portas, corredores
e onde noite, sonho, e assim
sucessivamente, sem sobrevôo.

LETRAS MÍOPES

Alguém agora — o formigueiro
engarrafado nesta noite jamais
supunha, somente porque está escrito
em algum granito, em letras míopes,
que jamais o formigueiro suponha —
alguém agora, na imensidão cabível
deste estreito agora, ajusta roldanas,
acerta porca a parafuso que faltasse,
linha em olho único de agulha — qualquer
outro símile de cópula possível que
o mantenha concentrado no que nem
desconfia — pouco antes de dormir.

LEGIÃO

Nenhuma eternidade sobre
telhados, nenhum prédio
absolutamente novo, toda
construção, ruído adaptado
ao trânsito, nenhum céu
que o de sempre, pensamentos
úteis e mosquitos esmagados
nas paredes do elevador,
nenhuma outra vida entre
as formigas que assediam
a despensa, e, nada maior
que essa idéia, a cada minuto,
nova legião deslembrada,
ávida colméia simultânea.

PASMO

Não estime o tempo dos astros,
o fascínio que por certo consome
seus pequenos olhos é esplendor
passado, irradiação arrefecida
do que fora a fúria muito antes
você sonhasse sua possível história,
e os céus serão os mesmos,
bem depois de esquecê-la quem,
por sorte, ao lê-la, por mais sorte,
acenda o estopim de seu espanto.

SOBRE A CHUVA, LYGIA
2 de junho de 2010

queridos,
 
o poema que segue surgiu-me ao acordar: o barulho de chuva caindo, especialmente hoje, entristeceu-me um pouquinho na cama, já que hoje, primeiro de junho, começaram as minhas férias(!!!).
 
podendo escolher, certamente o dia abriria com um (belo) céu azul.
 
porém, a pequena tristeza foi consolada pela lembrança dos versos a seguir. pensei:
 
não, paulo sabino, a chuva não é triste (rs).
 
as gotas que pingam não são tristes, não são aflitas, nem mais nem menos que eu; as gotas que fito esgotam-se no que vejo: sem lágrimas porque, uma hora, finda, se esgota, porque é finita, a chuva não se entrelê.
 
nunca pense ser, paulo sabino, a chuva um filme mudo em que se assiste à demora do que persiste, um filme onde se assiste ao quedar monótono dos pingos, e das suas tristezas, e das suas aflições que insistem (tristezas & aflições do paulo sabino).
 
a chuva, um elemento natural, apenas cabe no que consiste.
 
pronto. tristeza consolada, aproveitei melhor as horas deste dia chuvoso no rio de janeiro, dia primeiro das minhas férias.
 
elas serão boas. viagens para fazer, muita coisa bacana por vir.
 
beijo bom em vocês!
o preto,
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Trecho. autor: Marcelo Diniz. editora: Aeroplano.)
 
 
LYGIA
 
Não, Lygia, a chuva não é triste.
Se tanto agrada a vista avulsa,
nunca pense ser, Lygia, a chuva
um filme mudo em que se assiste
 
à demora do que persiste,
nem metáfora mais difusa
do que a própria chuva, profusa,
cabendo-se no que consiste.
 
Não são tristes, não são aflitas,
nem mais nem menos que você,
Lygia, as gotas que você fita
 
esgotam-se no que se vê:
sem lágrimas por ser finita,
Lygia, a chuva não se entrelê.