SE EU FOSSE UM PADRE, A MINHA ORAÇÃO: POESIA
5 de janeiro de 2016

Igreja 1
______________________________________________________

se eu, paulo sabino, fosse um padre, eu, nos meus sermões aos fiéis, não falaria em deus nem no pecado, muito menos no anjo rebelado (o anjo caído, lúcifer) & os encantos, as magias, das suas seduções, das suas artimanhas para agradar. também não citaria santos & profetas: nada das suas celestiais promessas ou das suas terríveis maldições, nada do jogo injusto & feio da culpa & do castigo.

se eu, paulo sabino, fosse um padre, eu citaria os poetas, rezaria os seus versos, os mais belos, desses que desde a infância me embalaram — pessoa, drummond, bandeira, vinicius, cecília, quintana — & quem me dera que alguns fossem meus!…

porque a poesia, mais do que dizem os santos & profetas & deus & o diabo, a poesia purifica a alma, e um belo poema, ainda que se aparte de deus, ainda que se afaste de deus, ainda que se separe de deus, um belo poema sempre leva a deus. afinal, um belo poema sempre nos leva ao sublime, ao grandioso, ao elevado, ao celestial, ao divino.

poesia: a quem dedico a minha oração: senhora de tudo em mim, dai-me a alegria do poema de cada dia. e que, ao longo do caminho, eu distribua, para as almas, minha porção de poesia, sem que ela — a porção à qual tenho direito — diminua.

poesia tanta & tão minha, que, por eucaristia, eu possa fazê-la sua, fazê-la do leitor (eucaristia: um dos sete sacramentos da igreja católica, além de ser o sacramento central, no qual, segundo a crença, jesus cristo se acha presente, sob as formas do pão & do vinho, respectivamente, com o seu corpo & o seu sangue).

poesia tanta & tão minha, que, por eucaristia, eu possa fazê-la sua, fazê-la do leitor: na poesia, eis a minha carne, eis o meu sangue!

a minha carne & meu sangue em toda a ardente impureza deste humano coração — coração imperfeito, limitado.

mas, ó coração divino, ó coração celestial, ó coração de deus, deixai-me dar de meu vinho, deixai-me dar de meu pão, deixai-me viver a minha eucaristia! que mal faz uma canção, que mal faz um poema? basta que a canção, que o poema, tenha beleza, e nos encante, e nos leve ao sublime, ao grandioso, ao elevado, ao celestial, ao divino.

(um belo poema, ainda que se aparte de deus, ainda que se afaste de deus, ainda que se separe de deus, um belo poema sempre leva a deus.)

o meu templo, a minha religião, é a poesia.

poesia: eis a oração que tenho para lhes oferecer.

beijo todos!
paulo sabino.
______________________________________________________

(do site: Youtube. Paulo Sabino recita “Se eu fosse um padre”, poema de Mario Quintana. Em 05/01/2016.)


______________________________________________________

(do livro: Nova antologia poética. autor: Mario Quintana. editora: Alfaguara.)

 

 

SE EU FOSSE UM PADRE

 

Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
— muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições…
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância  me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma
… e um belo poema — ainda que de Deus se aparte —
um belo poema sempre leva a Deus!
______________________________________________________

(do site: Youtube. Paulo Sabino recita “Oração”, poema de Mario Quintana. Em 05/01/2016.)


______________________________________________________

(do livro: Poesia completa. autor: Mario Quintana. editora: Nova Fronteira.)

 

 

ORAÇÃO

 

Dai-me a alegria
Do poema de cada dia.
E que ao longo do caminho
Às almas eu distribua
Minha porção de poesia
Sem que ela diminua…
Poesia tanta e tão minha
Que por uma eucaristia
Possa eu fazê-la sua
“Eis minha carne e meu sangue!”
A minha carne e meu sangue
Em toda a ardente impureza
Deste humano coração…
Mas, ó Coração Divino,
Deixai-me dar de meu vinho,
Deixai-me dar de meu pão!
Que mal faz uma canção?
Basta que tenha beleza…

DA FELICIDADE
24 de fevereiro de 2012

 
(Na foto, Paulo Sabino na companhia de amigos: felicidade extrema.)
_____________________________________________________________
 
(Escrito em 23/02/2012, por volta das 23h30, aos amigos da rede social Facebook.)
 
 
Que fim de dia!
 
Na companhia dos meus amados & idolatrados (salve salve!) Chico Lobo & Patrícia Afonso, assisti a mais um (lindo!) pôr-do-sol (diferente a cada dia por conta dos inúmeros desenhos das nuvens & dos vôos dos pássaros que riscam o céu) na praia de Ipanema. Muita conversa boa & divertida & muita contemplação, como costuma acontecer com estes meus dois queridos.

Quando a Pati & o Chicote resolveram ir (por volta das 20h30), decidi não voltar logo para casa. Como estava também na companhia do Orlando (meu camelo), rumei para o Arpoador, para ver a paisagem da ponta do litoral. Chegando, qual a minha surpresa ao encontrar, apesar do horário para mergulho em águas gélidas, um bom número de banhistas no mar. Resolvi deixar o Orlando fincado na areia, como costuma ficar, admirando o ser-azul a bater seus braços líqüidos na barra do areeiro.

Ao entrar na água, outra surpresa: contrariando a temperatura das últimas semanas, fria fria fria toda vida!, no Arpoador o mar estava mais quente, realmente agradável & convidativo. Delícia. Passei “horas” boiando & observando as estrelas.

Feliz por esse presente noturno, peguei o Orlando & com ele fui dar uma circulada, fazer algum exercício. Fui do Arpoador ao Leblon, observando a paisagem, as pessoas, o movimento de vida daquele momento, para, em seguida, voltar a casa.

Agora aqui estou, no recanto do lar, sentindo-me suave, sereno, feliz.

Uma boa conversa com grandes amigos, contemplação da paisagem, mergulho de mar, passeio com Orlando, observação do meio circundante: percebo que isso me basta para me sentir feliz, para me sentir de bem com a vida.

E quando penso no que me basta para me sentir feliz, para me sentir de bem com a vida, vejo que a felicidade pode estar bem ao alcance das mãos. Vejo que, dentro das possibilidades que me atingem (as descritas aqui, por exemplo), a felicidade não precisa, e nem deve, ser difícil.

Algumas pessoas dificultam demais o encontro com a felicidade. É um aprendizado, um exercício diário. Porque a vida não é mole; a vida tem a sua face empedernida. No entanto, temos que ter olhos às possibilidades que nos rondam. E, se não satisfeito com elas, brigar por mudanças.

No mais, o que me fica é o entendimento de que eu não preciso de muito para ser feliz. O que me faz feliz envolve uma certa dose de dinheiro (afinal, ser classe média bem mediana, e morando na zona sul carioca, está LONGE de ser moleza para mim), mas não envolve a dose mais gostosa, a dose que considero a principal.

E o que também me fica, no fundo, é a sensação de que todas essas constatações moldam o supra-sumo da minha sofisticação.

Ilustrando o que vos digo, senhores, este belo poema do mestre Mario Quintana, que me ronda a cabeça desde que comecei estas linhas:

 
DA FELICIDADE

Quantas vezes a gente, em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura,
Tendo-os na ponta do nariz!

 
 
Beijo todos!
Paulo Sabino.

ÀS MÃOS DE MEU PAI, UNS VERSOS MUITO LINDOS
6 de dezembro de 2011

_____________________________________________________________
 
pai,
 
neste mês de dezembro, mês em que você, se estivesse por aqui, venceria as suas 69 primaveras, quero trazer-lhe uns versos muito lindos, colhidos no mais íntimo de mim…
 
versos colhidos no mais íntimo de mim para o homem que me ensinou o bom-humor, a alegria, que me ensinou a ser piadista, a não me levar tão a sério. versos muito lindos ao homem que incitou o meu gosto por água, especialmente pelo mar, uma vez que nasci & vivo numa cidade tomada por ele, pelo mar, eloqüente, imponente em sua vastidão azul. versos ao homem que, aos domigos, religiosamente, levava a família para um passeio ao ar livre (o aterro do flamengo era um dos seus locais favoritos), e, depois, ao cinema, uma das suas GRANDES paixões. homem que sempre me admirou, que sempre apostou em mim, que sempre se preocupou com o meu bem-estar.
 
assim como você, pai, as palavras dos versos que desejo ofertar-lhe são simples, palavras singelas, porém palavras com uma luz tão forte, tão bonita, que você, pai, teria de fechar seus olhos para as ouvir.
 
sim!, uma luz forte, bonita, que viria de dentro delas, como essa que acende inesperadas cores nas lanternas chinesas de papel.
 
sim!, uma luz forte, bonita, que viria de dentro das palavras, palavras iluminadas pela luz que vem de dentro das suas mãos, mãos que têm grossas veias como cordas azuis sobre um fundo de manchas já cor de terra.
 
como, na minha memória, são belas as suas mãos!…
 
mãos que abrigaram a nobre cólera dos justos, a nobre cólera daqueles que não se conformam com um mundo tão cheio de mazelas, tão carecido de bons sentimentos. mãos que nunca me bateram, mãos firmes que guiavam sem violências, mãos a serviço do afago, da meiguice, da carícia, do zelo. 
 
a luz das palavras que lhe trago, pai, vem dessa chama que, pouco a pouco, longamente,  você, durante a sua jornada, veio alimentando na terrível solidão do mundo, chama que me alimenta, que nutre o meu ser, chama que me faz prosseguir buscando fortaleza mesmo nos momentos difíceis, momentos de certa escuridão, momentos de dores & dissabores.
 
a você, pai, trago palavras, apenas palavras… e que são escritas fora do papel, escritas no meu sentimento pelo amor que em mim existe & perdura, firme, forte, em riste. 
 
são tantas coisas a dizer, pai, tantas coisas, que nem sei exatamente como dizê-las, e estas linhas vão morrendo, ardentes & puras, ao vento da poesia…
 
que bom, pai, que privilégio a sua passagem pela minha existência, como aprendemos um com o outro! salve!
 
agora fico por aqui.
 
eis a minha homenagem, mais que merecida, a você, pai, o grande homem da minha vida.
 
beijo imenso, meu “véio”.
amor eterno. 
saudade longa.
 
seu filhote.
____________________________________________________________
 
(do livro: Poesia completa – volume único. autor: Mario Quintana. editora: Nova Fronteira.)
 
 
 
EU QUERIA TRAZER-TE UNS VERSOS MUITO LINDOS
 
 
Eu queria trazer-te uns versos muito lindos
colhidos no mais íntimo de mim…
Suas palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para as ouvir…
Sim! uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel.
Trago-te palavras, apenas… e que estão escritas
do lado de fora do papel… Não sei, eu nunca
                                                                                   soube
o que dizer-te
e este poema vai morrendo, ardente e puro, ao vento
da Poesia…
como
uma pobre lanterna que incendiou!
 
 
 
AS MÃOS DE MEU PAI
 
 
As tuas mãos têm grossas veias como cordas azuis
sobre um fundo de manchas já da cor da terra
— como são belas as tuas mãos
pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram da nobre
                                                                              cólera dos justos…
Porque há nas tuas mãos, meu velho pai, essa beleza que se
                                                                   chama simplesmente vida. 
 E, ao entardecer, quando elas repousam nos braços da tua
                                                                                    cadeira predileta,
uma luz parece vir de dentro delas…
Virá dessa chama que pouco a pouco, longamente, vieste
                          alimentando na terrível solidão do mundo,
como quem junta uns gravetos e tenta acendê-los contra
                                                                                                   o vento?
Ah! como os fizeste arder, fulgir, com o milagre das tuas mãos!
E é, ainda, a vida que transfigura as tuas mãos nodosas…
essa chama de vida — que transcende a própria vida
…e que os Anjos, um dia, chamarão de alma. 

SUÍTE DAS PALAVRAS: O VÉU VOLÁTIL
25 de novembro de 2011

_____________________________________________________________
 
o percurso da poesia:
 
do ponto onde o sangue verte, jorra, brota, tomando pulso.
 
há que se ter sentimento pulsando, inquietações &  vontades, para que a poesia lance seus primeiros passos à folha, tomando o pulso, tomando a mão do poeta.
 
víscera: qualquer órgão que desempenhe uma ou mais funções vitais do organismo.
 
víscera: no sentido figurativo, a parte mais íntima ou essencial de alguma coisa.
 
a víscera da poesia: sua força pelos fólios, sua força pelas folhas.
 
afinal, os órgãos vitais da poesia são a folha de papel, lugar onde a poesia é escrita, onde a poesia é pousada, e que, por isso mesmo, é onde ganha a sua força de existência, e também as palavras, responsáveis pela sua composição.
 
sem folha (sem o lugar onde a sua força exista) & sem palavras não há poesia.
 
poesia: força pelos fólios, com as palavras.
 
com as palavras, a poesia diz o impossível.
 
a poesia, por não se comprometer com nada, pode absolutamente tudo. pode, inclusive, dizer o impossível. para poesia não há barreiras nem limites. num poema, vaca pode voar. a flor pode cantar suas cores. e o céu, azul, pode, num passe lingüístico, azulejar-se por inteiro.
 
em sua foz, a poesia deságua pelo avesso. em sua foz, a poesia deságua ao contrário:
 
porque, no fundo, quem deságua não é a poesia, mas quem a lê. no fluxo das águas poéticas, não são as águas que se lançam porém nós, leitores, somos quem nos atiramos ao seu encontro. as águas poéticas permanecem estáticas, permanecem paradas, em folha de papel.
 
a poesia é um rio que, em sua foz, ao invés de lançar-se, aguarda que águas outras (as nossas) se lancem.
 
em sua foz, a poesia deságua pelo avesso indeclinado, em sua foz, a poesia deságua pelo avesso que não cede, pelo avesso que não desvia, pelo avesso que não declina: somos sempre nós quem desaguamos na foz do poema.
 
a poesia pode absolutamente tudo: o impossível dito.
 
poesia: fala “dor”, nomeia a “dor”, mas nomeia sem utilizar a palavra propriamente dita, nomeia através das metáforas, dos jogos lingüísticos.
 
a poesia fala “dor”, fala “amor”, fala o que for, sem a palavra propriamente.
 
ela, a poesia, pode tudo.
 
no seu percurso em folha & com palavras, a poesia surpreende por suas possibilidades.
 
poesia: espécie de arcano.
 
arcano: o que é profundamente secreto, misterioso, incompreensível.
 
o poema: armar a forma, armar a sua figura, a sua aparência, armar a sua construção, pelo lado abstrato, armar a forma pelo lado impalpável, armar a sua “matéria” pelo lado imaterial, sem suporte de linha, sem ajuda de traço, e sem norma estrita, e sem regra absoluta, e sem norma que não seja flexível:
 
é assim que o poema alcança o seu modo exato?
 
a exatidão do poema é alcançada pela abstração?…
 
o poema: traçar “ôntico” (relaciona-se ao “ente”, ao “ser”, ao “objeto”, mas num sentido oposto ao “ontológico”, que se refere à essência ou à natureza de cada particularidade existente,  que se refere ao “ser em si mesmo”, em sua “dimensão ampla e fundamental”; o “ôntico” se refere aos entes múltiplos e concretos da realidade), isto é, traçar o que é múltiplo & concreto na realidade, pelo lado onírico, pelo lado referente aos sonhos.
 
traçar “ôntico” (traçar o que é “múltiplo & concreto”) pelo lado onírico, isto é: traçar o material pelo lado imaterial; traçar “ôntico”, traçar o que é “múltiplo”, sem medo do lírico, isto é: traçar o “múltiplo” sem receio de dizer o “eu”, traçar o “diverso” a partir do “eu”, traçar o “muito” através do “único”.
 
traçar “ôntico” sem medo do “lírico” ou sem limite de corte.
 
sem limite de corte: as palavras, as linhas, num poema, o quanto necessário for, são cortadas, para o alcance da poesia que o poeta deseja ver/ler no papel.
 
traçar “ôntico” (o que é múltiplo & concreto na realidade) pelo lado “onírico” (relativo ao que não é concreto, relativo ao imaterial), sem medo do “lírico” (sem medo do sentimental, sem medo do que diz respeito ao “eu”) ou limite de corte (corte de versos & palavras):
 
eis o que dá norte à poesia?
 
é desse modo que a poesia constrói, é dessa maneira que a poesia traça, a sua rota?…
 
é essa a direção da poesia?…
 
(mistério…)
 
o poema é, de fato, uma espécie de arcano.
 
a poesia & seus mistérios:
 
ela desespera, às vezes, em guardanapo de papel.
 
ela, que incomoda tudo, às vezes, tem pressa de chegar.
 
poesia: o véu volátil.
 
poesia: o véu inconstante, véu volúvel.
 
a poesia possui uma natureza de alternâncias: uma hora, clara, outra hora, obscura.
 
na procura do entendimento, na procura da apreensão, dos versos, ora pode-se pensar tê-los absorvido & ora entende-se que absorção não é inteiramente segura.
 
a poesia trabalha por deslocamento da linguagem, diferentemente da prosa, que busca um discurso narrativo; a poesia fala através das figuras de linguagem, a poesia fala através das imagens, e a sua fala, por utilizar figuras de linguagem sem uma finalidade discursiva, pode apontar direções as mais variadas.
 
por isso a apreensão dos versos gera tantas dúvidas, por isso a tentativa de entendimento das linhas poéticas cria tantas incertezas.
 
durante a leitura, portanto, é muito comum que o poema, em determinado momento, pareça desnudar-se ao nosso entendimento, até que as dúvidas surjam por conta das possibilidades de caminhos que os jogos de palavras & as figuras de linguagem criam.
 
(a poesia é mistério, uma espécie de arcano.)
 
por isso o poema destrava, desprende, solta, o obscuro, por isso o poema destrava, desprende, solta, o que não se consegue enxergar, e, de repente, aclara, e, de repente, ilumina-se; o poema esvai-se em nossa gula voraz de decodificá-lo e, como sal, solve & coagula, e, como sal, dissolve & petrifica, e, desse jeito, nos paralisam as incertezas.
 
requer-se mais o poema, pede-se mais o poema, necessita-se mais do poema, se o poema alterna: pois é este fato, o de alternar-se (uma hora, claro, outra hora, escuro; destrava o obscuro e, de repente, aclara, para, a seguir, solver & coagular), que nos faz querer mais & mais o poema: a sede de descobrir o véu de sentidos & sentidos dos versos.
 
a poesia é coisa dura, coisa que, por dura, não é mole, não é fácil, abrindo um véu que não faz ver, véu volátil, véu volúvel, inconstante.
 
a poesia se estua inteira em espessura, cria barreira, hostil, arisca, arredia, e, inesperadamente, deixa-se tocar, inesperadamente, não mais arredia, inesperadamente, doce, inesperadamente, abre-se em flor, a fim de que vejamos a beleza das suas cores, a fim de que sintamos o frescor do seu perfume.
 
poesia: véu volátil. poesia: natureza de alternâncias (uma hora, clara, outra hora, escura).
 
poesia: estua-se inteira e, inesperada, deixa-se tocar: há que se ter cuidado, há que se desconfiar da poesia, há que se lembrar dos seus melindres, por vezes coisa dura, áspera, intratável.
 
a poesia trai em desaforo todos os sentidos, isto é, a poesia pode enganar, pode ludibriar, traiçoeira, atrevida, insolente, todos os (nossos) sentidos. a poesia cisma & tisna, a poesia macula, a poesia mancha, qualquer olho, qualquer olhar.
 
cuidado com ela. muita atenção ao tocá-la, ao querer desvendar o seu véu, volátil.
 
a poesia é um arcano. e, por ser um arcano, é livre.
 
como passarinho, a poesia deseja voar, ganhar ares.
 
havia um poeta com uma vontade danada de ser passarinho. com leveza de ave e palavras de todo dia, cantou & foi entendido por gente de vária gama.
 
sua poesia, ainda que a mais dura, ainda que a mais áspera, sustenta a leveza de uma pluma.
 
pequeno & só, era o mais alto vate. mestre da fina arte do aedo (do poeta) da grécia antiga.
 
seu nome: mario quintana, o poeta-passarinho, o tico-tiquinho, lindo, imprescindível.
 
um viva à arte poética & suas nuances! 
 
um viva aos grandes mestres!
 
beijo todos!
paulo sabino.
____________________________________________________________
 
(do livro: Sete suítes. autor: Antonio Fernando De Franceschi. editora: Companhia das Letras.)
 
 
 
PERCURSO
 
do ponto
onde o sangue verte
tomando pulso
 
víscera:
força pelos fólios
o impossível dito
 
foz:
deságua pelo avesso
indeclinado
 
dor:
fala nomeando
sem palavra
 
 
 
ARCANO
 
armar a forma
pelo lado abstrato
sem suporte de linha
ou estrita norma:
exato?
 
traçar ôntico
pelo lado onírico
sem medo do lírico
ou limite de corte:
o norte?
 
 
 
O VÉU VOLÁTIL
 
a poesia desespera
às vezes
em guardanapo de papel
ela
que incomoda tudo
tem pressa de chegar:
destrava o obscuro
aclara
esvai-se em gula
e como sal:
solve e coagula
requer-se mais
se alterna: dura
abrindo um véu
que não faz ver
se estua inteira
em espessura
e inesperada
deixa-se tocar: cisma
tisna qualquer olho
trai em desaforo
todos os sentidos
 
 
 
COM LEVEZA DE PLUMA
 
havia em seu peito
uma vontade danada
de ser passarinho
tico-tico
tico-tiquinho
 
mestre da fina arte
da Grécia antiga do aedo
confessou em epigrama
o seu anelo sem medo:
 
 
“Esses que aí estão
atravancando meu caminho
                               eles passarão,
                               eu passarinho”
 
 
 com leveza de ave
e palavras de todo dia
cantou e foi entendido
por gente de vária gama
 
pássaro que flanava
de rima em rama
era ele quem versava
a tessitura da trama
 
pequeno e só
na pura tensão do salto
era o poeta mais alto
seu nome: Mario Quintana 

 

TRANSITÓRIO: SEGUIR AO MAR COM ALEGRIAS PARA SEMPRE
16 de agosto de 2011

______________________________________________________________________________________________

ah,
 
como esta vida é urgente:
 
é preciso partir, é preciso chegar, é preciso partir, é preciso chegar.
 
é preciso viajar pela vida.
 
(o apito da locomotiva: e o trem se afastando, e o trem arquejando, e o trem viajando…)
 
no entanto, eu gosto mesmo é de partir, de ir, de caminhar.
 
e — até hoje — quando acaso embarco para alguma parte, acomodo-me no meu lugar, seja este qual for — a cadeira da escrivaninha, o sofá da sala, a cama no quarto, a janela voltada ao azul —, fecho os olhos e sonho:
 
ir, caminhar, viajar, mas para parte nenhuma… apenas viajar, viajar indefinidamente, ter como principal objetivo o somente caminhar, ir, viajar, como uma nave espacial perdida entre as estrelas.
 
(é preciso viajar pela vida.)
 
ir, caminhar, viajar, seguir.
 
seguir para o mar, deixar-me ser o que sou, o que sempre fui: um rio que vai fluindo.
 
em vão cantarão as horas em minhas margens, pois não hei de ficar no canto das horas; este (o canto das horas) esvai-se, evola-se, cinza de um corpo esvaído de qualquer sentido.
 
um espelho não guarda as coisas refletidas. nada é retido, tudo nos passa (inda mais quando se é um rio, como eu sou), nada nos sobra de paisagem no espelho d’água.
 
e o meu destino é seguir, é seguir para o mar, as imagens perdendo no caminho. deixar-me fluir, passar, cantar…
 
todavia,
 
na via da vida, há coisas que não conseguem ser olvidadas.
 
as coisas que não conseguem ser esquecidas continuam acontecendo.
 
sentimo-las fora do tempo, no mundo do “sempre”, onde as datas não datam, onde as datas não têm função; afinal, são coisas que sentimos fora do tempo.
 
que importa se findou no mundo em que o tempo impera aquilo que sentimos fora do tempo?
 
há bens inalienáveis, há certos momentos que, ao contrário do que se pensa, fazem parte da vida presente e não do passado, momentos que se abrem no sorriso mesmo quando sorrimos a outras coisas, momentos que estão contidos na alegria de outros momentos.
 
uma coisa bela é uma alegria para sempre — disse, uma vez, um poeta que não conseguiu morrer, poeta que se mantém vivo através da sua obra, o seu bem inalienável.
 
(um viva à vida!)
 
beijo todos!
paulo sabino.
_____________________________________________________________________________________________
 
(do livro: Baú de espantos. autor: Mario Quintana. editora: Globo.)
 
 
 
POEMA TRANSITÓRIO
 
 
Eu que nasci na Era da Fumaça: — trenzinho
vagaroso com vagarosas
paradas
em cada estaçãozinha pobre
para comprar
                   pastéis
                   pés-de-moleque
                   sonhos
— principalmente sonhos!
porque as moças da cidade vinham olhar o trem passar:
elas suspirando maravilhosas viagens
e a gente com um desejo súbito de ali ficar morando
sempre… Nisto,
o apito da locomotiva
e o trem se afastando
e o trem arquejando
 
é preciso partir
é preciso chegar
é preciso partir é preciso chegar… Ah, como esta vida é
                                                                                                     urgente! 
… no entanto
eu gostava era mesmo de partir…
e — até hoje — quando acaso embarco
para alguma parte
acomodo-me no meu lugar
fecho os olhos e sonho:
viajar, viajar
mas para parte nenhuma…
viajar indefinidamente…
como uma nave espacial perdida entre as estrelas.
 
 
 
DEIXA-ME SEGUIR PARA O MAR
 
 
Tenta esquecer-me… Ser lembrado é como
evocar-se um fantasma… Deixa-me ser
o que sou, o que sempre fui, um rio que vai fluindo…
 
Em vão, em minhas margens cantarão as horas,
me recamarei de estrelas como um manto real,
me bordarei de nuvens e de asas,
às vezes virão em mim as crianças banhar-se…
 
Um espelho não guarda as coisas refletidas!
E o meu destino é seguir… é seguir para o Mar,
as imagens perdendo no caminho…
Deixa-me fluir, passar, cantar…
 
toda a tristeza dos rios
é não poderem parar!
 
 
 
UMA ALEGRIA PARA SEMPRE
 
                                                                     Para Elena Quintana
 
 
As coisas que não conseguem ser
olvidadas continuam acontecendo.
Sentimo-las como da primeira vez,
sentimo-las fora do tempo,
nesse mundo do sempre onde as
datas não datam. Só no mundo do nunca
existem lápides… Que importa se —
depois de tudo — tenha “ela” partido,
casado, mudado, sumido, esquecido,
enganado, ou que quer que te haja
feito, em suma? Tiveste uma parte da
sua vida que foi só tua e, esta, ela
jamais a poderá passar de ti para ninguém.
Há bens inalienáveis, há certos momentos que,
ao contrário do que pensas,
fazem parte da tua vida presente
e não do teu passado. E abrem-se no teu
sorriso mesmo quando, deslembrado deles,
estiveres sorrindo a outras coisas.
Ah, nem querias saber o quanto
deves à ingrata criatura…
A thing of beauty is a joy for ever
— disse, há cento e muitos anos, um poeta
inglês que não conseguiu morrer.

CANTO ÓRFICO
9 de agosto de 2011

______________________________________________________________________________________________

o canto é minha explicação.
 
a poesia é o que dá sentido ao meu rumo.
 
o poema é o meu grande guru.
 
(quem faz um poema salva um afogado.)
 
mesmo quando digo o que não sei, o canto é minha explicação: afinal, somos repletos de saberes & de desconhecimentos.
 
em verdade, nas vivências, mais não sabemos que sabemos.
 
o mundo, o entorno, é um absoluto silêncio, e esse silêncio soa-nos como uma absoluta incógnita.
 
sou o sentido do que se transforma, sou a rota do que se modifica, sou o norte do que se reconfigura, sou o sentido, sou a orientação, do que resiste à petrificação, do que não se cristaliza (o sempre ser para todo o sempre), e não conheço o declínio.
 
não conheço o declínio porque, na minha vida, o tombo é, no fundo, um passo a mais na trajetória de constante aprendiz: afinal, com os tombos aprende-se muito; as quedas principiam novas veredas, apontam setas inéditas, caminhos não imaginados não fossem os tombos.
 
vocês, que ouvem o que lhes digo:
 
saibam que tudo repara o tempo, em tudo o tempo dá jeito, tudo o tempo reinventa.
 
somos agentes, seres históricos, construímos, fazemos a História.
 
a existência é árdua. crises econômicas, pobreza, matança, extermínio, extinção, destruição. pessoas jurídicas, corporações nocivas ao convívio social, que destroem o que lhes atravesse o caminho, agindo, aqui & ali, lá & cá, diagnosticadas, inclusive, como “sociopatas”.
 
a existência é árdua. mas podemos repará-la.
 
(somos agentes, seres históricos, construímos, fazemos a história.)
 
tudo o tempo repara, menos a morte, mensageira do escuro, do oculto, do que finda, poderosa, que põe nos corações, desde o princípio, o seu germe vingador.
 
diz o dito popular: “para morrer, basta estar vivo”.
 
a morte coloca o seu germe vingador em nós desde o princípio: seja homem, mulher, jovem, velho, preto, branco, triste, feliz, saudável, doente, sensível, endurecido, hetero, gay, solteiro, casado, honesto, ladrão, crente, ateu, seja quem for, seja o que for, a morte, mensageira do escuro, implacável, poderosa, acerta-nos seu golpe, impiedoso, a qualquer hora do dia ou da noite, em momentos os mais variados possíveis.
 
nenhum sustento, nenhum amparo, nenhum apoio, nenhum suporte, nenhum sustentáculo, é eterno, ainda que tal sustento, que tal amparo, que tal apoio, que tal suporte, que tal sustentáculo, seja extraído da seiva que arde nas veias grossas do mundo.
 
nada é eterno. somos mortais. nada nos é dado sem o cobro, sem a cobrança, dos deuses — um dia, a seiva que arde nas veias grossas do mundo nos é negada, e chega ao fim a nossa jornada neste chão que pisamos…
 
por isso, ouçam:
 
aos senhores, estimo a insubmissão do amor, aos senhores, estimo a capacidade revolucionária do amor, de transformar realidades, de romper barreiras, de apagar fronteiras,  aos senhores, estimo o desígnio divino do amor, de querer o bem-estar de tudo o que pulsa & compõe a sua paisagem.  
 
aos senhores, também estimo a dor, pois a dor representa um modo de aprendizado. a dor é uma das dimensões existenciais; não existe vida sem insatisfações, sem inquietações, e sem cólera.
 
que a insatisfação & a dor & a cólera os salvem deste destino de todos, menor & implacável, que é: a morte.
 
(se sofremos, se a dor existe, é porque amamos. a dor está incluída no pacote. portanto, dêem-se por satisfeitos em abrigar a dor de amar.)
 
já que, um dia, nos será negada a seiva que arde nas veias grossas do mundo:
 
aproveitemos enquanto há tempo.
 
aos senhores, o amor & a sua dor!
 
beijo todos!
paulo sabino.
_____________________________________________________________________________________________
 
(do livro: Antologia poética. autora: Marly de Oliveira. organização: João Cabral de Melo Neto. editora: Nova Fronteira.)
 
 
 
1.
 
O canto é minha explicação,
mesmo que diga o que não sei.
Sou o sentido do que se transforma,
do que resiste à petrificação
 
e não conheço o declínio. Ó vós que ouvis
o que vos diz Orpheu, sabei que tudo
repara o tempo, salvo a morte,
mensageira do escuro, poderosa,
que põe nos corações desde o princípio
seu germe vingador. Nenhuma Fúria
se lhe compara, nenhum sustento é eterno,
mesmo se subtraído à seiva que arde
nas veias grossas do mundo. Sois mortais
e vosso sacrifício há de ser grande,
que nada nos é dado sem o cobro
dos deuses.
 
       Ouvi, no entanto, vós, que a ilusão
buscais  sempre na vã agitação:
eu vos ensino a insubmissão do amor,
a inquietude que leva até o inferno
 
em vida, o êxtase, o delírio. Eu vos ensino
a dor e vos ensino a cólera,
que ela vos salve de vosso destino
menor e implacável. E vos ensino a glória.    

CONFISSÃO
24 de setembro de 2010

a vocês,
 
belíssima confissão poética, onde o meu (talentosíssimo) poeta das alagoas, adriano nunes, mostra que as diferenças podem & devem ser complementárias, inda mais se tratando de poesia.
 
uma coisa que não canso de proferir (digo & repito aos quatro ventos) é que:
 
belezas não nasceram para exclusão, nasceram para complementaridade
 
sinto que a poesia, os poetas e os leitores só têm a ganhar com as singularidades de cada voz poética.
 
percebo que me torno melhor sendo o eco de tantas vozes divergentes; acumulo saberes.
 
detesto enquadramentos. 
abomino rótulos.
não suporto classificações. 
 
sinto-me fora de tudo: fora de esquadro, fora de foco, fora do centro. o trabalho que desempenho não tem nome, não pede enquadramento, rótulo ou classificação.
 
por isso absorvo tantos vates, sem pré-conceitos. acima de tudo, o que busco é autenticidade. e a autenticidade, senhores, pode ser encontrada em qualquer livro-ambiente. basta o ser: autêntico. 
 
essa “libertinagem literária” (rs), que apoio inquestionavelmente, está presente nas linhas que seguem.
 
nos versos, o poeta revela ao leitor algumas importantes influências literárias suas, as mais díspares (e eu ADORO!):
 
engole ferreira gullar, dorme com carlos drummond, e, tamanha “libertinagem” (rs), é uma pessoa ligada em pessoa (no fernando) e, como o bardo português, repleto de pessoas na pessoa.
 
e continua poemafora:
 
andando a pé (o pé com a dor), pecador de ofício, segue dando bandeira ao lado do manuel. na visão, dois campos (o augusto e o haroldo). na razão, os mil anjos de rilke. às quintas, mário quintana & sua companhia.
 
(uma pausa para verificações: que sabe mais o poeta de si se tudo o que de si sabe está envolto em poesia?) 
 
prossegue, fazendo um divertido jogo poético com a gênese que resultou no que hoje denominamos “brasil”: citação ao descobridor do país, pedro álvares cabral, que, nos versos, acaba por ser descoberto (rs), ao responsável pelo primeiro texto literário de que se tem notícia em terras brasileiras, que é a carta de pero vaz de caminha (famoso escrivão da esquadra de pedro álvares cabral), na qual descreve o seu deslumbramento ante o mundo novo que se descortinava ao seu olhar, e citação ao padre antônio vieira, jesuíta que viveu no brasil no século 17, famoso por seus satíricos sermões contra determinadas práticas da sua época, sermões de suma relevância para a literatura barroca brasileira & portuguesa. 
 
de repente as linhas dão um salto para os modernos: e waly sailormoon?, onde está o navegante luarento? e adélia, será que junto ao seu: prado? e piva, o roberto, o poeta de paranóias da paulicéia desvairada, cadê?
 
são tantos os responsáveis pelo emaranhado de versos… a quem dedicá-los? a circe, a “feiticeira das odisséias”?, ou a cecília, a “poeta das canções”?   
 
ao final, a constatação de que ficam muitos (tantos & tantos & tantos outros) poetas apenas no pensamento e na intenção, à margem desta confissão, e a ressalva, confessando ao último mestre citado, o grande paulo leminski, que lamenta por todos os outros não citados.
 
toda homenagem é um tanto “desfalcada”, um tanto “incompleta”, deixa sempre algo de fora. porém, o fato de deixar, sempre, algo de fora não a torna menos bonita, delicada & inspiradora.  
 
deliciem-se com esta belíssima confissão, ventada das alagoas e devidamente pousada neste espaço!
 
beijo em todos!
um outro, especialíssimo, no meu querido poeta adriano nunes!   
 
o preto,
paulo sabino / paulinho. 
___________________________________________________________
 
(do blogue: QUEFAÇOCOMOQUENÃOFAÇO. de: Adriano Nunes.)
 
 
CONFISSÃO  (autor: Adriano Nunes)
________________________________
engulo gullar
durmo com drummond
sou uma pessoa
ando muito a pé
pecador de ofício
dou tanta bandeira
na visão, dois campos
na razão, mil anjos
às quintas, quintana
que sei mais de mim?
descubro cabral
conto pra caminha
confesso a vieira
onde está waly?
no ar? nos túneis? nada!
eu, nunca? nem ela,
minha piva, adélia.
pra circe ou cecília?
os outros, os outros…
lamento, leminski!

EU GOSTO DOS QUE ARDEM
10 de dezembro de 2009

prezados,
 
abaixo, poesias que compõem um capítulo do livro “veneno antimonotonia – os melhores poemas e canções contra o tédio”. o texto de apresentação, belíssimo e escrito pelo poeta eucanaã ferraz, pode ser lido aqui: https://prosaempoema.wordpress.com/2009/09/18/notas-de-um-antologista/
 
nas linhas que seguem, as minhas estima e admiração pelos que ardem, pelos que queimam, pelos que chamuscam na vida.
 
manter o fogo da existência sempre aceso, & firme, forte, em riste.
 
a vida é um incêndio e eu gosto dos que ardem, a mil, a cem por hora, com o narciso em chamas. do sul, cativo — deus salve a américa do sul! —, o este é meu norte. meu tempo é quando. e eu anseio incendiar o país.
 
(agir, girar, dançar por sobre o fogo — feito salamandra mágica —, com o domínio e a beleza de um orixá, com as destrezas de iansã e xangô.) 
 
mantenham acesas as labaredas da vida. mantenham, no olho do furacão, o ar dor que respiramos e que nos retorna vigor e ânimo e fôlego e.
 
cantemos a canção das chamas!
 
(velho ou criança: a vida é bela.)
 
beijo grande!
o preto,
paulo sabino / paulinho.
________________________
 
(do livro: Veneno antimonotonia — os melhores poemas e canções contra o tédio. organização: Eucanaã Ferraz. editora: Objetiva. Capítulo: Eu gosto dos que ardem.)  
 
 
INSCRIÇÃO PARA UMA LAREIRA  mario quintana
 
A vida é um incêndio: nela
dançamos, salamandras mágicas.
Que importa restarem cinzas
se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam,
cantemos a canção das chamas!
 
Cantemos a canção da vida
na própria luz consumida…
 
 
PIRAR É ARDER  armando freitas filho
 
Pirar é arder
a mil
         fora da pista
com o narciso em chamas.
É cair em si sem sentir
nenhum sentido, e seguir
segundo por segundo
a cem por hora
a céu aberto
verão adentro
sem pouso ou pique
sequer 
         para um gole de sombra
refresco, abraço ou guarida.
É correr na contramão
por bares, praias, casas
pegando fogo
e chegar — ventando —
na hora H
de todos os incêndios
sem água ou nada
que apague as labaredas
carregando apenas
mochilas cheias de mormaço.
Pirar é arder
a mil
         milímetro por milímetro
e queimar
                        velocilento
como uma brasa
se consome
até na fogueira do próprio sono
e, de repente, some.
É estar nu e só
no centro ou no lugar
onde somente o sol
sabe
                           e assassina.
 
 
SÓ AS MÃES SÃO FELIZES  cazuza  — música de roberto frejat
 
Você nunca varou
A Duvivier às 5
Nem levou um susto saindo do Val Improviso
Era quase meio-dia
No lado escuro da vida
 
Nunca viu Lou Reed
“Walking on the Wild Side”
Nem Melodia transvirado
Rezando pelo Estácio
Nunca viu Allen Ginsberg
Pagando michê na Alaska
Nem Rimbaud pelas tantas
Negociando escravas brancas
 
Você nunca ouviu falar em maldição
Nunca viu um milagre
Nunca chorou sozinha num banheiro sujo
Nem nunca quis ver a face de Deus
 
Já freqüentei grandes festas
Nos endereços mais quentes
Tomei champanhe  e cicuta
Com comentários inteligentes
Mais tristes que os de uma puta
No Barbarella às 15 pras 7
 
Reparou como os velhos
Vão perdendo a esperança
Com seus bichinhos de estimação e plantas?
Já viveram tudo
E sabem que a vida é bela
 
Reparou na inocência
Cruel das criancinhas
Com seus comentários desconcertantes?
Adivinham tudo
E sabem que a vida é bela  
 
Você nunca sonhou
Ser currada por animais
Nem transou com cadáveres?
Nunca traiu o teu melhor amigo?
Nem quis comer a tua mãe?
 
Só as mães são felizes…
 
 
POÉTICA  vinicius de moraes
 
De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.
 
A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.
 
Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem
 
Nasço amanhã
Ando onde há espaço
— Meu tempo é quando. 
 
 
JANDIRA  murilo mendes
 
O mundo começava nos seios de Jandira.
Depois surgiram outras peças da criação:
surgiram os cabelos para cobrir o corpo,
(às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos).
E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo.
E surgiram sereias da garganta de Jandira:
o ar inteirinho ficou rodeado de sons
mais palpáveis do que pássaros.
E as antenas das mãos de Jandira
captavam objetos animados, inanimados,
dominavam a rosa, o peixe, a máquina.
E os mortos acordavam nos caminhos visíveis do ar
quando Jandira penteava a cabeleira…
 
Depois o mundo desvendou-se completamente,
foi-se levantando, armado de anúncios luminosos.
E Jandira apareceu inteiriça,
de cabeça aos pés.
Todas as partes do mecanismo tinham importância.
E a moça apareceu com o cortejo do seu pai,
de sua mãe, de seus irmãos.
Eles é que obedecem aos sinais de Jandira
crescendo na vida em graça, beleza, violência.
Os namorados passavam, cheiravam os seios de Jandira
e eram precipitados nas delícias do inferno.
Eles jogavam por causa de Jandira,
deixavam noivas, esposas, mães, irmãs
por causa de Jandira.
E Jandira não tinha pedido coisa alguma.
E vieram retratos no jornal
e apareceram cadáveres boiando por causa de Jandira.
Certos namorados viviam e morriam
por causa de um detalhe de Jandira.
Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira.
Outro, por causa de uma pinta na face esquerda de Jandira.
E seus cabelos cresciam furiosamente com a força das máquinas;
não caía nem um fio,
nem ela os aparava.
E sua boca era um disco vermelho
tal qual um sol mirim.
Em roda do cheiro de Jandira
a família andava tonta.
As visitas tropeçavam nas conversações
por causa de Jandira.
 
E um padre na missa
esqueceu de fazer o sinal-da-cruz por causa de Jandira.
 
E Jandira se casou.
E seu corpo inaugurou uma vida nova,
apareceram ritmos que estavam de reserva,
combinações de movimento entre as ancas e os seios.
À sombra do seu corpo nasceram quatro meninas que repetem
as formas e os sestros de Jandira desde o princípio do tempo.
 
E o marido de Jandira
morreu na epidemia de gripe espanhola.
E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela.
Desde o terceiro dia o marido
fez um grande esforço para ressuscitar:
não se conforma, no quarto escuro onde está,
que Jandira viva sozinha,
que os seios, a cabeleira dela transtornem a cidade
e que ele fique ali à toa.
 
E as filhas de Jandira
inda parecem mais velhas do que ela.
E Jandira não morre,
espera que os clarins do juízo final
venham chamar seu corpo,
mas eles não vêm.
E mesmo que venham, o corpo de Jandira
ressuscitará inda mais belo, mais ágil e transparente.
 
 
SUBVERSIVA  ferreira gullar
 
A poesia
quando chega
                   não respeita nada.
Nem pai nem mãe.
                         Quando ela chega
de qualquer de seus abismos
desconhece o Estado e a Sociedade Civil
infringe o Código de Águas
                                            relincha
como puta
         nova
         em frente ao Palácio da Alvorada.
 
E só depois
reconsidera: beija
                   nos olhos os que ganham mal
                   embala no colo
                   os que têm sede de felicidade
                   e de justiça
 
E promete incendiar o país
 
 
SENHAS  adriana calcanhotto
 
Eu não gosto do bom gosto 
Eu não gosto do bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto
 
Eu agüento até rigores
Eu não tenho pena dos traídos
Eu hospedo infratores e banidos
Eu respeito conveniências
Eu não ligo pra conchavos
Eu suporto aparências
Eu não gosto de maus-tratos
 
Mas o que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto
 
Eu agüento até os modernos
E seus segundos cadernos
Eu agüento até os caretas
E suas verdades perfeitas
 
O que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto
 
Eu agüento até os estetas
Eu não julgo competência
Eu não ligo pra etiqueta
Eu aplaudo rebeldias
Eu respeito tiranias
E compreendo piedades
Eu não condeno mentiras
Eu não condeno vaidades
 
O que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto
 
Eu gosto dos que têm fome
Dos que morrem de vontade
Dos que secam de desejo
Dos que ardem

QUITANDA DO QUINTANA
28 de setembro de 2009

comensais,
 
as poesias que seguem são frutos de um poeta cuja obra transpira delicadeza, sensibilidade e sofisticação. as linhas são de um lirismo à flor da pele, à flor da sua pena, ágil e certeira, ao manejar tão precisamente as palavras para a configuração de imagens tão apetecíveis. 
 
desta quitanda, frutos da melhor qualidade postos a consumo d’alma. os olhos acesos ante a beleza e o sabor do poemalimento.
 
eis, aqui, algumas ofertas da quitanda do quintana.
 
fartem-se, convivas! estas frutas regulam o bom funcionamento da flora psíquica (rs). 
 
(chico lobo, meu eterno GRANDE amigo, homem bonito e bacana, homem que me trouxe uma série de pessoas que se tornaram amigas e que desejo, e que carrego!, comigo para sempre, ser humano que marcou de modo enriquecedor a minha vida, tantas as belezas compartilhadas, isto é muito para você. para nós, como já bradou o seu xará buarque de hollanda, peço: luz! quero luz! tenha sempre em mente: para além das cortinas, palcos azuis, e, para além dos palcos azuis, infinitas cortinas com palcos atrás. beijo grande, meu lobo bom!) 
 
outro enorme em todos vocês,
o preto,
paulo sabino / paulinho.
_________________________ 
  
(Todos os poemas de Mário Quintana. Dos livros: A Rua dos Cataventos; Canções; Sapato FloridoEspelho Mágico; editora: Globo)
  
III
 
Quando os meus olhos de manhã se abriram,
Fecharam-se de novo, deslumbrados:
Uns peixes, em reflexos doirados,
Voavam na luz: dentro da luz sumiram-se…
 
Rua em rua, acenderam-se os telhados.
Num claro riso as tabuletas riram.
E até no canto onde os deixei guardados
Os meus sapatos velhos refloriram.
 
Quase que eu saio voando céu em fora!
Evitemos, Senhor, esse prodígio…
As famílias, que haviam de dizer?
 
Nenhum milagre é permitido agora…
E lá se iria o resto de prestígio
Que no meu bairro eu inda possa ter!…
 
 
IV
 
Minha rua está cheia de pregões.
Parece que estou vendo com os ouvidos:
“Couves! Abacaxis! Cáquis! Melões!”
Eu vou sair pro Carnaval dos ruídos,
 
Mas vem, Anjo da Guarda… Por que pões
Horrorizado as mãos em teus ouvidos?
Anda: escutemos esses palavrões
Que trocam dois gavroches atrevidos!
 
Pra que viver assim num outro plano?
Entremos no bulício quotidiano…
O ritmo da rua nos convida.
 
Vem! Vamos cair na multidão!
Não é poesia socialista… Não,
Meu pobre anjo… É… simplesmente… a Vida!…
 
 
VI
 
Na minha rua há um menininho doente.
Enquanto os outros partem para a escola,
Junto à janela, sonhadoramente,
Ele ouve o sapateiro bater sola.
 
Ouve também o carpinteiro, em frente,
Que uma canção napolitana engrola.
E pouco a pouco, gradativamente,
O sofriemento que ele tem se evola…
 
Mas nesta rua há um operário triste:
Não canta nada na manhã sonora
E o menino nem sonha que ele existe.
 
Ele trabalha silenciosamente…
E está compondo este soneto agora,
Pra alminha boa do menino doente…
 
 
XXVII
 
Quando a luz estender a roupa nos telhados
E for todo o horizonte um frêmito de palmas
E junto ao leito fundo nossas duas almas
Chamarem nossos corpos nus, entrelaçados,
 
Seremos, na manhã, duas máscaras calmas
E felizes, de grandes olhos claros e rasgados…
Depois, volvendo ao sol as nossas quatro palmas,
Encheremos o céu de vôos encantados!…
 
E as rosas da Cidade inda serão mais rosas,
Serão todos felizes, sem saber por quê…
Até os cegos, os entrevadinhos… E
 
Vestidos, contra o azul, de tons vibrantes e violentos,
Nós improvisaremos danças espantosas
Sobre os telhados altos, entre o fumo e os cataventos!
 
 
A Canção da Menina e Moça
 
Uma paisagem com um só coqueiro.
Que triste!
E o companheiro?
 
Cabrinha que sobes o monte pedrento.
Só, contra as nuvens.
Será teu esposo o vento?
 
O meu esposo há de cheirar a tronco,
Como eu cheiro à flor.
 
Um coração não cabe num só peito:
Amor… Amor…
 
Uma paisagem com um só coqueiro…
Uma igrejinha com uma torre só…
Sem companheira… Sem companheiro…
Ó dor!
 
O meu esposo há de cheirar a tronco,
Como eu cheiro… como eu cheiro
A amor…
 
 
Janela de Abril
 
Tudo tão nítido! O céu rentinho às pedras. Pode-se enxergar até os nomes que andaram traçando a carvão naquele muro. Mas, mesmo que o céu soubesse ler, isso não teria agora a mínima importância. E sente-se que Nosso Senhor, em comemoração de abril, instituirá hoje valiosos prêmios para o riso mais despreocupado, para o sapato mais rinchador, para a pandorga mais alta sobre o morro.
 
 
XII Das Utopias
 
Se as coisas são inatingíveis… ora!
Não é motivo para não querê-las…
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas!
 
 
XIII Do Belo
 
Nada, no mundo, é, por si só, feio.
Inda a mais vil mulher, inda o mais triste poema,
Palpita sempre neles o divino anseio
Da beleza suprema…
 
 
XIV Do Mal e do Bem
 
Todos têm seu encanto: os santos e os corruptos.
Não há coisa, na vida, inteiramente má.
Tu dizes que a verdade produz frutos…
Já viste as flores qua a mentira dá?
 
 
XXVI Da Mediocridade
 
Nossa alma incapaz e pequenina
Mais complacência que irrisão merece.
Se ninguém é tão bom quanto imagina,
Também não é tão mau como parece.
 
 
XLI Da Arte de Ser Bom
 
Sê bom. Mas ao coração
Prudência e cautela ajunta.
Quem todo de mel se unta,
Os ursos o lamberão.
 
 
XLIV Dos Livros
 
Não percas nunca, pelo vão saber,
A fonte viva da sabedoria.
Por mais que estudes, que te adiantaria,
Se a teu amigo tu não sabes ler?
 
 
LXVIII Da Felicidade
 
Quantas vezes a gente, em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura,
Tendo-os na ponta do nariz!
 
 
Canção do Dia de Sempre
 
Tão bom viver dia a dia…
A vida, assim, jamais cansa…
 
Viver tão só de momentos
Como essas nuvens no céu…
 
E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência… esperança…
 
E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.
 
Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.
 
Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!
 
E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas…