PESSOANA
20 de agosto de 2014

Fernando Pessoa_Jovem

(Na foto, o poeta português Fernando Pessoa.)
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uma poesia, uma apresentação textual, “pessoana”, uma poesia, uma apresentação textual, à maneira de (fernando) pessoa:

quando não sei o que sinto, quando não compreendo o que sinto, quando não consigo apreender um sentimento através da razão, sei que o que sinto é (exatamente) o que sou: só o que não meço não minto.

em mim, só o que não consigo medir, só aquilo que não consigo conter, que não consigo calcular, mensurar, analisar, definir, é o que sou exatamente: pois tudo o que consigo medir, tudo o que consigo conter, que consigo calcular, mensurar, analisar, definir, não é o que eu sou mas a interpretação que faço do que sou, através da razão. sendo o que meço, o que controlo, o que calculo, o que mensuro, o que analiso, o que defino, uma interpretação do que sou & não o que eu sou exatamente, a interpretação que alcanço de mim é já, em si, uma inverdade, uma falsidade, uma mentira:

porque passível de muitos erros. porque toda & qualquer interpretação de toda & qualquer coisa nunca será a “coisa em si”.

a interpretação de um sentimento nunca será exatamente o que o sentimento é.

sem a interpretação, sem o entendimento do sentimento, resta apenas o sentimento em si: sem interpretação, não minto: somente sinto.

mas tão logo identifico, tão logo decodifico, tão logo reconheço, o “não-lugar” onde estou, tão logo identifico, decodifico, reconheço, o tipo de desencontro em que me encontro, decido que ali não fico, decido não mais me encontrar em “determinado” desencontro, pois onde me delimito, pois onde me “determino”, já não sou mais o que sou (só o que não meço, não controlo, não calculo, não mensuro, não analiso, não defino — eu não minto) mas tão-somente me imito.

de ponto a ponto, de lugar a lugar por onde vou, sem planejar, traçando os meus passos ao sabor da simples vontade de caminhar, rabisco o mapa de onde não vou, pois só vou por trilhas que desconheço a rota, só vou por trilhas que não sei onde vão dar, só sigo o mapa que silencia o caminho da mina & do tesouro, ligando de risco em risco, isto é, ligando de perigo em perigo, e também ligando de linha em linha (de versos, de prosa), meus equívocos favoritos (o caminhar a esmo, naturalmente, propõe diversos tipos de perigos, diversos tipos de riscos, de equívocos, de erros, que, com o tempo, acumulo em riscos, acumulo em linhas poéticas, acumulo em linhas de prosa), até que tudo que sou é um acúmulo de escritos, de textos por onde me enxergam os senhores, penetrável labirinto em cujo centro não estou (os textos que escrevo não são exatamente o que eu, paulo sabino, sou) mas apenas me pressinto, apenas me percebo, apenas me desconfio, mero signo, mero fenômeno que representa algo diferente de si mesmo: um simples mito.

e, como todos, eu minto meu mito.

(quando não sei o que sinto, sei que o que sinto é o que sou exatamente, pois não há os erros de avaliações, não há os erros de projeções.)

(e a vida, o caminhar, é pura errância, porque a vida é pura interpretação, a vida é pura linguagem, a vida é pura simbologia…)

(só o que não meço, não controlo, não calculo, não mensuro, não analiso, não defino — eu não minto.)

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Trovar claro. autor: Paulo Henriques Britto. editora: Companhia das Letras.)

 

 

PESSOANA

 

Quando não sei o que sinto
sei que o que sinto é o que sou.
Só o que não meço não minto.

Mas tão logo identifico
o não-lugar onde estou
decido que ali não fico,

pois onde me delimito
já não sou mais o que sou
mas tão-somente me imito.

De ponto a ponto rabisco
o mapa de onde não vou,
ligando de risco em risco

meus equívocos favoritos,
até que tudo que sou
é um acúmulo de escritos,

penetrável labirinto
em cujo centro não estou
mas apenas me pressinto

mero signo, simples mito.