ELEGIA (1938)
10 de setembro de 2014

Pessoas na rua

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elegia: poema lírico de tom terno & triste.

uma elegia feita ao ano de 1938 & transportada ao ano de 2014:

tu, pessoa comum, de carne & osso & coração assim como eu, trabalhas sem alegria, sem ânimo, para um mundo caduco, trabalhas sem alegria para um mundo demente, insano, decrépito, onde as formas — formas de trabalho, modelos de relação, estilos de vida — & as ações — o que priorizar, o que valorizar, o que desprezar, o que aniquilar — não encerram nenhum exemplo, onde as formas & as ações não encerram, não contêm, não incluem, nenhum exemplo.

tu, pessoa comum, de carne & osso & coração assim como eu, praticas laboriosamente, praticas sofridamente, triste, angustiado, os gestos universais, os gestos comuns a todos nós, seres de carne & osso & coração, sentes calor & frio, sentes a falta de dinheiro, fome & desejo sexual.

tu, pessoa comum, de carne & osso & coração assim como eu, praticas laboriosamente os gestos universais, os gestos comuns a todos nós, enquanto heróis — os homens de destaque, homens prestigiosos, de atitudes “nobres” — enchem os parques da cidade em que te arrastas & preconizam, recomendam, alardeiam: a virtude (ser bom, aceitando o que é empurrado goela abaixo), a renúncia (abdicar de prazeres pelo trabalho, ainda que sufocante, ainda que asfixante, ainda que opressivo), o sangue-frio (manter a calma diante de toda a calamidade que é a tua vida), a concepção (acreditar & investir na criação, na formulação, na produção, deste mundo caduco).

à noite, se neblina, se chuvisca, se garoa, os heróis (os homens de destaque, homens prestigiosos, de atitudes “nobres”) abrem guarda-chuvas de bronze, guarda-chuvas tão poderosos que os protegem de todo & qualquer respingo deste mundo, ou se recolhem aos volumes de bibliotecas sinistras, bibliotecas nefastas, maléficas, assustadoras, bibliotecas que ensinam os meandros do ter mais do que ser, do capital, da riqueza, do papel-moeda, das cifras, da especulação financeira.

tu, pessoa comum, de carne & osso & coração assim como eu, amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra (à noite, dormes o teu sono profundo, cansado) & sabes que, dormindo, os problemas, os pesares todos, te dispensam de morrer. mas o terrível despertar (“terrível” porque mais um despertar em que trabalharás para este mundo caduco) prova a existência da “grande máquina” em que o mundo se transformou (provando, assim, a sua grande caducidade) & ele, o terrível despertar, te repõe, pequenino, ínfimo, limitado, em face de indecifráveis palmeiras, palmeiras altaneiras, palmeiras enigmáticas, palmeiras no mundo caduco para quê?

tu, pessoa comum, de carne & osso & coração assim como eu, caminhas entre mortos (entre os teus, que já partiram deste mundo caduco) & com eles conversas sobre coisas do tempo futuro — teus planos, teus anseios — & negócios do espírito, assuntos que dizem respeito à tua existência. a literatura, arte do livro que te livrou do mundo caduco, arte a que recorreste na tentativa de amenizar dores & dissabores, estragou as tuas melhores horas de amor, e ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear (de semear as tuas horas de amor).

tu, pessoa comum, de carne & osso & coração assim como eu, entristecido, desanimado, sentindo-se um fracassado: coração orgulhoso, coração vaidoso, coração empertigado, tens pressa de confessar tua derrota & adiar, para outro século, a felicidade coletiva.

coração orgulhoso, coração vaidoso, coração empertigado, tens pressa de confessar tua derrota & adiar, para outro século, a felicidade coletiva: confessar a própria derrota é confessar a derrota de todo um tempo, de todo um sistema, de todo um modelo, de todo um estilo, de toda uma concepção de vida, que, ao adiar a felicidade coletiva, instaura a infelicidade coletiva, instaura o mal-estar do grupo, a tristeza & o desânimo de todo & qualquer ser humano comum, de carne & osso & coração, assim como eu, assim como você, leitor.

tu, pessoa comum, de carne & osso & coração assim como eu, aceitas a chuva, a guerra, o desemprego & a injusta distribuição porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de manhattan, ilha onde se localiza wall street, rua da ilha célebre, onde se situa a bolsa de valores de nova iorque, a mais importante do mundo, por isso mesmo, ilha considerada o centro nervoso da economia mundial.

tu, pessoa comum, de carne & osso & coração assim como eu, trabalhas sem alegria para um mundo caduco, onde as formas & as ações não encerram nenhum exemplo: por isso, eu & tu, nós, temos que cavar, temos que batalhar, temos que alcançar, maneiras, modos, formas & ações que neutralizem todos os malefícios do mundo demente, insano, decrépito, para o nosso próprio bem, e porque a existência, até onde se sabe, é uma só, e é melhor que a façamos valer a pena, valer as dores & dissabores.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Antologia poética. autor: Carlos Drummond de Andrade. editora: Record.)

 

 

ELEGIA 1938

 

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

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(do site: Youtube. Caetano Veloso interpreta o poema Elegia 1938, de Carlos Drummond de Andrade.)

MAS NÃO É SÓ ISSO APENAS
3 de setembro de 2014

Poesia_Aperte Play

Cadernos_Paulo Sabino__________________________________________________________________

o poeta & a sua obstinada busca em realizar, a cada feito, o melhor poema:

a construção se faz pouco a pouco. o esqueleto estético (o esboço do que se pretende um poema) segue o seu trajeto de sol, segue o seu trajeto em busca de luminosidade, de claridade, para ter algum norte, para ganhar o seu rumo de ritmo & sentidos: cimento, tijolos sobre tijolos, e a obra — o poema — projeta-se em seu propósito, evitando a lógica, o óbvio. afinal, a poesia trabalha com o deslocamento da linguagem no seu mais alto grau de perplexidade. a poesia, trabalhando com o deslocamento da linguagem no seu mais alto grau de perplexidade, quer comunicar mas sem facilitar para o leitor. os jogos de linguagem criados nem sempre são palatáveis à gula do entendimento nosso à primeira vista. em muitos casos, o poema solicita diversas visitações, o poema reclama um número incontável de leituras, a fim de uma apreensão mais abrangente do que comunicam os versos.

metáfora por metáfora, metro ante metro (metro: além de unidade de medida de comprimento internacional, é também a medida que estabelece a quantidade de sílabas de cada verso, o que garante a forma rítmica de uma obra poética), o ritmo imprevisível dos versos dá-se, assim, por descoberto: eis, finalmente, o poema aprontado pelo poeta.

o prédio de sons & signos — no caso, a construção em versos: o poema — traspassa o indizível, o prédio de sons & signos atravessa o que não é dito, pois tudo que compõe o poema (seus jogos lingüísticos, o prédio de sons & signos) vingará depois que ele for dado à expectativa dos leitores & dos críticos (tudo que se tem a saber de um poema encontra-se apenas no poema, na sua arquitetura de versos & palavras & idéias criadas entre versos & palavras, que leitores & críticos se esforçam para entender, para desvendar, para revelar).

no processo em que se atiram leitores & críticos (o de entender, o de desvendar, o de revelar, a arquitetura de versos & palavras & idéias criadas entre versos & palavras), certo é pintar o edifício — o prédio de sons & signos — com as cores do raciocínio, certo é colorir o edifício — o prédio de sons & signos — com as cores da razão crítica, que é o que nos capacita à atividade de examinar & avaliar minuciosamente uma produção artística, literária ou científica.

a fachada do poema — a sua forma & conteúdo — aberta, a fachada do poema — a sua forma & conteúdo — à vista do que pode a prosa, a fachada do poema — a sua forma & conteúdo — à vista do que pode a arte de desvendar o poema (trabalho que realizo neste espaço): mas não é só isso apenas: a minha voz, a voz de paulo sabino, uma das tantas vozes que se empenham na arte de desvendar poemas, a voz de paulo sabino, que, segundo o poeta, mistério de haver mistério, voz que ao poeta parece misteriosa pelo que diz & cala, a voz de paulo sabino, vinda de anotações dos tantos cadernos de rabisco em que trama as linhas que dão forma aos textos de apresentação aqui dispostos, a voz de paulo sabino, que, ao poeta, é o esforço nítido para divulgar o cosmo imperecível, que vai de cicero a safo, de bandeira a baudelaire.

a voz de paulo sabino: o esforço nítido para divulgar o cosmo imperecível, que vai de cicero a safo, de bandeira a baudelaire: o cosmo imperecível: o universo criado pelas mãos sofisticadas da poesia, universo que nunca morrerá, uni/verso que resiste em versos, inabalável, universo que resiste às intempéries da vida moderna (apressada, superficial, desatenta).

(e, sem dúvida, sobretudo o verso é o que pode lançar mundos no mundo.)

segundo o poeta, a casa, construída por paulo sabino através das suas interpretações textuais acerca dos edifícios de sons & signos que são os poemas, se monta, a casa — construída por paulo sabino — se põe pronta, de pé, e nada parece faltar à peça.

para o poeta, à casa construída & montada por paulo sabino, paralela ao edifício de sons & signos que são os poemas, nada parece faltar, tudo cabe: o ethos (palavra grega que significa, entre outras coisas, o conjunto de valores característicos de um movimento cultural ou de uma obra de arte), o pathos (palavra grega que significa, entre outras coisas, paixão, sentimento excedido), o moto-contínuo (movimento de um mecanismo que, após iniciado, continuaria indefinidamente, gerando, através do gasto de energia, mais energia para o seu funcionamento): o ethos (os valores característicos do poema), o pathos (o sentimento profundo que o poema abarca), o moto-contínuo (o trabalho incessante, ininterrupto, de interpretação do poema): para o poeta, na casa construída & montada por paulo sabino, nada parece faltar; tudo cabe nas interpretações textuais de paulo sabino.

depois das verificações todas, a respeito do trabalho poético & do trabalho de interpretação de um poema, o olhar do poeta se dispersa.

a criação — o poema — se fez pouso, a criação se fez edifício de sons & signos (cujos ambientes procuro habitar, todos de uma vez), e, ao mesmo tempo, a criação — o poema — se fez ponte (construção lingüística que estabelece comunicação com o seu leitor).

o arcabouço estético (o esboço do que se pretende um poema), projetado pelo poeta, chega ao seu percurso de sonho para virar ode (notem a rima que o poeta cria nos dois últimos versos do poema), para virar poema lírico de versos de mesma medida, ode dedicada a paulo sabino, seu companheiro-amigo de jornada poética.

mas não é só isso apenas: o poema projetado pelo poeta é, de fato, uma ode, é, de fato, um poema lírico de versos de mesma medida: tratam-se de redondilhas maiores (os versos possuem todos 7 sílabas, a começar pelo título do poema).

sofisticação pura.

ao poeta, o meu mais sincero & feliz agradecimento por este “presente” poema!

beijo todos!
paulo sabino.
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(do site: Quefaçocomoquenãofaço. de: Adriano Nunes. autor: Adriano Nunes.)

 

 

MAS NÃO É SÓ ISSO APENAS

 

A construção se faz pouco
A pouco. O esqueleto estético
Segue o seu trajeto de
Sol para ter algum norte —

Cimento, tijolos sobre
Tijolos e logo a obra
Projeta-se em seu propósito,
E evita a lógica, o óbvio.

Metáfora por metáfora,
Metro ante metro, o ritmo
Imprevisível dos versos
Dá-se assim por descoberto.

O prédio de sons e signos
Traspassa o indizível, pois
Tudo vingará depois
Que for dado à expectativa

Dos leitores e dos críticos —
Certo é pintar o edifício
Co’as cores do raciocínio.
A fachada aberta à vista

Do que pode a prosa, a arte
De desvendar o poema —
Mas não é só isso apenas:
A voz de Paulo Sabino,

Mistério de haver mistério,
Anotações no caderno
De rabisco, o esforço nítido
Para divulgar o cosmo

Imperecível que vai
De Cicero a Safo, até
De Bandeira a Baudelaire.
Palavra sobre palavra,

A casa se monta e nada
Parece faltar à peça.
O ethos, o pathos, o moto-
Contínuo, e o olhar se dispersa.

A criação se fez pouso
E ponte. O arcabouço estético
Chega ao seu percurso de
Sonho para virar ode.

EUROPA & ÁFRICA: RELAÇÕES
21 de julho de 2014

Mapa_África & Europa

 

(Clique com o mouse no mapa para ampliar o seu tamanho.)
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esta publicação atira numa questão muito relevante, numa questão que tem a ver com o que se discute, hoje, sobre misturas de culturas & etnias.

como já comprovam alguns estudos, a troca entre a áfrica & a grécia antigas, troca cultural, comercial, ocorria de forma intensa desde tempos imemoriais.

tal relação de permuta entre essas culturas, certamente, criava, ajudava a criar, as identidades culturais de ambos os lados.

quando a europa — e o seu cientificismo do século XIX — se apropria de preceitos originários da antigüidade clássica, da grécia antiga, para a edificação de suas “sociedades civilizadas”, de suas sociedades “geneticamente superiores” às demais, a europa dos tempos modernos escamoteia, encobre, esconde, sistematicamente, toda a influência da cultura africana na cultura grega.

segundo o professor de história antiga do instituto de filosofia e ciências sociais (ifcs) da universidade federal do rio de janeiro (ufrj), andré chevitarese, um grande especialista em grécia antiga, a tradução mais fiel para as características de édipo, para o seu biotipo, célebre personagem da tragédia grega “édipo rei”, escrita pelo dramaturgo grego sófocles por volta de 427 a.C., é a de um homem “amorenado”, queimado pelo sol, com um tom de pele mais escuro, e não a do herói de “cútis alva como a neve”, como traduziram maliciosamente os europeus em suas versões para a peça original.

as trocas entre culturas, entre sociedades, por mais que alguns tentem negar, acontecem desde que o mundo é mundo.

inclusive, sabe-se já que, durante um período da história da humanidade, o norte da áfrica foi muito mais desenvolvido do que qualquer sociedade européia à época, concentrando cidades populosas, grandes obras públicas & feitos importantes nas áreas das ciências & das artes.

há claros indícios, em estudos sobre a américa pré-colombiana, de que os nossos índios, muitos localizados na região de minas gerais, mantinham trocas comerciais, culturais, e até científicas (sobre modos de preparo da terra, para o plantio, e também  sobre o cultivo do milho) com os índios que vinham do méxico(!). o intercâmbio que na américa ocorria, entre os residentes pré-colombianos, ia do leste ao oeste (do atlântico ao pacífico) & do norte ao sul.

o reggae maranhense é fruto das trocas culturais com o caribe, trocas que, segundo pesquisadores, existiam desde antes da chegada de colombo às terras americanas.

“cultura pura”, “cultura genuína”, “cultura de raiz”, são termos que não servem para muita coisa; na verdade, creio que não sirvam para nada. pois nada pode ser “genuinamente puro”, “intocado”, “virgem”, “de raiz”, feito, surgido, sob influência nenhuma. não existe um fundo próprio das coisas; na verdade, o fundo, sempre, é falso.

cultura que se deseja viva tem que viver a vida. e viver a vida significa estar inserido nela. o que se nega a trocar, a compartilhar, uma hora, é esquecido. e morre.

ser é visível, ser é estar à vista.

o que faz a vida é a troca. os brancos ensinaram, e ensinam, aos pretos tanto quanto os pretos ensinaram, e ensinam, aos brancos. em pé de igualdade.

isso só prova que o racismo se trata de uma grande burrice, isso só prova que o racismo se trata de uma grande estupidez.

misturar, mesclar, miscigenar: eis a única maneira de criar, eis a única maneira de gerar, eis a única maneira de inventar, coisas no mundo.

(próprio da beleza é o aparecer.)

beijo todos!
paulo sabino.
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(do: Dicionário da antiguidade africana. autor: Nei Lopes. editora: Civilização Brasileira.)

 

 

EUROPA E ÁFRICA: relações. À época da VI dinastia egípcia, por volta do século XX a.C., tempo em que, segundo Anta Diop, a Europa inteira não passava de um continente selvagem, em que Paris e Londres não eram mais que grandes extensões pantanosas, e Roma e Atenas dois lugares desertos, a África contava já, no vale do Nilo, com uma pujante civilização, onde pulsavam cidades populosas; onde o paciente esforço de várias gerações trabalhava o solo e erguia grandes obras públicas; onde as ciências e as artes alcançavam alturas insuspeitas, e onde, inclusive, a fé já havia criado deuses e deusas por muito tempo venerados (cf. Diop, 1979, vol. I, p. 231, nota I, a partir de J. Weulersse, 1934, p. 11). Nesse tempo, as rotas comerciais do vale do Nilo incluíam um ramo que começava no litoral egípcio, estendia-se para o oeste através do Mediterrâneo, e para o norte, ao longo do litoral da Europa ocidental, no mar Báltico, do qual os africanos extraíam âmbar. Segundo Don Luke, essa rota chegava às Ilhas Britânicas e à Escandinávia. Ver CÓLQUIDOS; ROTAS DE COMÉRCIO.

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(do livro: Céu em Cima / Mar Em baixo. autor: Alex Varella. editora: Topbooks.)

 

 

NEGRA GREGA

Negra negra

grega grega

de palavras & mercancias

no Porto das Palavras

de Alexandria

beleza é o ser visível

ser é visível

negra grega

da África Clássica

próprio da beleza é o aparecer

RASCUNHO DE VIDA: CAMINHO PARA O LIXO
11 de janeiro de 2012

 
(Morador de rua: pessoa de carne & osso, assim como eu, assim como você)
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fedendo a cigarro & a mim mesmo,
 
cheiro ruim exalado dos maus tempos em que vivemos,
 
cruzo uma avenida larga & áspera ao anoitecer:
 
sirenes, carros, vozes abafadas.
 
numa rua transversal, o cadáver de um cachorro atropelado.
 
tempos de correria, tempos de pressa, tempos de desimportância, tempos de atropelamento.
 
rodas metálicas passam em ritmo lento, fedendo a esgotos & a mim mesmo, que também exalo o esgoto, esgoto em que piso, esgoto sobre o qual montamos as nossas vidas repletas de desejos mesquinhos.
 
eu mesmo fedendo a esgotos, fedendo a um pouco de fogo do isqueiro, eu mesmo fedendo como aquela maçã podre, eu mesmo fedendo, exalando, a música estúpida destes tempos, a música burra das vontades superficiais, a cantilena dos sonhos descartáveis, música que vibra seus acordes dissonantes todas as vezes que saio da segurança da minha casa ou ao ligar a TV em determinados programas (coisa que não faço).
 
o lixo recolhido exala um cheiro nítido na calçada (cheiro de podridão, cheiro dos tempos que fedem à música estúpida), cheiro na calçada que também fede a sapatos, fede a ratos, ao suor (frio) dos neóns, a cadeiras, a notícias inúteis (sem importância no seu conteúdo) & a mim mesmo, caminhante a gravar seus passos nas calçadas & avenidas, caminhante fedendo seu cheiro sob a lua & junto a narinas (de outros caminhantes) entupidas de gás carbônico.
 
o som do motor do ônibus, com seu rugido rascante & sua contribuição de fumaça poluente, fedendo as mesmas camisas, velhas & surradas, e fedendo a mim mesmo, passageiro que sou das lotações que me transportam por ruas, ladeiras & avenidas, o som do motor do ônibus fedendo a esquinas por onde passa, esquinas que exalam cheiros que fedem a expectativas (tudo fede frente a fatos funestos) que, no entanto, acabam na próxima linha (seja da vida, seja do poema).
 
expectativas que acabam, postas fora, feito lixo.
 
lixo: aquilo que não se considera útil ou propício:
 
plásticos voando baixo, cacos de uma garrafa (pétalas cortantes sobre o asfalto).
 
balde na lixeira: lixo.
 
lixo: os sacos jogados na esquina, os sacos ao lado da cabine telefônica, restos de comida & cigarros no canteiro (feito para árvore), sem a árvore, lixo consentido por toda parte desta cidade que fede, lixo sob o viaduto que, agora, sob o viaduto, se confunde com mendigos.
 
mendigos: pessoas, seres humanos, gente de carne & osso, assim como eu, assim como você.
 
mendigos: pessoas moradoras de rua, marginalizadas, discriminadas & confundidas com lixo (por muitos) mesmo quando não sob o viaduto, mesmo quando às claras, à luz do dia.
 
os mendigos são odiados por muitos porque fedem as calçadas & porque, ainda que perceptivelmente humanos, ainda que perceptivelmente de carne & osso (assim como eu, assim como você), são confundidos com lixo.
 
num dia, um mendigo encontrado morto. morto a pauladas.
 
não há palavras que denomine a ação contínua de bater: pauladas.
 
não há palavras para pauladas.
 
quando a violência fala mais alto, toda & qualquer palavra se cala. a possibilidade de diálogo é encerrada.
 
pauladas: não há palavras.
 
não há palavras para dizer: morto a pauladas.
 
matar a pauladas um mendigo (uma pessoa, um ser humano, gente de carne & osso, assim como eu, assim como você) & seus utensílios, aniquilar a pauladas um mendigo & sua sacola, seu cobertor, sua calçada…
 
morto a pauladas.
 
àqueles que se locupletam com o caso, àqueles que se enchem de um prazer que beira o sadismo quando comentam o caso sem pistas, não compreendem que não há palavras para:
 
morto a pauladas.
 
ao falar a paulada, cala-se a palavra.
 
(pancadas não deixam espaço à troca de palavras.)
 
mendigo morto a pauladas na madrugada.
 
de manhã, poça de sangue, feridas na cabeça, e no rosto não há palavras: no rosto, as marcas dos golpes a porrete.
 
mendigo morto a pauladas: não tem conversa, não. afinal, pancadas não deixam espaço à troca de palavras.
 
mendigo morto a pauladas: não tem conversa, não. sem muito papo: a devida punição aos verdugos!
 
mais respeito à vida! menos valor à música estúpida destes tempos, menos valor aos desejos descartáveis, menos valor aos sonhos mesquinhos! mais valor à delicadeza! mais valor à cooperação mútua!
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Até agora: poemas reunidos. autor: Régis Bonvicino. editora: Imprensa Oficial.)
 
 
 
CAMINHO DE HAMSTER
 
 
Fedendo a cigarro e a mim mesmo
cruzo uma avenida
ao anoitecer
sirenes, carros
 
vozes abafadas
avenida larga e áspera
numa rua transversal
o cadáver de um cachorro
 
atropelado
rodas metálicas em ritmo lento
fedendo a esgotos e a mim mesmo
a um pouco de fogo, do isqueiro
 
fedendo como aquela maçã podre
fedendo a música estúpida
desses tempos
e a mim mesmo
 
o lixo recolhido exala
um cheiro nítido na calçada
fedendo a sapatos e a mim mesmo
a ratos, ao suor dos neóns
 
a cadeiras e a mim mesmo
a notícias inúteis e a mim mesmo
fedendo sob a lua
narinas entupidas de gás carbônico
 
o som do motor do ônibus
fedendo as mesmas camisas
fedendo a miopia e a mim mesmo
fedendo a esquinas
 
exalando cheiros
fedendo a expectativas
que no entanto acabam
na próxima linha
 
 
 
O LIXO
 
 
Plásticos voando baixo
cacos de uma garrafa
pétalas
sobre o asfalto
 
aquilo
que não mais
se considera útil
ou propício
 
há um balde
naquela lixeira
está nos sacos
jogados na esquina
 
caixas de madeira
está nos sacos
ao lado da cabine
telefônica
 
o lixo está contido
em outro saco
restos de comida e cigarros
no canteiro, sem a árvore,
 
lixo consentido
agora sob o viaduto
onde se confunde
com mendigos
 
 
 
RASCUNHO
 
 
Pauladas não há palavras
morto a pauladas não há palavras
para dizer morto
a pauladas
 
matar a pauladas
um mendigo e seus utensílios
sacola, cobertor e calçada
morto a pauladas
 
a lua em quarto minguante
verga
nuvens ásperas encarneiradas
enquanto isso aqueles que
 
se locupletam com o caso
sem pistas
não há palavras
morto a pauladas
 
a corda no pescoço?
de manhã —
poça de sangue —
feridas na cabeça
 
e no rosto
não há palavras
morto a pauladas
não tem conversa não

A ÁRVORE SECA
12 de abril de 2011

(trecho da contracapa do livro: A árvore seca. autor do texto da contracapa: Ivan Junqueira. editora: G. Ermakoff Casa Editorial.)

 

O trajeto percorrido até agora pela poesia de Alexei Bueno envolve uma estratégia que se desdobra em movimentos extremos, ou seja, os da contração e da distensão formais. Seus dois últimos livros, Em Sonho e Os Resistentes, atestam de modo cabal essa oscilação entre a medida e a desmedida rítmica. No presente volume, A Árvore Seca, Alexei Bueno volta à prática das formas fixas tradicionais, elaborando nos poemas que o integram uma cerrada urdidura métrico-rímica que, se de um lado se apóia na tradição, de outro nos brinda, graças à temática que neles se explora e ao insólito tratamento que lhes dá o poeta, com uma aguda lição de modernidade. Trata-se de um livro áspero, anfractuoso, denso e talvez desolado, uma vez que nos oferece, sem qualquer comiseração, uma imagem crua e quase brutal da realidade cotidiana.
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o lado escuro da vida. 

a face ressequida da existência.

em torno da árvore seca, satisfeitos, nos sentamos (os assassinatos, sejam estes metafóricos ou não, são cometidos mas sem deixar um só vestígio. ninguém os percebe).

tentamos alcançar algum fruto da árvore, porém, o que achamos: galhos em luto.

em torno da árvore seca, onde a coruja defeca, a coruja, ave que, segundo a superstição popular, é capaz de adivinhar a morte, onde a coruja defeca nós dançamos plenos, dançamos cumpridos, isto é, dançamos realizados, preenchidos.

tantos horrores, e foi entre os homens que os vi.

os horrores: servem de estofo dos pesadelos: assassinos, bolores & cancros existenciais.

é preciso criar a aurora.

é preciso criar a beleza, para além dos paredões escuros, para além das bestas, para além dos roncos das sestas, para além dos bares, para além dos rançosos lares.

é preciso criar a aurora. fazer raiar um novo dia.

é preciso adubar o solo da árvore, vê-la mudar sua estrutura seca, assistir-lhe a copa crescendo, os frutos nascendo, a sombra, fresca, abrigando.

(acredito que devemos lutar, lutar por mudanças, batalhar por melhorias, defender uma existência mais confortável, menos agressiva, para todas as pessoas.)

deixo alguns versos em meio aos perversos, já como contribuição.

beijo todos!
paulo sabino.

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(do livro: A árvore seca. autor: Alexei Bueno. editora: G. Ermakoff Casa Editorial.)

 

A ÁRVORE SECA

Em torno da árvore seca
Satisfeitos nos sentamos.
O sol, que cega e resseca
Varava os seus secos ramos.

Estendemos nossas mãos
Para alcançar-lhe algum fruto,
Mas rindo, entre os seus desvãos,
Só achamos galhos em luto.

Cantamos à sua volta
E ave alguma respondia
À nossa canção revolta,
À nossa poenta alegria.

De noite, sob os seus galhos,
Dormimos, mas folha alguma
Nos protegeu dos orvalhos
Que a frígida alva ressuma.

E assim, crestados, famintos,
Úmidos, sós, aqui estamos
Entre os seus braços extintos
E as leves viúvas dos ramos.

Em torno da árvore seca,
Com as folhas pardas vestidos,
Onde a coruja defeca,
Dançamos, plenos, cumpridos.

 

VISAGEM

O estofo dos pesadelos:
Pênis vivos com cem patas,
Felação entre baratas,
Um olho eivado de pêlos,

Um formigueiro fervente
(No meio a rainha, morta),
Um ovo dentro da aorta,
Bílis brotando de um dente,

Línguas nascendo de joelhos,
Róseos traidores gratuitos,
Ânus cantando fortuitos,
Cancros crescendo de espelhos,

Um assassino que ri
Dentro de um berço, uns bolores
Na língua. Ah, tantos horrores
Foi entre os homens que os vi.

 

I.M.L.

Na porta do boteco
Com flores de coroas
Que oferta às moças boas
Ele ergue o seu caneco

De alumínio gravado
Com o escudo do seu time,
E conta o último crime,
E olha o bordel fechado.

Sorrindo, no balcão,
Beberica e, prudente,
Fita a vaga onde, em frente,
Deixou o rabecão.

Então, se há um que lhe peça
Que lembre do seu carro,
Diz, dando um grosso escarro:
— Defunto não tem pressa.

 

FAIT DIVERS

Carlinhos, o segurança,
O terror da Mem de Sá,
Trocou tiros num mafuá
Com o Fuinha, em plena dança.

O Fuinha perdeu a perna.
Depois morreu, no hospital.
O membro encaixou bem mal
No corpo, o que até consterna.

Carlinos, pior que o Fuinha,
Pagou na hora o seu erro.
Três tiros. No seu enterro
Só foi a sua mãezinha.

 

GLÓRIA

Bêbado, às duas da manhã,
Parei na loja de ovos e aves.
Subi na grade e, em grande afã,
Cacarejei, de ecoar nas traves.

Os galos todos acordaram
Cheios de brio e, num só coro,
Com seu cacarejo enfrentaram
O meu, mais forte, mais sonoro.

Saltavam todas as galinhas.
Penas voavam loja afora.
Ligavam luzes nas vizinhas
Casas. Parti. Criara a aurora.

 

LAPA

Nesta casa antiga,
Sob estas volutas,
Como ri com as putas
Entre uma e outra briga.

Como virei copos
E extingui charutos,
Discuti com brutos,
Vaiei misantropos.

Urinei nas pias,
Vomitei nas portas,
Com passadas tortas
Vi nascer os dias.

Velha, velha casa,
Como ainda és a mesma.
(Não tens dentro a lesma
Que nos funda e abrasa.)

 

LÁZARO

Cobrimos o mendigo que dormia
Com jornais, os jornais do extinto dia.

De fora só ficaram os sapatos
Cambaios, já roídos pelos ratos.

Acendemos então, junto, uma vela
E arengamos na luz branca e amarela.

Um círculo de povo já envolvia
Nosso pranto, e o pinguço nem tremia.

Volveu por fim do reino dos defuntos.
Debandada! E ele riu. Ríamos juntos.

 

DISFARCE

Esta sombra antiga,
A beleza, diga,
Onde se acha e abriga,
Se o imaginares.

Não aqui, nos duros
Paredões escuros,
Entre arames, muros,
Vísceras, bazares.

Não junto das bestas,
Nos roncos das sestas,
Nos bares, nas festas,
Nos rançosos lares.

Mas só lá, nos portos,
Nos arbustos tortos
Entre o vento e os mortos,
No arquejar dos mares.

Lá onde não se fala,
Onde a terra exala,
E tudo se cala
Só para escutares

O que não se escuta,
Que se esquiva, e luta,
A voz absoluta
A atroar nos ares.

 

JUSTIFICATIVA

Não sei o que fiz na vida.
Não a gastei como os cães.
Cada instante é a despedida
Do rio irreal das manhãs.

Nada ganhei. Não venci.
Nunca o quis. Deixo alguns versos,
Prova do que fiz aqui,
Perplexo em meio aos perversos.

CONFISSÃO
24 de setembro de 2010

a vocês,
 
belíssima confissão poética, onde o meu (talentosíssimo) poeta das alagoas, adriano nunes, mostra que as diferenças podem & devem ser complementárias, inda mais se tratando de poesia.
 
uma coisa que não canso de proferir (digo & repito aos quatro ventos) é que:
 
belezas não nasceram para exclusão, nasceram para complementaridade
 
sinto que a poesia, os poetas e os leitores só têm a ganhar com as singularidades de cada voz poética.
 
percebo que me torno melhor sendo o eco de tantas vozes divergentes; acumulo saberes.
 
detesto enquadramentos. 
abomino rótulos.
não suporto classificações. 
 
sinto-me fora de tudo: fora de esquadro, fora de foco, fora do centro. o trabalho que desempenho não tem nome, não pede enquadramento, rótulo ou classificação.
 
por isso absorvo tantos vates, sem pré-conceitos. acima de tudo, o que busco é autenticidade. e a autenticidade, senhores, pode ser encontrada em qualquer livro-ambiente. basta o ser: autêntico. 
 
essa “libertinagem literária” (rs), que apoio inquestionavelmente, está presente nas linhas que seguem.
 
nos versos, o poeta revela ao leitor algumas importantes influências literárias suas, as mais díspares (e eu ADORO!):
 
engole ferreira gullar, dorme com carlos drummond, e, tamanha “libertinagem” (rs), é uma pessoa ligada em pessoa (no fernando) e, como o bardo português, repleto de pessoas na pessoa.
 
e continua poemafora:
 
andando a pé (o pé com a dor), pecador de ofício, segue dando bandeira ao lado do manuel. na visão, dois campos (o augusto e o haroldo). na razão, os mil anjos de rilke. às quintas, mário quintana & sua companhia.
 
(uma pausa para verificações: que sabe mais o poeta de si se tudo o que de si sabe está envolto em poesia?) 
 
prossegue, fazendo um divertido jogo poético com a gênese que resultou no que hoje denominamos “brasil”: citação ao descobridor do país, pedro álvares cabral, que, nos versos, acaba por ser descoberto (rs), ao responsável pelo primeiro texto literário de que se tem notícia em terras brasileiras, que é a carta de pero vaz de caminha (famoso escrivão da esquadra de pedro álvares cabral), na qual descreve o seu deslumbramento ante o mundo novo que se descortinava ao seu olhar, e citação ao padre antônio vieira, jesuíta que viveu no brasil no século 17, famoso por seus satíricos sermões contra determinadas práticas da sua época, sermões de suma relevância para a literatura barroca brasileira & portuguesa. 
 
de repente as linhas dão um salto para os modernos: e waly sailormoon?, onde está o navegante luarento? e adélia, será que junto ao seu: prado? e piva, o roberto, o poeta de paranóias da paulicéia desvairada, cadê?
 
são tantos os responsáveis pelo emaranhado de versos… a quem dedicá-los? a circe, a “feiticeira das odisséias”?, ou a cecília, a “poeta das canções”?   
 
ao final, a constatação de que ficam muitos (tantos & tantos & tantos outros) poetas apenas no pensamento e na intenção, à margem desta confissão, e a ressalva, confessando ao último mestre citado, o grande paulo leminski, que lamenta por todos os outros não citados.
 
toda homenagem é um tanto “desfalcada”, um tanto “incompleta”, deixa sempre algo de fora. porém, o fato de deixar, sempre, algo de fora não a torna menos bonita, delicada & inspiradora.  
 
deliciem-se com esta belíssima confissão, ventada das alagoas e devidamente pousada neste espaço!
 
beijo em todos!
um outro, especialíssimo, no meu querido poeta adriano nunes!   
 
o preto,
paulo sabino / paulinho. 
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(do blogue: QUEFAÇOCOMOQUENÃOFAÇO. de: Adriano Nunes.)
 
 
CONFISSÃO  (autor: Adriano Nunes)
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engulo gullar
durmo com drummond
sou uma pessoa
ando muito a pé
pecador de ofício
dou tanta bandeira
na visão, dois campos
na razão, mil anjos
às quintas, quintana
que sei mais de mim?
descubro cabral
conto pra caminha
confesso a vieira
onde está waly?
no ar? nos túneis? nada!
eu, nunca? nem ela,
minha piva, adélia.
pra circe ou cecília?
os outros, os outros…
lamento, leminski!

PÓS-MODERNIDADE
29 de julho de 2010

senhores,
 
o artigo a seguir, do meu querido amigo, e poeta, e letrista, e filósofo, e ensaísta, antonio cicero, foi publicado primeiramente na sua coluna da “ilustrada”, do jornal “folha de são paulo”, e, posteriormente, no seu blog, o “acontecimentos” (http://www.antoniocicero.blogspot.com/).
 
no referido artigo, cicero trata das pretensões do que é intitulado por alguns de “pós-modernidade”. e trata de pôr abaixo tais pretensões. 
 
o mais SENSACIONAL, o mais SURPREENDENTE, nas linhas do cicero, e isto aqui eu já lho disse, é que o autor nem precisou tocar nos “preceitos”, nas “idéias”, que guarda o que se intitula “pós-modernidade”. somente com o sentido próprio do termo “modernidade” antonio cicero “mata a pau” (rs). comecei a ler pensando num tipo de arcabouço para o texto e o cicero me apresentou um outro, tão sólido & resistente quanto o arcabouço por mim engendrado. 
 
aproveitem a prosa que segue! 
 
(serviço de utilidade pública – rs.)
 
beijo em vocês!
paulo sabino / paulinho.
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(do blogue: Acontecimentos. de: Antonio Cicero.)
 
 
AS ILUSÕES PÓS-MODERNISTAS
 
AS NOÇÕES de “pós-modernidade” e “pós-modernismo” entraram em voga há cerca de trinta anos, a partir da publicação de “La condition postmoderne”, do filósofo francês Jean-François Lyotard. Hoje, “pós-modernismo” designa apenas uma tendência eclética, maneirista e inteiramente datada. Já a noção de “pós-modernidade” — que significa uma pretensa superação da época moderna — não passou de uma ilusão, que a pós-pós-modernidade, isto é, a modernidade mesma, encarregou-se de desmentir.

De nada adianta substituir a expressão “pós-modernidade” por “contemporaneidade”, como faz o famoso crítico norte-americano Arthur Danto. O conceito de contemporaneidade simplesmente não é epocal e, se conseguisse sê-lo, não se distinguiria do de modernidade.

Antes da modernidade, eram quase sempre nomes próprios, de lugares, dinastias, monarcas ou fundadores de religiões que denominavam ou demarcavam as diferentes épocas. Na Roma republicana, por exemplo, demarcava-se o tempo tendo por referência a fundação (mítica ou real, pouco importa) de Roma. Os chineses e egípcios usavam os nomes das suas dinastias para diferenciar as épocas, inclusive aquelas em que viviam. Já os primeiros cristãos passaram a demarcar o tempo tendo por referência o nascimento (mítico ou real, pouco importa) de Cristo: para eles, sua época era a época cristã. Um francês do século 12 d.C., por exemplo, não supunha haver qualquer solução de continuidade entre a sua época e a do apóstolo Paulo.

A partir principalmente dos séculos 14 e 15 d.C., porém, a Europa começou a passar por uma espécie de desprovincianização. Com as descobertas geográficas, “viu-se a terra inteira de repente / surgir redonda do azul profundo”, como diz o Fernando Pessoa de “Mensagem”. Isso relativizou a Europa, do ponto de vista espacial. Do ponto de vista temporal, ela foi relativizada pela valorização, graças aos humanistas, da cultura clássica e pagã.

Contra seus contemporâneos escolásticos, os humanistas ambicionaram emular o modo de pensar e escrever, assim como o gosto dos antigos. Entre estes e aqueles, porém, se interpunha um período extenso, que tivera início na invasão e na destruição do Império Romano pelos bárbaros. A essa longa intermissão, que passaram a desprezar como um período de barbárie entre a morte da civilização antiga e seu moderno renascimento, por eles promovido, chamaram de “medium aevum”, de onde “medioevo”, isto é, “Idade Média”. Entre os séculos 16 e 18, estabeleceu-se o esquema tríplice de periodização que persiste até hoje. Tem-se a Antiguidade, a Idade Média e a Modernidade.

Ora, “moderno”, etimologicamente, quer dizer referente a agora ou, se quisermos, “agoral”. Modernidade, portanto, é a “agoralidade”. Isso significa que, pela primeira vez, a palavra com a qual se denomina uma época é um conceito universal. Há nisso um paradoxo. Sendo um universal, “moderno” não se reduz a coisa alguma que possa particularizar a época assim autodenominada. Em princípio, qualquer época poderia ter-se chamado “moderna” ou “agoral”. Entretanto, justamente o fato de que, apesar disso, nenhuma outra o tenha feito, constitui, para a época que o faz, uma diferença mais radical do que qualquer outra concebível.

Trata-se de um sintoma da extraordinária cisão experimentada pelos homens da Renascença. É que eles se haviam tornado capazes de criticar, isto é, tanto de se distanciar da própria cultura em que viviam, quanto de questioná-la. Montaigne, por exemplo, reconhecia ser cristão por acaso. “Somos cristãos”, dizia ele, “ao mesmo título que somos perigordinos ou alemães”.

Descartes, leitor de Montaigne, sabia que “um mesmo homem, com seu mesmo espírito, sendo nutrido desde a infância entre franceses ou alemães, torna-se diferente do que seria se tivesse sempre vivido entre chineses ou canibais”. Evidentemente, não foi de dentro da cultura cristã e francesa que Montaigne e Descartes a relativizaram desse modo, mas a partir da razão, que foi capaz de dela se separar e de criticá-la.

Sendo a modernidade a época em que a razão já reconheceu o caráter contingente das culturas, de modo que não se identifica com nenhuma, segue-se que qualquer “superação” dessa época não poderia deixar de ser uma regressão ao estado em que essa verdade ainda fosse ignorada.