SOMOS TROPICÁLIA — 50 ANOS DO MOVIMENTO — 4º CICLO: LETÍCIA NOVAES, ARTHUR BRAGANTI E LUIS TURIBA — JÓIA (CAETANO VELOSO)
24 de maio de 2017

(Letícia Novaes — Foto: Ana Alexandrino)

(Arthur Braganti — Foto: Ana Alexandrino)

(Luis Turiba — Foto: Ana Alexandrino)

(Os participantes + Caetano Veloso, Guilherme Araújo e Gal Costa — Foto: Ana Alexandrino)

(Nota na coluna “Gente Boa”, do caderno cultural do jornal O Globo)
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*** Para comemorar os 50 anos da Tropicália o Gabinete de Leitura Guilherme Araújo apresentará uma série de encontros poético-musicais ao longo de 2017 ***

*** www.facebook.com/somostropicalia/ ***

Nos dias 31 de maio e 01 de junho (quarta e quinta-feira), a partir das 19h30, acontece a quarta etapa do ciclo de encontros “Somos Tropicália – 50 anos do movimento”, no Gabinete de Leitura Guilherme Araújo, em homenagem aos 50 anos da Tropicália: as surpreendentes e eletrificadas apresentações de Caetano Veloso e Gilberto Gil no Festival da TV Record em 1967 são consideradas o marco inicial do movimento na música, que se consolidou com a gravação de “Tropicália Ou Panis Et Circenses”, álbum-manifesto lançado no ano seguinte.

Nesta edição de maio o projeto tem como participantes a cantora, compositora e atriz Letícia Novaes, o músico e compositor Arthur Braganti, o poeta e jornalista Luis Turiba. A noite também conta com a participação especial de Natália Carrera, guitarrista e produtora musical do novo álbum de Letícia, “Letrux Em Noite de Climão”, que será lançado em breve.

Para esta celebração poético-musical inédita os artistas foram convidados a montar um roteiro com sabor tropicalista no qual misturam textos, canções e referências de diferentes épocas e estilos e no qual entrarão sucessos de Caetano, Mutantes, Carmem Miranda, Torquato Neto e Edu Lobo e até Berlin (aquela do Take My Breath Awaaaay, hit do New Wave nos anos 80). Sem deixarem, é claro, de incluir músicas e poesias autorais que se inspiram ou conversem com as influências do movimento, como o samba “Mistura Tropicalista”, enredo que o Turiba compôs para o carnaval do bloco Mistura de Santa.

Letícia e Arthur são destaques da cena da música independente. Até pouco tempo atrás Letícia foi líder da recém extinta banda “Letuce”, um dos principais grupos deste cenário na última década, e do qual Arthur também foi integrante nos últimos anos. Multiartista reconhecida e de personalidade marcante, Letícia sempre demonstrou ter espírito tropicalista, conferindo uma assinatura própria aos resultados. “Minha carreira sempre foi uma miscelânea curiosa entre literatura, teatro e música. Sempre brinquei com as coisas mais tradicionais e ‘clássicas’ brasileiras, como o próprio pagode, que fiz versões dentro da ‘nova mpb’. Sempre me utilizei de referências cinematográficas ou teatrais, mesmo para fazer um show musical. E além disso, nunca tive nenhum temor às referências ‘gringas’, pelo contrário, abraço tudo que me emociona, seja na língua mãe ou numa língua amiga”, se diverte a artista.

E Turiba, que possui cinco livros de poesia publicados, entre eles o mais recente, “QTais”, é ganhador de dois prêmios “Esso de jornalismo”, e é um importante nome da literatura e do jornalismo brasileiros. Entusiasta e freqüentador de saraus poéticos, suas atuações em leituras de poesias são sempre potentes e cativantes, transmitindo a alegria e a animação que lhe são características. Seu bloco de carnaval no Rio de Janeiro, o “Mistura de Santa”, desfilou em 2016 com o enredo “Mistura Tropicalista”, um samba de sua autoria que ele apresentará ao público do projeto. Além disso, ele também é idealizador do Café Tropicália na 33ª Feira de Livro de Brasília, em 2017. “O Tropicalismo foi o mais importante movimento cultural da última metade do século passado. Combateu a ditadura esteticamente e revolucionou a linguagem poética brasileira com Torquato Neto à frente, como letrista de Gil, Caetano, Edu Lobo. Foi um movimento que misturou tudo: passado, presente, cinema, teatro, poesia e artes plásticas. Foi reprimidíssimo, durou pouco, mas seus ecos podem ser ouvidos até hoje”, explica Turiba.

Em junho o projeto, que tem entrada franca e se realiza sem qualquer tipo de apoio ou patrocínio, receberá a cantora Zabelê e o cantor, compositor e poeta Moraes Moreira.

Venham todos!

 

Serviço:

Gabinete de Leitura Guilherme Araújo apresenta –

SOMOS TROPICÁLIA – 50 anos do movimento

Letícia Novaes, Arthur Braganti e Luis Turiba – part.: Natália Carrera / Pocket-show e leitura de poesias
Dias 31/05 (4ª-feira) e 01/06 (5ª-feira)
A partir das 19h30
Rua Redentor, 157 Ipanema
Tel infos. 21-2523-1553
Entrada franca c/ contribuição voluntária
Lotação: 60 lugares
Classificação: livre

Link do evento no Facebook: http://www.facebook.com/events/1948758825346169/
Página do projeto no Facebook: http://www.facebook.com/somostropicalia/

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(do livro: Sobre as letras. organização e notas: Eucanaã Ferraz. comentários: Caetano Veloso.)

 

JÓIA

Deu título ao disco. É um negócio pequeno mas bonito. Fala de uma menina específica, Claudinha O’Reilegh. A gente ia ver o sol nascer em Copacabana todo dia de manhã, antes de dormir, e ela tomava coca-cola.
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jóia: objeto de material valioso trabalhado com esmero, com todo o cuidado e atenção; pessoa ou coisa muito querida ou boa; algo bacana, bonito, excelente.

uma jóia da vida: uma cena da vida: beira de maré na américa do sul. um selvagem (diz-se daquele que vive nas selvas, afastado dos aglomerados urbanos) levanta o braço, abre a mão e tira um caju para seu deleite: um momento, uma cena da vida, de grande amor: uma jóia existencial. o prazer de viver um momento de grande amor: deliciar-se com um caju colhido ao pé da árvore, ao alcance da mão.

uma jóia da vida: uma cena da vida: copacabana — palavra indígena, o nome de um bairro movimentadíssimo, além de muito extenso, na cidade do rio de janeiro; copacabana, a princesinha do mar: louca total, completamente louca, princesinha agitada, tumultuada, o avesso do que se imagina nas selvas, lugares de palavra indígena. em copacabana, ao nascer do sol, de frente pro mar (beira de maré na américa do sul), a menina, muito contente, feliz, satisfeita, toca a coca-cola na boca: um momento, uma cena da vida, de puro amor: uma jóia existencial. o prazer de viver um momento de puro amor: deliciar-se com uma coca-cola enquanto assiste ao nascer do sol.

uma jóia da vida: uma cena da vida: seja na selva, seja na cidade; seja um selvagem (diz-se daquele que vive nas selvas, afastado dos aglomerados urbanos), seja a menina de um grande centro urbano; seja um caju, fruto da natureza, seja uma coca-cola, fruto da indústria: vivenciar momentos, cenas, de grande e puro amor: eis a grande jóia da vida.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Letra só. seleção e organização: Eucanaã Ferraz. autor: Caetano Veloso. editora: Companhia das Letras.)

 

 

JÓIA

 

Beira de mar
Beira de mar
Beira de maré na América do Sul
Um selvagem levanta o braço
Abre a mão e tira um caju
Um momento de grande amor
De grande amor

Copacabana
Copacabana
Louca total e completamente louca
A menina muito contente
Toca a coca-cola na boca
Um momento de puro amor
De puro amor
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(do site: Youtube. áudio extraído do álbum: Jóia. artista e intérprete: Caetano Veloso. canção: Jóia. autor: Caetano Veloso. gravadora: PolyGram.)

SOMOS TROPICÁLIA — 50 ANOS DO MOVIMENTO — 3º CICLO: JULIANA LINHARES, MIHAY, HELIO MOULIN E SALGADO MARANHÃO — MÃE DA MANHÃ (GILBERTO GIL)
18 de abril de 2017

(Os participantes desta 3ª etapa do projeto: em pé, Juliana Linhares e Salgado Maranhão; sentados, Helio Moulin e Miray junto ao Guilherme Araújo e à Gal Costa — Foto: Rafael Millon)
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“Bravo, Paulo Sabino. Aqueceram-me o coração sua desenvoltura e alta voltagem poética. Grato. Abs. RCAlbin”.

(Ricardo Cravo Albin — musicólogo & membro da Academia Carioca de Letras — ACL)

 

“Que massa que o Helinho vai tocar contigo [Mihay]! Adorei.”

(Tulipa Ruiz — cantora e compositora)

 

 

Alô Alô! Alegria Alegria!

Aqui para anunciar os participantes da 3ª etapa de encontros do projeto “Somos Tropicália”, em homenagem aos 50 anos do movimento que chacoalhou a música popular brasileira. O projeto vem reunindo, desde fevereiro, mensalmente, artistas da nova geração da nossa música, para a releitura das canções tropicalistas, com poetas consagrados, para a leitura de textos/poemas de bossa tropicalista.

Para esta edição de abril, o imenso prazer de receber só feras: a atriz e cantora Juliana Linhares (cantora e integrante da banda “Pietá” e do projeto “Iara Ira”, ao lado das cantoras Júlia Vargas e Duda Brack), o cantor, compositor e videomaker Mihay (o Mihay já cantou com o Chico César, excursionou com o João Donato, e tem, no seu segundo disco, participação da Tulipa Ruiz, Mariana Aydar, do Robertinho Silva, Kassin, e do próprio João Donato, entre outros), o instrumentista-violonista Helio Moulin (o Hélio é filho do monstro violonista e guitarrista da música popular brasileira e do jazz Helio Delmiro, que tocou com Elis Regina, Clara Nunes, Milton Nascimento, a diva da música norte-americana Sarah Vaughan, entre outros), e o poeta vencedor do prêmio Jabuti de poesia (o mais importante prêmio literário, pelo seu belíssimo livro “Ópera de nãos”) Salgado Maranhão.

Tudo divino-maravilhoso! Certeza de mais noites lindas para a música e para a poesia! E toda essa maravilhosidade “di grátis”!

Depois deste texto sobre o “Somos Tropicália”, um poema-canção que não é tropicalista porém foi composto por um mestre tropicalista e cantado pela musa tropicalista — Gilberto Gil e Gal Costa. Isso porque a Juliana Linhares, que é a grande cantora e intérprete que terei o prazer e a honra de receber no projeto, no espetáculo “Iara Ira”, canta com a Julia Vargas e a Duda Brack o poema-canção da publicação, poema-canção que é o meu preferido do álbum em que foi lançado, “O sorriso do gato de Alice”, da Gal. A Juliana, a Julia e a Duda abrem o “Iara Ira” com este poema-canção.

Sobre o “Somos Tropicália”: espalhem a notícia! Compartilhem a boa nova!

Esperamos todas e todos!

 

Serviço:

Gabinete de Leitura Guilherme Araújo apresenta –

SOMOS TROPICÁLIA – 50 anos do movimento

Juliana Linhares, Mihay, Helio Moulin e Salgado Maranhão / Pocket-show e leitura de poesias
Dias 26/04 (4ª-feira) e 27/04 (5ª-feira)
A partir das 19h30
Rua Redentor, 157 Ipanema
Tel infos. 21-2523-1553
Entrada franca c/ contribuição voluntária
Lotação: 60 lugares
Classificação: livre

Link do evento no Facebook: http://www.facebook.com/events/1881892262099199/
Página do projeto no Facebook: http://www.facebook.com/somostropicalia/
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(Extraído do livro “Gil — todas as letras”, organizado por Carlos Rennó, editora Companhia das Letras.)

 

para Gal Costa & Juliana Linhares

 

 

gilberto gil fez este poema-canção para gal costa, que foi dedicado à mãe da cantora, mariah costa penna, amiga do poeta-compositor & que havia morrido há pouco tempo.

a perda de uma pessoa que muito se ama, a que mais se ama, a grande amiga, aquela que sentimos ser a única pessoa a fazer absolutamente tudo & qualquer coisa para o bem-estar da cria, dos filhos: uma dor profunda, uma tristeza abissal, o recolhimento, o luto, a escuridão.

meu canto em momentos de escuridão é o meu grande amparo. minha voz é meu amparo em momentos difíceis.

minha voz, que é um aro de luz da manhã, que é um aro de luz que nasce do dia, voz solar, iluminada, voz brilhante, num momento de dor, de perda de alguém tão caro, a minha voz brota na gruta da dor.

mãe da manhã, mãe do raiar do dia, mãe da luz nascente do dia, mãe maria, mãe de todos nós, eu faria de tudo pra conservar vosso amor.

uma espécie de súplica, de pedido, à mãe da manhã, à mãe do raiar do dia, à mãe da luz nascente do dia, à mãe maria, à mãe de todos nós: pra conservar vosso amor, mãe da manhã, eu faria de tudo — a cada ano, eu faria uma romaria, eu faria uma oferenda, eu faria uma prenda, eu daria a vós uma flor. faria uma romaria, uma oferenda, uma prenda, daria uma flor — tudo para conservar o amor da mãe da manhã.

assim, na minha existência, a cada instante, teria direito a um grão, a um momento, a um pedaço, de alegria — e todos os grãos de alegria, por conservar o amor da mãe da manhã, seriam lembranças do vosso amor, lembranças do amor que a mãe da manhã me dedica.

santa virgem maria — mãe maria, mãe de todos nós —, vós que sois mãe do filho daquele que nos permite o nascer do dia, vós que sois mãe do filho daquele que nos possibilita a vida, daquele que nos determina a morte, santa virgem maria, mãe da manhã, mãe da luz, mãe solar: abençoai minha voz, meu cantar.

na escuridão da nostalgia causada pela perda de alguém que muito se ama, pela perda de alguém que nos é tão importante, tão caro, dai-nos a luz do luar.

na noite, na escuridão, na dor, na perda, no momento difícil: luz, sempre. seja qual for: solar ou lunar: luz, quero luz.

mãe da manhã, que assim seja.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Gil — Todas as letras. organização: Carlos Rennó. autor: Gilberto Gil. editora: Companhia das Letras.)

MÃE DA MANHÃ

Meu canto na escuridão
Minha voz, meu amparo
Aro de luz nascente do dia
Brota na gruta da dor
Mãe da manhã, de tudo eu faria
Pra conservar vosso amor

A cada ano, uma romaria
Uma oferenda, uma prenda, uma flor
A cada instante, um grão de alegria
Lembranças do vosso amor

Santa Virgem Maria
Vós que sois Mãe do Filho do Pai do Nascer do Dia

Abençoai minha voz, meu cantar
Na escuridão dessa nostalgia
Dai-nos a luz do luar.

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(do site: Youtube. áudio extraído do álbum: O sorriso do gato de Alice. gravadora: BMG Ariola. artista e intérprete: Gal Costa. canção: Mãe da manhã. autor: Gilberto Gil.)

A ARTE DOS VERSOS
21 de julho de 2015

Plantação de couve

(Plantação de couves.)
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Um convite aos navegantes: nesta quinta-feira, 23 de julho, a 5ª edição do Sarau do Largo das Neves, em Santa Teresa, Rio de Janeiro. Na frente do bar Alquimia. As leituras & declamações começam às 20h30, mas a concentração, para uns drinques & um bate-papo animado, a partir das 19h. Aguardando todos!
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Para Antonio Cicero, que me fez lembrar o poema

 

 

toda a ciência, todo o conhecimento atento & aprofundado de algo, está aqui, na maneira como esta mulher, dos arredores de cantão, na china, ou dos campos de alpedrinha, em portugal, rega quatro ou cinco leiras, rega quatro ou cinco canteiros, de couves: mão certeira com a água, intimidade com a terra, empenho do coração.

assim se faz a planta bonita & viçosa: toda a ciência, todo o conhecimento atento & aprofundado de algo, está aqui: mão certeira com a água, intimidade com a terra, empenho do coração.

assim se faz o poema: toda a ciência, todo o conhecimento atento & aprofundado de algo, está aqui: mão certeira com a água & intimidade com a terra, mão certeira & intimidade com os nutrientes do poema, com aquilo que o alimenta (a palavra, o vocabulário, as formas poéticas, as brincadeiras lingüísticas), e empenho do coração (a dedicação à causa, o cuidado, o carinho, a atenção, com os versos).

assim se faz a planta bonita & viçosa, assim se faz o poema: mão certeira & intimidade com os nutrientes, com aquilo que os alimenta, e empenho do coração — a dedicação à causa, o cuidado, o carinho, a atenção.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Poemas de Eugénio de Andrade. seleção: Arnaldo Saraiva. autor: Eugénio de Andrade. editora: Nova Fronteira.)

 

 

A ARTE DOS VERSOS

 

Toda a ciência está aqui,
na maneira como esta mulher
dos arredores de Cantão,
ou dos campos de Alpedrinha,
rega quatro ou cinco leiras
de couves: mão certeira
com a água,
intimidade com a terra,
empenho do coração.
Assim se faz o poema.

DO DESEJO
24 de março de 2015

Flor de mandacaru

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porque há desejo, porque há arbítrio, porque há querer, porque há vontade, porque há apetite, na poeta, é tudo cintilância, é tudo resplandecência, é tudo luz viva, é tudo clarão.

um dia, a poeta despertou.

antes, o cotidiano da poeta era um pensar alturas, o cotidiano da poeta, antes, era o pensamento na esfera celeste, buscando “aquele outro” decantado, procurando “aquele outro” enaltecido, elogiado, puro, o cotidiano da poeta era, antes, catando “aquele outro” surdo à sua humana ladradura, “aquele outro” mouco ao seu latido humano.

“aquele outro” decantado, enaltecido, elogiado, puro, “aquele outro” que, antes, a poeta buscava: deus, criador das criaturas, arquiteto do universo, senhor nas alturas.

um dia, a poeta despertou.

hoje, o amor da poeta, de carne & osso, de visgo & suor, amor terreno, amor de amante, laborioso, lascivo, toma o seu corpo.

um dia, a poeta despertou.

a poeta, antes, sonhava penhascos, sonhava escalar alturas (buscando “aquele outro” decantado), quando havia o jardim, florido, aqui ao lado, ao alcance dos seus pés. a poeta, antes, pensou subidas onde não havia rastros — afinal, por qual caminho, por qual penhasco, subir aos céus a fim de encontrar “aquele outro” decantado? que rastro levaria a poeta ao encontro daquele que é surdo à sua humana ladradura?

um dia, a poeta despertou.

hoje, extasiada do seu amor, a poeta fode com ele — visgo & suor, que nunca se faziam, hoje se fazem — ao invés de ganir diante do nada, ao invés de grunhir diante daquele que, supostamente, se encontra apenas nas alturas, por sobre subidas & penhascos, surdo à sua humana ladradura, deus mouco ao seu latido humano.

um dia, a poeta despertou.

hoje, dedica-se ao seu amor, terreno, amor de amante, de carne & osso, de visgo & suor: colada à boca do amado, a desordem da poeta, que é o seu vasto querer, querer que, de tão vasto, de tão amplo, de tão ancho, abriga a desordem, a indisciplina, a confusão, a incoerência, a alucinação, a loucura.

por causa do amado, por causa do amor que ama, o incompossível, o incompatível, o inconciliável (a desordem da poeta), se fazendo ordem.

colada à boca do amado está a poeta, mas descomedida, árdua, sôfrega (com o seu vasto querer, o seu amplo desejo), como se o amado fosse morrer colado à sua boca, querer afoito, desesperado, desembestado. como se, morrendo, o amado fizesse nascer a poeta de dentro de si. como se o amado fosse o dia magnânimo, o dia claro, o dia luminoso, o dia límpido, e a poeta, ao nascer, sorvesse extremada a luz do amante à luz do amanhecer, na luz que amanhece um novo dia.

colada à boca do amado está a poeta, e descomedida, árdua, sôfrega (com o seu vasto querer, o seu amplo desejo), examina o amado, construtor de ilusões: pois o amor do amado, tão intenso, tão imenso, deixa a impressão de que será eterno, quando, em verdade, como tudo na vida, um dia acabará, um dia morrerá, um dia extinguirá, queiram ou não queiram os amantes.

assim como o dia, o amado: um construtor de ilusões.

um dia, a poeta despertou.

esqueceu “aquele outro” decantado, enaltecido, elogiado, puro, aquele que não lhe dava ouvidos, e, hoje, dedica-se ao seu amor terreno, amor de amante, de carne & osso, de visgo & suor: colada à boca do amado, que é o dia magnânimo de onde nasce, de onde floresce, de onde desperta, a poeta está.

(a poeta fez do amor a sua casa, a sua morada.)

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Do desejo. autora: Hilda Hilst. editora: Globo.)

 

 

I

 

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado.
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.

 

 

III

 

Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosse nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.

A ORIGEM DA POESIA
25 de fevereiro de 2015

Michelangelo_A criação de Adão

(Na foto, o afresco “A criação de Adão”, do pintor, escultor, arquiteto, o grande gênio italiano Michelangelo Buonarotti.)
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a experiência poética, para mim, é uma experiência existencial.

lendo poesia, interpretando os jogos semânticos criados nos, e entre os, versos, reinvento o homem que sou, e, reinventando-me, promulgo a minha constante atualização como homem, ao me perceber humano & mortal a cada ato, ao me perceber ser pensante & atuante na vida; é disso que vem a poesia.

pelo tanto que a poesia comporta, por tudo que a poesia pode, porque a poesia reinventa o homem em sua trajetória, a origem da poesia em nada difere da origem do homem, uma vez que, sem poesia, não há sequer a possibilidade do humano.

pois que a possibilidade do humano pulsa dentro da prática poética: não sabemos vivenciar o mundo sem poetizá-lo, sem mitificá-lo, sem criar metáforas & saberes fantásticos atribuídos a ele; não damos conta de tanto & criamos a poesia, os mitos & as lendas, que acabam por recriar o mundo.

a ciência define a lua, por exemplo, como um “satélite”. mas a definição “satélite” pouco dá conta das possibilidades & dimensões reais dessa imagem tão suave & concreta. antes, a definição “satélite” detém-se em uma de suas possíveis & talvez a mais pobre faceta, lacrando-a em uma caixa semântica sem comunicação externa. como “satélite”, a lua esquece de suas dimensões sonhadas & não sonhadas. pois, para além de resumir-se a um “corpo celeste que gravita em torno de outro”, a lua é, também, a lua-fruta do poeta chinês (antes de cristo) qu yuan, que pende madura na ponta de um galho, a lua das crendices populares, inusitadamente relacionada a são jorge, meu santo protetor, a deusa-lua selene (na mitologia grega, selene é a personificação da lua), a lua que influi misteriosamente na menstruação das mulheres, a lua que influi, com o seu magnetismo, nos fluxos das marés, a lua que transforma homens em lobos — todas diferentes luas, mas, ainda assim, a mesma lua.

em última instância: a experiência humana é experiência poética, é o modo que temos, que descobrimos, que inventamos, de viver, de experimentar, o mundo que nos cerca.

a poesia é uma condição — e condenação — do homem.

reinventando-me, a poesia me reafirma homem, mortal/ transitório/ inacabado, me reafirma ser pensante & pulsante entre as coisas.

sobretudo o verso é o que pode lançar mundos no mundo.

salve a poesia!
salve a sua existência nas nossas!

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Ensaios radioativos. autor: Márcio-André. editora: Confraria do Vento.)

 

 

A ORIGEM DA POESIA

 

Debater a origem da poesia em nada difere do se debruçar sobre a origem do homem, uma vez que sem poesia não há sequer a possibilidade do humano. Claro que essa afirmação vai contra tudo o que estamos acostumados a ouvir e entender por poesia e por origem, e só pode ser minimamente aceita se questionarmos antes duas posturas que estão no cerne de nossa maneira de pensar: 1) a compreensão evolutiva do espaço, do tempo e da história, 2) a noção, insistentemente fundamentada pela funcionalidade da máquina moderna, de que a arte é uma forma de entretenimento, um meio de expressão ou válvula de escape, fantasia sem importância, presente unicamente para embelezar o mundo.

Essa tradicional visão da instrumentalidade da poesia, da linguagem e da história, nos limita a entrever o mundo como uma série de processos estanques; perspectiva segundo a qual a arte nada teria a ver com a realidade, distante da história, da física, da biologia, da economia e da política — coisas “sérias”. Entretanto, se prestamos um pouco mais de atenção, seremos capazes de vislumbrar uma verdade simples e óbvia, a de que todas as coisas do homem surgem a partir de uma mesma perspectiva, que é o agir do homem enquanto agir-se. Na Grécia antiga, havia um nome para isso: poiesis, princípio pelo qual se dava o ato criador. Não um ato criador qualquer, como entendemos hoje. Naquela época, em que os deuses eram muitos, presentes e irritados, essa criação envolvia, por si só, a condição e a condenação desse homem que, ao criar, criava-se a si mesmo. O que acontece hoje, porém, é que, distante dessa noção remota, a instrumentalidade da linguagem acarreta a instrumentalização do corpo, e o homem perde parte do que é primordial e verdadeiro em sua produção, restando-lhe apenas o sentido da contínua repetição característica dos sistemas.

Certamente, como tradução moderna dessa poiesis clássica, ou de toda potência geradora na camada subcutânea dos ritos de todos os povos, a poesia é, ainda, dentre todas as coisas que o homem produz hoje, a mais grave. Isso porque não é o homem quem cria a poesia, mas a poesia que o cria. Mais: a poesia é a própria ação criadora em si, na qual se atesta o homem ao criar e as coisas ao serem criadas. Vico dizia que no interior da poesia estava a origem das línguas. Não podemos, então, nos referir a ela como uma coisa qualquer entre outras coisas, nem como um artifício retórico que se vale da linguagem como matéria-prima. Pelo contrário, a própria poesia começa por tornar a linguagem possível, agora e sempre. A poesia é a linguagem primogênita de um povo — afirma Heidegger. A poesia é o primeiro e o mais fundamental testemunho do homem, atestação de sua presença e de seu pertencimento à Terra. É através da poesia que ele se desvenda como linguagem e, então, propriamente, homem.

Basta lembrar que os primeiros físicos do Ocidente não perdiam de vista o poético em suas realizações. Seria até mesmo uma traição classificá-los por arquétipos profissionais, quando não havia de fato qualquer separação entre ser poeta, físico, filósofo, matemático — todas essas dimensões se articulavam em apenas uma mesma: a do sagrado. Estes eram homens espantados diante da complexidade da physis que se erguia com seus grandes milagres de tempestades e números. O mesmo espanto que milhares de anos depois surpreende o cientista de hoje diante da imprevisibilidade das partículas e da grandiosidade do cosmos. O sol é do tamanho de um pé humano, disse Heráclito, numa afirmação que, antes de tentar ser uma reflexão “lógica”, é poética e só pode ser poética por estar na regência do sagrado. Não é uma assertiva ingênua, como poderiam sugerir alguns. Heráclito sabia do distanciamento do sol, mas sabia também que o sol, como ainda hoje, encerrava uma medida celeste para a terrenidade do homem. Esse sol adquiria uma dimensão poeticamente moldável como o horizonte de Manuel de Barros, onde se enfiam pregos, ou a florflamejante de Sousândrade. É o espaço onde as coisas são e deixam de ser.

A nós, homens da modernidade, depois do cogito cartesiano, depois da metafísica kantiana, depois do existencialismo de Sartre, depois que o homem expulsou os deuses de seu convívio e se tornou seu próprio deus e oráculo através da metafísica dos sistemas, isso tudo parece distante e absurdo. Resistimos em aceitar o conhecimento científico como uma especulação do mundo tão “fantástica” quanto qualquer outra. A ciência define a lua, por exemplo, como um satélite. Mas a definição “satélite” pouco dá conta das possibilidades e dimensões reais dessa imagem tão suave e concreta. Antes detém-se em uma de suas possíveis e talvez sua mais pobre faceta, lacrando-a em uma caixa semântica sem comunicação externa. Como satélite, a lua esquece de suas dimensões sonhadas e não sonhadas. Pois para além de resumir-se a um “corpo celeste que gravita em torno de outro”, a lua é também a lua-fruta de Qu Yuan, que pende madura na ponta de um galho, ou a lua das crendices populares, inusitadamente relacionada a São Jorge, ou a deusa-lua Selene, ou a lua que influi misteriosamente na menstruação das mulheres e que transforma homens em lobos — todas diferentes luas, mas ainda assim a mesma lua. Os próprios cientistas hoje se dão conta do absurdo que é a realidade. Ilya Prigogine, prêmio Nobel de física, afirmou ser a realidade somente uma das realizações do possível.

O absurdo da poesia não é nada mais que o absurdo do real. A poesia e a arte não surgiram em um momento específico de uma história inventada, mas surgem a cada instante e com ela o homem, pois nisto consiste sua humanidade e cultura — a constante atualização do homem como homem, ao se perceber humano e mortal a cada ato; disso vem a poesia. Ao contrário da visão tradicional à qual estamos acostumados, a arte não é um jogo subjetivo de gênios excêntricos. Não é também exclusividade de uma elite ou de qualquer grupo que detenha seu poder de realização. A arte está em tudo. Sua essência sagrada está na física moderna e clássica, está nas casas e edifícios, nas ruas das cidades, na política real e feita com paixão, na matemática, em todos nós. A poesia é a linguagem primordial de todo espanto e está na base de tudo o que produzimos enquanto ato criador não alienado. A poesia é o que permite a própria realidade, ainda que a realidade, hoje, a esconda sob a rotina massacrante dos sistemas.

MULHER COM CRISÂNTEMOS
22 de agosto de 2014

Mulher com crisântemos_Degas

(Para aumentar a imagem, clicar com o mouse sobre ela. Na foto, a pintura Mulher com crisântemos.)
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o olhar observador, atento, parado em frente à tela acima, mulher com crisântemos, do artista francês da virada do século XIX para o século XX, edgar degas:

as flores transbordam do seu vaso na mesa, um pouco à esquerda da tela cujas beiras por pouco elas não ultrapassam, invadindo a moldura, tamanha exuberância. também o seu colorido, de tão vivo, tão intenso, tão bem cuidado, quase abandona a paleta da pintura, saltando do mundo das tintas para o mundo nosso, real, de concreto & cimento armado, tamanho realismo do colorido, mas apenas quase.

(é que o pintor, jovem mestre, ostenta sprezzatura, que é a capacidade que alguns artistas têm de fazer o difícil parecer fácil. é o mesmo que dizemos por cá: “fácil de entender, difícil de fazer”. assim como degas, chico buarque, dorival caymmi & vinicius de moraes são mestres que ostentam sprezzatura.)

o olhar passa por elas (pelas flores), pousa aqui, pousa ali, hesitante abelha, visita, à esquerda do vaso, um jarro d’água, nota um lenço largado sobre a toalha bordada da mesa, e ruma ao lado oposto da tela, para uma mulher cujos olhos ignoram-no, os olhos da mulher ignoram o olhar atento que agora a observa, atraídos, talvez, por algo que se acha fora não somente do quadro em que ela se encontra, mas também daquele quadro em que nos perceberia, se quisesse, se, num repente, resolvesse encarar o olhar que a encarava, se, num rompante, resolvesse fitar o olhar que a fitava, ávido. os olhos da mulher talvez estejam atraídos por algo que se acha fora tanto do quadro em que ela se encontra quanto de um outro, um no qual ela nos perceberia: talvez (os olhos) atraídos por algo que esteja apenas no seu pensamento, talvez por algo que esteja perdido nos seus olhos, que parecem distantes da própria pintura.

sem saber por que, o olhar não mais a quer largar. diga-se a verdade: essa mulher deixa a desejar: ela não se compara aos crisântemos (à sua beleza & exuberância) que lhe deram a fama a que mal faz jus, ela não se compara às flores que lhe deram a fama que, diga-se a verdade, não merece: afinal, ela se encontra à margem do quadro, e nem sequer inteira, só em parte. dela, está bem mais presente, ali no quadro, a ausência que a presença (a mulher nem sequer coloca-se inteira na tela & os seus olhos parecem distantes do cenário em que se encontram).

e, dado que a ausência é proteica, isto é, multiforme, multifacetada (pode-se estar ausente de diversas maneiras, sob diversos aspectos), dado também que a ausência é proteica porque, assim como proteína, alimenta a alma, os pensamentos, os olhos, de fantasias & delírios (a ausência do que atrai para si os olhos da mulher nos faz fantasiar, delirar, as mais sortidas razões), e “tudo nada” (pois tudo que forma a ausência é a falta, é o vazio, é o buraco, “tudo” que forma a ausência é o “nada”, a ausência é o “tudo” que é “nada”), e tudo nada, e tudo bóia, e tudo oscila, e tudo vacila, no quadro (não se pode saber com o que se distraem os olhos da mulher), o olhar atento à pintura mal mergulha na vertiginosa superfície da mulher (a mulher é feita de tinta & não de carne & osso, é superfície genuína porque não possui dentro, é toda exterioridade, e, no entanto, sendo apenas superfície, toda exterioridade, a mulher consegue levar o olhar de quem a observa à vertigem, à viagem interrogativa, curiosa, imaginativa) & flutua, bóia, nada, de volta às flores sobre o fundo castanho do papel de parede; depois, da capo (da capo é uma expressão que significa “desde o princípio” & que é colocada ao fim de um trecho de música, indicando que todo o trecho deve ser repetido), depois, portanto, o olhar é convidado a repetir toda a sua viagem, desde o princípio.

voltar o olhar atencioso inúmeras vezes a uma pintura como quem lê inúmeras vezes um poema: a fim de que a pintura, pura superfície assim como o poema, nos leve a sensações vertiginosas, nos leve a sensações que só sabem desempenhar as grandes obras de arte.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Porventura. autor: Antonio Cicero. editora: Record.)

 

 

MULHER COM CRISÂNTEMOS
(sobre um quadro de Degas)

Para Carlos Mendes Sousa

 

As flores transbordam do seu vaso à mesa,
um pouco à esquerda da tela cujas beiras
por pouco não ultrapassam, invadindo
a moldura. Também o seu colorido
quase abandona a paleta da pintura
(é que o jovem mestre ostenta sprezzatura),
mas apenas quase. O olhar passa por elas,
pousa aqui, pousa ali, hesitante abelha,
visita, à esquerda do vaso, um jarro d’água,
nota um lenço largado sobre a toalha
bordada da mesa e ruma ao lado oposto
da tela, para uma mulher cujos olhos
ignoram-no, atraídos talvez por algo
que se acha fora não somente do quadro
em que ela se encontra, mas também daquele
em que nos perceberia, se quisesse.
Sem saber por que, o olhar não mais a quer
largar. Diga-se a verdade: essa mulher
deixa a desejar. Ela não se compara
aos crisântemos que lhe deram a fama
a que mal faz jus, já que se encontra à margem
do quadro, e nem sequer inteira, só em parte.
Dela está bem mais presente ali a ausência
que a presença. E, dado que a ausência é proteica
e tudo nada, o olhar mal mergulha em sua
vertiginosa superfície e flutua
de volta às flores sobre o fundo castanho
do papel de parede; depois, da capo.

 

BRASIL: UM IMENSO HAITI
18 de março de 2014

Mulher arrastada por camburão da PMERJ

Aperto no peito

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ODEIO o tipo de gente que, como o venerável cardeal, vê tanto espírito no feto (e do alto do seu moralismo conclama o absurdo que é a legalização do aborto no país, não importando o número de mortes anuais de mulheres & todo o estrago que essas mortes levam aos mais próximos) & nenhum no marginal (e do alto do seu moralismo conclama a pena capital, pena de morte, no país, não importando o fato de que, num país como o  Brasil, preconceituoso até o pescoço, muitos morreriam injustamente em cadeiras elétricas, e a ineficiência do Estado poderia aumentar).

Tanto espírito no feto & NENHUM no marginal…

O Brasil, em diversos aspectos, soa-me como uma piada pronta de muito mau gosto. O Brasil me enoja em diversas questões. Às vezes tenho dó deste país, tenho pena da mediocridade deste país — e o sentimento estende-se ao mundo em geral.

A fila de soldados (da Polícia Militar), quase todos pretos, dando porrada na nuca de malandros pretos, de ladrões mulatos. E, outros, “quase brancos”, tratados como pretos só para mostrar, aos outros “quase pretos” (e são quase todos pretos) & aos “quase brancos” pobres como pretos, como é que pretos, pobres & mulatos, e quase brancos “quase-pretos”, de tão pobres, são tratados.

Na TV, uma mulher pobre, preta, que morava em uma favela no bairro de Madureira, zona norte do Rio de Janeiro, subúrbio da cidade, é arrastada por um camburão da P.M., como mostra uma das fotos que ilustra esta publicação.

Na TV, um deputado, em pânico mal dissimulado (no fundo, pouco se importando com o assunto), diante de um plano qualquer de educação, que parece fácil & rápido & que representa uma “ameaça” de democratização do ensino de primeiro grau.

O silêncio  sorridente de São Paulo diante da chacina: afinal, presos são quase todos pretos, ou “quase pretos”, ou quase brancos “quase-pretos” de tão pobres.

(E pobres são como podres. E todos sabem como se tratam os pretos.)

E não importa se olhos do mundo inteiro possam estar, por um momento (seja por causa do carnaval, seja por causa da Copa), voltados para o país. Não importa nada: ninguém é cidadão.

Os direitos civis são violados o tempo inteiro.

O Brasil, em diversos aspectos, é um imenso Haiti. Eu sinto raiva, eu sinto pena, eu sinto cansaço.

Obstruções, trincheiras, impedimentos: são muitas as barreiras: grande o aperto…

(Pense no Haiti, reze pelo Haiti…)

Paulo Sabino.
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(do livro: Letra só. autor: Caetano Veloso. seleção e organização: Eucanaã Ferraz. editora: Companhia das Letras.)

 

 

HAITI

 

Quando você for convidado pra subir no adro
Da Fundação Casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos
E outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos, pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados
E não importa se olhos do mundo inteiro
Possam estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque, um batuque
Com a pureza de meninos uniformizados
De escola secundária em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada
Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém, ninguém é cidadão
Se você for ver a festa do Pelô
E se você não for
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti

O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui

E na TV se você vir um deputado
Em pânico mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo
Qualquer qualquer
Plano de educação que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização
Do ensino de primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua
Sobre um saco brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
Diante da chacina: 111 presos indefesos
Mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres
E todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti

O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui
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(do site: Youtube. videoclipe da canção: Haiti. produção: Conspiração Filmes. música: Gilberto Gil / Caetano Veloso. letra: Caetano Veloso. intérpretes: Gilberto Gil / Caetano Veloso.)

SOBRE A DEMOCRACIA
3 de agosto de 2012

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há pouco tempo, num bate-papo a respeito de política, uma pessoa verdadeiramente bem intencionada utilizou um tipo de discurso que é muito comum entre as pessoas que defendem a LIBERDADE & a DEMOCRACIA.

 escreveu a pessoa sobre por que acredita que o POSICIONAMENTO DEMOCRÁTICO seja ACEITAR TODA & QUALQUER OPINIÃO sobre FORMAS DE ORGANIZAÇÃO POLÍTICA:
 
 
“Entendo a sua posição, mas acho que em um estado de direito TODAS as formas de pensamento devem ser respeitadas, desde a extrema direita até a extrema esquerda.
 
(…)
 
O que não podemos é impedir que pensamentos contrários aos nossos sejam expostos. Aí nos tornamos tão ditadores quanto aqueles.”
 
 
esse é um discurso muito comum, discurso corrente; acredito que muitos dos meus amigos, pessoas boas, pessoas bem intencionadas, assim como a pessoa que escreveu as linhas acima, pensam assim. eu, não. porque, no fundo no fundo, enxergo uma questão dialética SÉRIA.
 
eis a minha resposta:
 
 
“Mas existe um problema na questão proposta: se consideramos que o estado é um estado de DIREITO, isto é, se consideramos que o estado é um estado onde os DIREITOS DOS CIDADÃOS DEVEM SER ATENDIDOS, portanto, RESPEITADOS, isso significa dizer que, num ESTADO DE DIREITO DE TODOS OS CIDADÃOS, não devem existir formas políticas que RESTRINJAM DIREITOS DE DETERMINADOS GRUPOS DA SOCIEDADE.
 
O grande problema é que uma posição política, por exemplo, FASCISTA, uma das facetas da extrema direita, das mais radicais, evidentemente, EXCLUI O ESTADO DE DIREITO DE ALGUNS GRUPOS SOCIAIS (negros, homossexuais & mulheres) por conta de PRECONCEITOS que, mais do que sabido, como todos os preconceitos, são INCABÍVEIS depois de tantas comprovações sócio-culturais & científicas. É mais do que sabido que negros, homossexuais & mulheres não possuem nada de diferente do macho adulto branco sempre no comando (como bem disse Caetano Veloso).
 
Portanto, para que um estado GARANTA A SOBERANIA DE EXPRESSÃO DE TODOS OS CIDADÃOS é preciso garantir formas de organização política que priorizem exatamente os direitos que, em certas formas de organização, como na ORGANIZAÇÃO POLÍTICA DE CUNHO FASCISTA, portanto, organização de EXTREMA DIREITA, são RETIRADOS DE DETERMINADOS GRUPOS SOCIAIS. Esse tipo de organização NÃO MERECE RESPEITO PORQUE NÃO RESPEITA DIREITOS.
 
Isso é um princípio básico: EXIGE RESPEITO? POIS, ANTES, RESPEITE.”
 
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fica a minha questão: RESPEITO DEVE-SE A QUEM RESPEITA.
 
POSICIONAMENTO DEMOCRÁTICO NÃO DEVE ACEITAR POSICIONAMENTO ANTI-DEMOCRÁTICO.
 
isso é incoerente: dar voz a quem deseja cortar vozes(!).
 
beijo todos!
paulo sabino.

MUSA DA INSPIRAÇÃO: CAIA ESTE CÉU SOBRE MIM
14 de abril de 2012

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Há mulheres que se pintam de caulim (argila branca, espécie de barro branco), na Costa do Marfim (África), para o deus louvar.

Eu também me pinto, deixo caiada a minha alma, caiados os meus sentidos, para o luar, em mim, derramar a sua prata.

Ó lua, ó musa da inspiração, ó musa dos amantes, ó musa dos notívagos, ó musa dos insones: faça com que caia, isto é, faça com que desabe, por sobre mim, este céu sem fim que você habita.

Ó lua, ó musa da inspiração, faça com que caia, sobre mim, este céu sem fim, isto é, faça com que este céu sem fim seja pintado em mim, ó musa da inspiração, e que, assim, com o céu pintado & desabado por sobre mim, eu reúna apenas o que seja da natureza celeste:

sentimentos os mais altos, quereres os mais elevados, vontades as mais altivas.

(Que assim seja.)

Beijo todos!

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HÁ MULHERES  (autora: Vania Borges)

Há mulheres que se pintam de caulim
Na Costa do Marfim
Para o deus louvar

Eu também me pinto
Para o luar, em mim
A prata derramar

Ó Musa da inspiração!
Ó Musa da inspiração!
Ó Musa da inspiração!

Caia sobre mim
Este céu sem fim

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(do site: Youtube. canção: Há mulheres. autora: Vania Borges. intérprete: Rita Ribeiro.)

LIMERICKS EPIGRAMAS & EPITÁFIO
16 de novembro de 2011

abaixo,
 
seleção de limericks (forma poética amplamente utilizada na inglaterra do século 19, de 5 versos, cujo esquema rímico é aabba, com temas de tendência humorístico-mordaz) & epigramas (composição poética breve, em prosa ou verso, que expressa um pensamento de forma satírica) — com direito a um epitáfio (tipo de epigrama gravado em lápides ou monumentos funerários) —, do sofisticadíssimo poeta nelson ascher.
 
dentro do balaio poético, cheio de humor, há também algumas variações, criadas por ascher, sobre um tema do epigramatista paladas, oriundo da cidade de alexandria, no egito, que viveu no século 4 d.c. e que se dedicou a versar, em muitos dos seus epigramas, a transição da cultura grega para o mundo cristão. todavia, o tema eleito por nelson ascher não tem a ver com a transição da cultura grega à cultura cristã, mas sim com a visão que paladas possui, ou finge possuir, sobre a mulher.
 
limericks & epigramas & um epitáfio, todos divertidos, inteligentes, muito sagazes, limericks & epigramas & um epitáfio cheios de sacadas rápidas & espertas, que nos fazem ver, de forma clara & direta (sem espaço a elucubrações), como a poesia é cheia de malícias, de ardis, como a poesia é cheia de segundas intenções, de palavras que se desdobram em significados múltiplos. 
 
atentem às astúcias das linhas, ao seu humor ácido, e divirtam-se com elas!
 
(a seleção é para trazer leveza, suavidade.)
 
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Parte alguma. autor: Nelson Ascher. editora: Companhia das Letras.)
 
 
 
Havia um surfista em Recife
que usava só pranchas de grife.
   Tubarões, todavia,
   devoraram-no um dia
pensando tratar-se de um bife.
 
 
 
Havia uma moça paulista
que, como queria ser vista,
   desfilava sem nada
   mas jamais, pois gripada,
foi capa em nenhuma revista.
 
 
 
Havia um monarca na Grécia
que a todos fez uma promessa:
   ser-lhe-ia bem-vinda
   qualquer crítica ainda
que o autor não prezasse a cabeça.
 
 
 
Havia um rapaz tão abjeto
que, em Praga, deitara-se e, inquieto,
   acordou de manhã
   do seu sono pensando:
“Eu sinto-me pior que um inseto”.
 
 
 
Proibida de fazer amor outrora,
a mulher, livre (graças à vitória
feminista) daquele pesadelo,
pode hoje livremente não fazê-lo.
 
 
 
(Variações sobre um tema
de Paladas de Alexandria)
 
Pasa gyné cholos estin: echei d’agathas du(o) horas,
Tén mian en thalamo, tén mian en thanato
 
1)
Mulher só não chateia
àquele que consiga
manter a boca cheia
de carne ou de formiga.
 
 
2)
Mulher é o fim — menos na noite
de núpcias e depois da autópsia.
 
 
3)
Mulher na horizontal só não resulta
em caos se é puta ou quando está sepulta.
 
 
4)
Mulheres são um pé no saco, exceto aquelas
que abram as pernas ou que batam as canelas.
 
 
 
Quem serve a canibais aceita o risco
de que garçons lhes sirvam de petisco.
 
 
 
A alma humana é falaz, mas não despista
ninguém — salvo quem tem psicanalista.
 
 
 
Até cegos, que vêm da treva e à treva
regressam, vêem, sem experiência prévia,
que deste mundo aqui nada se eleva.
 
 
 
Aqui jaz Nelson Ascher consumido
pelo amor-próprio não correspondido.