NOVÍSSIMO ORFEU
11 de novembro de 2014

Orpheus (1894)_Károly Ferenczy (Húngaro)

(Na foto, o quadro Orpheus, 1894, do pintor húngaro Károly Ferenczy.)
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 para Murilo, novíssimo Orfeu, que chegará ao mundo em dezembro

 

 

(do: Dicionário da mitologia grega e romana. autor: Pierre Grimal. editora: Bertrand Brasil.)

 

 

ORFEU. Orfeu é unanimemente reconhecido como filho de Eagro (v. Eagro). As tradições divergem no que respeita ao nome da mãe: passa, mais vulgarmente, por filho de Calíope, que detém a mais alta dignidade entre as Musas; mas por vezes, em vez desta é referida Menipe, filha de Tâmiris. Orfeu é de origem trácia. Como as Musas, habita perto do Olimpo, onde é geralmente representado, cantando, vestido com os trajos dos Trácios. Os mitógrafos fazem dele o rei desta região: dos Bístones, dos Odrísios e dos Macedónios, etc. Orfeu é o Cantor por excelência, o músico e o poeta. Toca lira e “cítara”, instrumento cuja invenção lhe é atribuída. Quando esta honra lhe é negada, admite-se que foi ele que aumentou o número de cordas do instrumento, que não seriam inicialmente mais do que sete e passaram a ser nove, “tantas quanto as Musas”. Seja como for, Orfeu sabia cantar melodias tão suaves que até as feras o seguiam, as árvores e as plantas se inclinavam na sua direcção e os homens mais rudes se acalmavam.

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novíssimo orfeu:

vou onde a poesia me chama, vou onde a poesia me clama.

o amor é minha biografia, o amor é minha história de vida, texto de argila & fogo.

o amor: texto de argila & fogo: de argila, pois, segundo a mitologia cristã, o homem veio do barro, veio da terra, e para a terra retornará, e é na terra que o homem constitui a sua história, a sua biografia; de fogo, elemento que existe a partir da combustão de um corpo, que desprende luz & calor, corpo que arde, que queima, que aquece, que ilumina.

aves contemporâneas, pássaros dos dias atuais, largam do meu peito, alçando vôos & levando recado aos homens, meus irmãos na terra: o amor é dos sentimentos o mais nobre; belezas nasceram para serem complementares & não excludentes; apesar dos pesares, a vida vale o sorriso & o brilho no olhar.

o mundo alegórico se esvai, o mundo repleto de simbolismo & elementos figurados se dissipa, o mundo recheado de mitologias desfalece, o uso da razão & a ciência derrubam as alegorias mundanas & as crenças fantásticas, fica esta substância de luta, real, permanece esta matéria de batalha que travamos por uma existência mais frutífera, menos tacanha, de onde a eternidade se descortina, de onde o tempo se revela.

a estrela azul familiar vira as costas, foi-se embora…

(estrela azul: estrela de luminosidade intensa, de temperatura altíssima, com massa que pode ser até 18 vezes maior que a massa solar, associada, a sua aparição no céu, a épocas de bonança, a momentos de prosperidade, a tempos de mansuetude.)

a estrela azul conhecida, familiar, disse adeus…

mesmo assim, mesmo sem a estrela azul familiar no céu, ainda que esta não mais aponte épocas de bonança, momentos de prosperidade, tempos de mansuetude, a poesia, musa maior na vida, sopra onde quer.

apesar dos pesares, apesar da substância de luta de onde se descortina a eternidade, de onde a realidade se revela, a poesia sopra o seu vento lírico, a poesia sopra o seu vento onírico, a poesia sopra o seu vento alegórico, a fim de que a vida vivida ganhe um brilho ainda mais vívido, ainda mais colorido, ainda mais definido.

salve o sopro sortido & sagaz da poesia!

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Antologia poética. autor: Murilo Mendes. editora: Cosac Naify.)

 

 

NOVÍSSIMO ORFEU

 

Vou onde a Poesia me chama.

O amor é minha biografia,
Texto de argila e fogo.

Aves contemporâneas
Largam do meu peito
Levando recado aos homens.

O mundo alegórico se esvai,
Fica esta substância de luta
De onde se descortina a eternidade.

A estrela azul familiar
Vira as costas, foi-se embora…
A poesia sopra onde quer.

EU GOSTO DOS QUE ARDEM
10 de dezembro de 2009

prezados,
 
abaixo, poesias que compõem um capítulo do livro “veneno antimonotonia – os melhores poemas e canções contra o tédio”. o texto de apresentação, belíssimo e escrito pelo poeta eucanaã ferraz, pode ser lido aqui: https://prosaempoema.wordpress.com/2009/09/18/notas-de-um-antologista/
 
nas linhas que seguem, as minhas estima e admiração pelos que ardem, pelos que queimam, pelos que chamuscam na vida.
 
manter o fogo da existência sempre aceso, & firme, forte, em riste.
 
a vida é um incêndio e eu gosto dos que ardem, a mil, a cem por hora, com o narciso em chamas. do sul, cativo — deus salve a américa do sul! —, o este é meu norte. meu tempo é quando. e eu anseio incendiar o país.
 
(agir, girar, dançar por sobre o fogo — feito salamandra mágica —, com o domínio e a beleza de um orixá, com as destrezas de iansã e xangô.) 
 
mantenham acesas as labaredas da vida. mantenham, no olho do furacão, o ar dor que respiramos e que nos retorna vigor e ânimo e fôlego e.
 
cantemos a canção das chamas!
 
(velho ou criança: a vida é bela.)
 
beijo grande!
o preto,
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Veneno antimonotonia — os melhores poemas e canções contra o tédio. organização: Eucanaã Ferraz. editora: Objetiva. Capítulo: Eu gosto dos que ardem.)  
 
 
INSCRIÇÃO PARA UMA LAREIRA  mario quintana
 
A vida é um incêndio: nela
dançamos, salamandras mágicas.
Que importa restarem cinzas
se a chama foi bela e alta?
Em meio aos toros que desabam,
cantemos a canção das chamas!
 
Cantemos a canção da vida
na própria luz consumida…
 
 
PIRAR É ARDER  armando freitas filho
 
Pirar é arder
a mil
         fora da pista
com o narciso em chamas.
É cair em si sem sentir
nenhum sentido, e seguir
segundo por segundo
a cem por hora
a céu aberto
verão adentro
sem pouso ou pique
sequer 
         para um gole de sombra
refresco, abraço ou guarida.
É correr na contramão
por bares, praias, casas
pegando fogo
e chegar — ventando —
na hora H
de todos os incêndios
sem água ou nada
que apague as labaredas
carregando apenas
mochilas cheias de mormaço.
Pirar é arder
a mil
         milímetro por milímetro
e queimar
                        velocilento
como uma brasa
se consome
até na fogueira do próprio sono
e, de repente, some.
É estar nu e só
no centro ou no lugar
onde somente o sol
sabe
                           e assassina.
 
 
SÓ AS MÃES SÃO FELIZES  cazuza  — música de roberto frejat
 
Você nunca varou
A Duvivier às 5
Nem levou um susto saindo do Val Improviso
Era quase meio-dia
No lado escuro da vida
 
Nunca viu Lou Reed
“Walking on the Wild Side”
Nem Melodia transvirado
Rezando pelo Estácio
Nunca viu Allen Ginsberg
Pagando michê na Alaska
Nem Rimbaud pelas tantas
Negociando escravas brancas
 
Você nunca ouviu falar em maldição
Nunca viu um milagre
Nunca chorou sozinha num banheiro sujo
Nem nunca quis ver a face de Deus
 
Já freqüentei grandes festas
Nos endereços mais quentes
Tomei champanhe  e cicuta
Com comentários inteligentes
Mais tristes que os de uma puta
No Barbarella às 15 pras 7
 
Reparou como os velhos
Vão perdendo a esperança
Com seus bichinhos de estimação e plantas?
Já viveram tudo
E sabem que a vida é bela
 
Reparou na inocência
Cruel das criancinhas
Com seus comentários desconcertantes?
Adivinham tudo
E sabem que a vida é bela  
 
Você nunca sonhou
Ser currada por animais
Nem transou com cadáveres?
Nunca traiu o teu melhor amigo?
Nem quis comer a tua mãe?
 
Só as mães são felizes…
 
 
POÉTICA  vinicius de moraes
 
De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.
 
A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.
 
Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem
 
Nasço amanhã
Ando onde há espaço
— Meu tempo é quando. 
 
 
JANDIRA  murilo mendes
 
O mundo começava nos seios de Jandira.
Depois surgiram outras peças da criação:
surgiram os cabelos para cobrir o corpo,
(às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos).
E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo.
E surgiram sereias da garganta de Jandira:
o ar inteirinho ficou rodeado de sons
mais palpáveis do que pássaros.
E as antenas das mãos de Jandira
captavam objetos animados, inanimados,
dominavam a rosa, o peixe, a máquina.
E os mortos acordavam nos caminhos visíveis do ar
quando Jandira penteava a cabeleira…
 
Depois o mundo desvendou-se completamente,
foi-se levantando, armado de anúncios luminosos.
E Jandira apareceu inteiriça,
de cabeça aos pés.
Todas as partes do mecanismo tinham importância.
E a moça apareceu com o cortejo do seu pai,
de sua mãe, de seus irmãos.
Eles é que obedecem aos sinais de Jandira
crescendo na vida em graça, beleza, violência.
Os namorados passavam, cheiravam os seios de Jandira
e eram precipitados nas delícias do inferno.
Eles jogavam por causa de Jandira,
deixavam noivas, esposas, mães, irmãs
por causa de Jandira.
E Jandira não tinha pedido coisa alguma.
E vieram retratos no jornal
e apareceram cadáveres boiando por causa de Jandira.
Certos namorados viviam e morriam
por causa de um detalhe de Jandira.
Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira.
Outro, por causa de uma pinta na face esquerda de Jandira.
E seus cabelos cresciam furiosamente com a força das máquinas;
não caía nem um fio,
nem ela os aparava.
E sua boca era um disco vermelho
tal qual um sol mirim.
Em roda do cheiro de Jandira
a família andava tonta.
As visitas tropeçavam nas conversações
por causa de Jandira.
 
E um padre na missa
esqueceu de fazer o sinal-da-cruz por causa de Jandira.
 
E Jandira se casou.
E seu corpo inaugurou uma vida nova,
apareceram ritmos que estavam de reserva,
combinações de movimento entre as ancas e os seios.
À sombra do seu corpo nasceram quatro meninas que repetem
as formas e os sestros de Jandira desde o princípio do tempo.
 
E o marido de Jandira
morreu na epidemia de gripe espanhola.
E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela.
Desde o terceiro dia o marido
fez um grande esforço para ressuscitar:
não se conforma, no quarto escuro onde está,
que Jandira viva sozinha,
que os seios, a cabeleira dela transtornem a cidade
e que ele fique ali à toa.
 
E as filhas de Jandira
inda parecem mais velhas do que ela.
E Jandira não morre,
espera que os clarins do juízo final
venham chamar seu corpo,
mas eles não vêm.
E mesmo que venham, o corpo de Jandira
ressuscitará inda mais belo, mais ágil e transparente.
 
 
SUBVERSIVA  ferreira gullar
 
A poesia
quando chega
                   não respeita nada.
Nem pai nem mãe.
                         Quando ela chega
de qualquer de seus abismos
desconhece o Estado e a Sociedade Civil
infringe o Código de Águas
                                            relincha
como puta
         nova
         em frente ao Palácio da Alvorada.
 
E só depois
reconsidera: beija
                   nos olhos os que ganham mal
                   embala no colo
                   os que têm sede de felicidade
                   e de justiça
 
E promete incendiar o país
 
 
SENHAS  adriana calcanhotto
 
Eu não gosto do bom gosto 
Eu não gosto do bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto
 
Eu agüento até rigores
Eu não tenho pena dos traídos
Eu hospedo infratores e banidos
Eu respeito conveniências
Eu não ligo pra conchavos
Eu suporto aparências
Eu não gosto de maus-tratos
 
Mas o que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto
 
Eu agüento até os modernos
E seus segundos cadernos
Eu agüento até os caretas
E suas verdades perfeitas
 
O que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto
 
Eu agüento até os estetas
Eu não julgo competência
Eu não ligo pra etiqueta
Eu aplaudo rebeldias
Eu respeito tiranias
E compreendo piedades
Eu não condeno mentiras
Eu não condeno vaidades
 
O que eu não gosto é do bom gosto
Eu não gosto de bom senso
Eu não gosto dos bons modos
Não gosto
 
Eu gosto dos que têm fome
Dos que morrem de vontade
Dos que secam de desejo
Dos que ardem