(A cidade do Rio de Janeiro, vista do alto de um avião.)
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“Paulo, meu caro.
Às vezes, depois de passar 2, 3 noites acordado, procurando em vão uma solução melhor, uma maldita palavrinha que seja, para um poema, para uma tradução, eu cedo ao desânimo e penso aqui com meus botões: ‘Cara, por que perder tempo com isso, pra que o esforço extra, aliás, qualquer esforço? Ninguém vai notar a diferença mesmo. Ninguém tá nem aí.’
E aí você, Paulo, vem com seu trabalho, com sua leitura precisa, perspicaz, com algo assim, pra lá de generoso, e, embora eu mesmo não possa (nenhum de nós pode) julgar o (meu) próprio trabalho, a única resposta que posso te dar e a única maneira que tenho de te agradecer é dando (mais) duro, não desanimando, não deixando a peteca cair, passando mais noites em claro atrás daquela palavra (porque alguém nota, sim, a diferença) e tentando (com sorte) fazer algo que preste.
Todo mundo — eu também — quer vender 1 milhão de exemplares, encher um estádio com fãs boquiabertos(as) etc., mas o que mantém a gente escrevendo poesia é uma leitura, um feedback como este seu. Obrigado mesmo e um grande abraço, Nelson”.
(Nelson Ascher — poeta, tradutor & crítico literário)
homecoming: expressão da língua inglesa que pode ser entendida como “regresso à casa”, “retorno ao lar”.
estar em meu país depois de passar uma temporada longe.
estar em meu país é estar em convívio com uma série de características sócio-culturais que diz respeito ao meu país, às pessoas que nele vivem.
e, estando em meu país, por mais que eu consiga, com certa facilidade, identificar determinadas características sócio-culturais que compõem o meu país, que é a minha casa, o meu lar primeiro, há sempre algo que, nessa apreensão, nos escapa, acaba imensurável. há sempre algo para além da linguagem, de árdua captura & designação.
determinadas características sócio-culturais que compõem o meu país: estar em meu país é deduzir, num golpe de vista, quem é o quê (se gay ou se opus dei); estar em meu país é ser, desde o primário, desde os tempos remotos, íntimo de alguém antes de ser-lhe apresentado; estar em meu país é dizer quem faz o quê & o que faria caso pudesse (nas mais variadas situações cogitadas ou experiências do cotidiano); estar em meu país é intuir, sem dúvida, quem é quem, como ver quem quer passar por quem.
determinadas características sócio-culturais que compõem o meu país: estar em meu país é vivenciar pré-conceitos, julgamentos infundados, intimidades forçadas, percepções precipitadas, ainda que haja muitas vezes acerto na primeira impressão sobre alguém ou algo.
no entanto, estar em meu país tem “algo mais difícil” que o dom fácil de identificar algumas das suas características sócio-culturais (como as apontadas acima), e esse “algo mais difícil” de ser apreendido & classificado, rotulado, nomeado, é, simplesmente, estar em meu país, esse “algo mais difícil” é, simplesmente, o que não cabe em nenhuma definição do que seja estar em meu país — a única coisa que cabe onde não cabe definição para o meu país é a pura vivência, é habitar, conviver, desfrutar, aventurar-se, inserir-se na vida do meu país, no seu dia-a-dia & pormenores.
em tudo o que resta & rasteja, há sempre o quinhão do indefinível, do inclassificável, do imponderável, do que escapa à linguagem, do que está à mostra somente quando vivenciado sem racionalizações.
(que tenhamos, sempre, o dom fácil de frustrar qualquer estranho que pense saber tudo o que pensamos.)
beijo todos!
paulo sabino.
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(do site: Youtube. Paulo Sabino recita “Homecoming”, poema de Nelson Ascher. Em 18/11/2015.)
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(do livro: Parte alguma. autor: Nelson Ascher. editora: Companhia das Letras.)
HOMECOMING
Estar em meu país
é deduzir num golpe
de vista quem é o quê,
se gay ou se opus dei,
mas isto ainda é fácil,
algo exeqüível quer
nos parques, quer nos becos
de Osasco ou nos de Osaka.
Estar em meu país
é ser, desde o primário,
íntimo de alguém antes
de ser-lhe apresentado,
mas isto, num país
mais incestuoso até
do que a menor das tribos
perdidas, ainda é fácil.
Estar em meu país
é de antemão poder
dizer quem faz o quê
e o que faria caso
pudesse, mas às vezes
parece (e constatá-lo
é fácil) que não há
ninguém fazendo nada.
Estar em meu país
é tanto intuir sem dúvida
quem é quem como ver
quem quer passar por quem,
embora, a rigor, isto
talvez se deva à idade
e, após alguma prática,
nem chegue a ser difícil.
Estar em meu país,
mais que saber por que
qualquer estranho pensa
saber tudo o que penso,
tem algo mais difícil
que o dom fácil de sempre
frustrá-lo e é simplesmente
estar em meu país.