canto de sereia (1):
para livrar-se dele, tapar os ouvidos, os poros do corpo. canto de sereia é canto de feitiço. portanto, fazer do corpo a fortaleza a fim de lutar & resistir.
(sempre que penso nisso, me vem a divina & amada & venerada sereia nina simone, cantando: “i put a spell on you/ because you are mine”.)
canto de sereia (2):
quando o canto chama, & queima por dentro, & ilumina, flor de estufa, flor criada em local fechado, com todo tipo de proteção a quaisquer intempéries do tempo, salta a cerca para luzir no mangue, e, no mangue luzindo, emprenha-se de muitos, fecundiza-se de todos. a vida da flor de estufa, depois da cerca saltada — cerca afora —, passa a ser gerida, guiada, passa a ser conduzida, por vozes de/em si: a câmara de ecos: vozes pretéritas reverberadas, vozes futuras adivinhadas.
a obsessão da flor: transformar o eco em narciso: que o eco reverbere e adivinhe o que a flor admira em si.
a obsessão da flor: mirar-se e admirar-se de estar sendo (como propala fernando pessoa), tendo, assim, seu senso narcísico.
(sempre que penso nisso, me vem a divina & amada & venerada sereia clarice lispector, entoando: “Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está certo.”)
a sereia é essencialmente narcísica. maravilha-se do seu canto, e dá-se, inteira, à vida.
que o canto bem cantado da sereia ecoe, e, eco, metamorfoseie-se em: fonte:
fonte para sua própria existência.
beijo em todos!
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Algaravias. autor: Waly Salomão. editora: Rocco.)
CANTO DE SEREIA
(Primeiro Movimento)
Tapar os ouvidos com cera ou chumbo derretido.
Construir uma fortaleza de aço blindado em volta
de si.
O próprio corpo produzir uma resina que feche os
poros,
como o própolis faz nas fendas dos favos de mel.
CANTO DE SEREIA
(Segundo Movimento)
A flor de estufa
salta a cerca
para luzir no mangue.
E se emprenha de fulano, sicrano e beltrano.
Sua vida atual reverbera vozes pretéritas,
adivinha vozes futuras.
Sua obsessão:
Que Eco se transforme em Narciso,
Que Eco se metamorfoseie em fonte.
1995