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antigamente, se morria, versejou o poeta.
antigamente, segundo o poeta, morria-se praticamente de tudo: bastava um susto, um lenço no vento, um suspiro, e pronto, lá se iam mais defuntos à terra dos pés juntos.
antigamente, dizem os versos, morrer era um tipo de festa, uma das coisas da vida, como ser ou não ser convidado. pela morte, o escândalo era de praxe. mas os danos (à alma) eram pequenos. sempre alguém tinha uma frase que deixava aquilo “mais ou menos”: “descansou”. “partiu”. “deus o tenha”.
afinal, a vida é um “upa”, é a vida um “opa”, a vida é um “já foi”, a vida é um “qual é”.
porém, agora, confabulam as linhas, a morte está difícil. agora a morte tem limites: tem recursos, tem asilos, tem remédios.
hoje, a morte está difícil, declara o poeta.
tanto é que a ciência da eternidade, a ciência que almeja o prolongar sem fim da vida, essa ciência inventou a criônica (segundo o dicionário houaiss, “técnica de congelamento de pessoas, imediatamente após sua morte, na esperança de trazê-las de volta à vida quando for descoberta a cura da doença que as vitimou”).
com tanta tecnologia para a humanidade livrar-se da morte, hoje, sim, pessoal, a vida é “crônica” (atenção ao sentido múltiplo da palavra “crônica”).
mas a morte, que é o desembarque derradeiro, a morte, que é o fim da viagem, a morte: quem a quer?
(ninguém quer a morte! só saúde & sorte!)
a morte é o início de um estado eterno.
de lá, até onde se sabe, ninguém volta.
nós, do lado de “cá”, do lado da vida.
nós, do lado de “cá”, a morte, do lado de “lá”.
a morte: um além sem pressa, pois que um “além eterno”.
a quem interessa esse além sem pressa?
se morrer é ir para o “além”, é ir para além do chão, se morrer é ir a um “além-acima”, a mim interessa, a/penas, este “áquem”, a mim interessa, unica/mente, este “abaixo” em que vivo & existo, a mim só interessa esta realidade mundana, feita de carne & osso, e pedra & água & folha & bicho & gente & céu.
este aquém: o “além” a quem possa interessar.
este aquém é o único que nos leva “além”: é neste “aquém” que: descobertas, constatações, dúvidas, medos, pesares, maravilhas, alegrias, vontades. está neste “aquém” a nossa possibilidade de alcançar horizontes, está neste “aquém” a nossa possibilidade de ir “além”.
este aquém: o além a quem interessar possa.
a mim muito interessa!
por isso, lá vou eu, gesto no movimento:
quando chove, eu chovo. faz sol, eu faço. de manhã, amanheço. de noite, anoiteço.
daqui (de mim) me vejo: lá vou eu, gesticulação, meneio, lá vou eu, ação no movimento.
e é justamente no “agir”, e é justamente na realização do gesto, que o gesto é gestado.
gesto (elaboro, penso, preparo) o gesto (a gesticulação, o ato, a ação) no movimento.
lá vou eu:
a quem interessar possa, o meu interesse pela poesia, o meu interesse pela página que gesta a poesia.
lá vou eu:
a quem interessar possa, textos & textos & textos de belezas incontáveis, incomensuráveis, em verso & prosa.
textos textos textos: malditas (malditas muito benditas, malditas muito benvindas) placas fenícias (aos fenícios, povo da antiguidade, é atribuída a invenção do alfabeto fonético), placas que, no fim das contas, nos trouxeram, tantos os caminhos tortuosos & tantas as errâncias & acasos, até aqui, placas fenícias que nos trouxeram até esta linguagem & até estes textos que hoje lemos, textos textos textos que deixam a mente torta de malícias, entortada de percepções, torta de espertezas — ser o lobo do lobo do homem —, e torta de ciscos, de partículas que tornam piscos os olhos, olhos que, vezenquando, tantos os ciscos, não conseguem enxergar muito bem.
textos textos textos: como deixam a mente “torta” de malícias, como deixam a mente um “bolo recheado” de malícias, como deixam a mente um “bolo confeitado” de perversões, como deixam a mente torta de “ciscos” (que seria o ato, a ação, de “ciscar” aqui & ali, a ação de “ciscar” em quintais & terrenos os mais variados)!…
textos textos textos: um bom texto poético, um bom poema, leva anos de maturação, anos de experiências, anos de vivências na bagagem “de mão”.
um bom poema leva anos praticando esporte, estudando, carregando pedra, namorando a vizinha, ou o vizinho, ou os dois (rs), um bom poema leva anos levando porrada, andando sozinho.
um bom poema exige muito, um bom poema exige o mundo, e o tempo todo.
e exige todo o tempo porque um bom poema custa uma eternidade caminhando junto; caminhando junto, lado a lado, folha a folha, letra a letra, vida a vida: o poema & o poeta.
poesia: a liberdade da minha linguagem.
poesia: o além a quem interessar possa.
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: La vie en close. autor: Paulo Leminski. editora: Brasiliense.)
O QUE PASSOU, PASSOU?
Antigamente, se morria.
1907, digamos, aquilo sim
é que era morrer.
Morria gente todo dia,
e morria com muito prazer,
já que todo mundo sabia
que o Juízo, afinal, viria,
e todo mundo ia renascer.
Morria-se praticamente de tudo.
De doença, de parto, de tosse.
E ainda se morria de amor,
como se amar morte fosse.
Pra morrer, bastava um susto,
um lenço no vento, um suspiro e pronto,
lá se ia nosso defunto
para a terra dos pés juntos.
Dia de anos, casamento, batizado,
morrer era um tipo de festa,
uma das coisas da vida,
como ser ou não ser convidado.
O escândalo era de praxe.
Mas os danos eram pequenos.
Descansou. Partiu. Deus o tenha.
Sempre alguém tinha uma frase
que deixava aquilo mais ou menos.
Tinha coisas que matavam na certa.
Pepino com leite, vento encanado,
praga de velha e amor mal curado.
Tinha coisas que tem que morrer,
tinha coisas que tem que matar.
A honra, a terra e o sangue
mandou muita gente praquele lugar.
Que mais podia um velho fazer,
nos idos de 1916,
a não ser pegar pneumonia,
deixar tudo para os filhos
e virar fotografia?
Ninguém vivia pra sempre.
Afinal, a vida é um upa.
Não deu pra ir mais além.
Mas ninguém tem culpa.
Quem mandou não ser devoto
de Santo Inácio de Acapulco,
Menino Jesus de Praga?
O diabo anda solto.
Aqui se faz, aqui se paga.
Almoçou e fez a barba,
tomou banho e foi no vento.
Não tem o que reclamar.
Agora, vamos ao testamento.
Hoje, a morte está difícil.
Tem recursos, tem asilos, tem remédios.
Agora, a morte tem limites.
E, em caso de necessidade,
a ciência da eternidade
inventou a criônica.
Hoje, sim, pessoal, a vida é crônica.
a quem
interessa
esse
além
sem
pressa
?
a mim
este
aquém
o
além
a
quem
interessar
possa
PROFISSÃO DE FEBRE
quando chove,
eu chovo,
faz sol,
eu faço,
de noite,
anoiteço,
tem deus,
eu rezo,
não tem,
esqueço,
chove de novo,
de novo, chovo,
assobio no vento,
daqui me vejo,
lá vou eu,
gesto no movimento
TEXTOS TEXTOS TEXTOS
malditas placas fenícias
cobertas de riscos rabiscos
como me deixastes os olhos piscos
a mente torta de malícias
ciscos
um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto
LIMITES AO LÉU
POESIA: “words set to music” (Dante
via Pound), “uma viagem ao
desconhecido” (Maiakóvski), “cernes e
medulas” (Ezra Pound), “a fala do
infalável” (Goethe), “linguagem
voltada para a sua própria
materialidade” (Jákobson),
“permanente hesitação entre som e
sentido” (Paul Válery), “fundação do
ser mediante a palavra” (Heidegger),
“a religião original da humanidade”
(Novalis), “as melhores palavras na
melhor ordem” (Coleridge), “emoção
relembrada na tranqüilidade”
(Wordsworth), “ciência e paixão”
(Alfred de Vigny), “se faz com
palavras, não com idéias” (Mallarmé),
“música que se faz com idéias”
(Ricardo Reis/Fernando Pessoa), “um
fingimento deveras” (Fernando
Pessoa), “criticism of life” (Mathew
Arnold), “palavra-coisa” (Sartre),
“linguagem em estado de pureza
selvagem” (Octavio Paz), “poetry is to
inspire” (Bob Dylan), “design de
linguagem” (Décio Pignatari), “lo
imposible hecho posible” (García
Lorca), “aquilo que se perde na
tradução” (Robert Frost), “a liberdade
da minha linguagem” (Paulo
Leminski)…