sair à rua após parir poemas.
sair à rua após confabular idéias, articular palavras, resplandecer versos estudados, escarafunchados.
haver escrito o quanto havia para:
fica mais esclarecido o que acontece à nossa volta?
está mais claro o que ao redor se encena? ou o que ao redor se encena foi perdido, irrecuperável com o passar das coisas, simplesmente ido, como vão as nossas vivências vãs depois de tê-las vivido?
será que as coisas se vão ou será que ficam retidas, presas às palavras dos poemas?
depois de parir poemas, retornado à rua, retornando à vida de sempre.
no caminhar a vida, no andar os passos, repentinamente, a percepção de que: após parir poemas, está mais claro o que ao redor se encena.
o poema é, às minhas vistas, imprescindível para mais apuradamente eu perceber as coisas ao redor.
todavia, assim como as vãs vivências vão, e mudam, algumas percepções também. aos poucos, diluem-se & esparsam — até a vez do próximo poema, que, mesmo sem pretensões, elucida & esclarece uma quantidade de questões.
sair à rua após parir poemas:
os acontecimentos vão & vêm, os acontecimentos vêm & vão. os acontecimentos nos chegam, e os acontecimentos nos passam. a vida é um “ir & vir”, infinito. a vida vem em ondas, como o mar.
a vida vem em ondas: o corpo coberto por ela (pela onda), não sabe das outras que virão. o corpo só conhece, só percebe, só sabe, aquela que, sobre ele, se desfaz.
(o futuro ao futuro pertence.)
o corpo só sabe a onda do momento.
os acontecimentos vêm & vão, vão & vêm, como as ondas do mar: num “ir & vir”, infinito.
na vida, a gente tem que entender que, horas, a gente nasce para chorar, e que, outras, a gente nasce para sorrir.
assim também o poema: em algumas horas, o poema é reservado, é quieto, cabisbaixo, em algumas horas o poema é de um olhar triste, duma tristeza quieta, quase suave.
pode o poema, ainda em horas outras, ser um poema sem janela, isto é, ser um poema sem ventilação, não arejado, abafado, um poema onde o ar não transite, um poema que sufoque: um poema-caixão, onde os versos, ao contrário de construtores que criam matéria nova, os versos edificam a sua própria cova.
o poema sem janela: na dor só dor almeja, incapaz de perceber: felicidade.
porém, mesmo o poema sem janela permite a vinda duma brisa que sopre realidade mais bela, ainda que bela não seja a realidade.
que a realidade seja bela ainda que a ausência das pessoas que já não existem preencha espaço descomunal, isto é, ainda que a ausência preencha espaço incomum, espaço diferenciado, assim como preencha espaço gigantesco, espaço colossal, imenso.
o espaço que preenchem as pessoas que já não existem é “veemente” feito algo “impossível”, e “urgente” feito a urgência do advérbio “afinal”, sinônimo de “finalmente”.
(as ausências nos causam tristezas…)
mesmo assim, até o poema sem janela, poema que na dor só dor almeja, poema que não percebe: felicidade, até o poema sem janela permite a vinda de brisa; mesmo uma vida com tristezas, há, nela, na existência, algo de bom para contar — palavras belas, um gesto, um jeito, um tom, um alguém para amar…
tudo passa. tudo, sempre, passará.
a vida vem em ondas, como o mar, num “ir & vir” infinito.
a mim me deve bastar o que me tenha acontecido.
a fim de que baste o que me tenha acontecido, é preciso lutar, lutar por dias melhores, por dias confortáveis; dias que se bastem felizes, ainda que não evitemos acontecimentos infelizes, pois a vida trata de nos ensinar que determinados acontecimentos infelizes são impossíveis de serem detidos, são impossíveis de serem evitados.
(cá entre nós: viver bem é bem melhor.)
(cá entre nós: como (bem) versejou o meu querido amigo antonio cicero no seu poema nênia: bom não é viver, mas viver bem.)
beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Vívido. autor: Pedro Amaral. editora: Sette Letras.)
Sair à rua após parir poemas
“Não sei bem como escrevo…”
A. Strindberg
Sair à rua após parir poemas,
Haver escrito o quanto havia para:
Está mais claro o que ao redor se encena?
Em não fazer poemas se apagara?
Retornado à rua,
Retornando à vida
De sempre: gestos, fala;
Adivinhar o gosto da bebida,
Cores e odores que a gente exala.
Está mais claro o que ao redor se encena…
Aos poucos tudo se dilui e esparsa,
Até a vez do próximo poema.
Onda
“A vida vem em ondas, como o mar”
Vinicius de Moraes
O corpo coberto por ela
Não sabe das outras atrás —
Somente que conhece aquela
Que sobre ele se desfaz.
[Poema reservado]
Sim, o meu olhar é triste:
Você bem vê, bem disse.
No entanto, é de uma tristeza
Quieta, e quase suave;
Não é tristeza hasteada,
Exasperada, em riste.
É uma tristeza sem adornos,
Sem enfeite de lágrima, choro:
Até tem riso, e canto.
É tristeza (assim seja)
De alguém que viu
… E não deteve o espanto.
Poema sem janela
Derrogo o poema sem janela,
Este, o soturno que ora escrevo
(Poema onde a dor vem em relevo).
Derrogo-o, poema-só-dor,
Pois não pode ser que se proceda
Como um construtor
Que como tal há de criar matéria nova
E no entanto edifica sua cova.
Derrogo, portanto, o poema
Sem janela, que na dor só dor almeja
(incapaz de perceber: felicidade),
Deixo vir a brisa que acena
Insinuando que a realidade
Há que ser bela, ainda que não seja.
Ausência
As pessoas que já não existem
Preenchem espaço descomunal;
Feito a veemência de um impossível,
Feito a urgência de um afinal.
Entre nós
Há algo de tão bom
Entre nós, algumas
Palavras tão belas…
Que agora nem quero
Lembrar que muitas delas
Se vão como se não
Houvessem existido.
Há algo de tão bom
Entre nós,
Um gesto, um jeito, um tom…
Que no mais nem quero pensar:
A mim me deve bastar
Que me tenhas acontecido.