SAIR À RUA APÓS PARIR POEMAS
10 de maio de 2011

sair à rua após parir poemas.
 
sair à rua após confabular idéias, articular palavras, resplandecer versos estudados, escarafunchados.
 
haver escrito o quanto havia para:
 
fica mais esclarecido o que acontece à nossa volta?
 
está mais claro o que ao redor se encena? ou o que ao redor se encena foi perdido, irrecuperável com o passar das coisas, simplesmente ido, como vão as nossas vivências vãs depois de tê-las vivido?
 
será que as coisas se vão ou será que ficam retidas, presas às palavras dos poemas?
 
depois de parir poemas, retornado à rua, retornando à  vida de sempre.
 
no caminhar a vida, no andar os passos, repentinamente, a percepção de que: após parir poemas, está mais claro o que ao redor se encena.
 
o poema é, às minhas vistas, imprescindível para mais apuradamente eu perceber as coisas ao redor.
 
todavia, assim como as vãs vivências vão, e mudam, algumas percepções também. aos poucos, diluem-se & esparsam — até a vez do próximo poema, que, mesmo sem pretensões, elucida & esclarece uma quantidade de questões.
 
sair à rua após parir poemas:
 
os acontecimentos vão & vêm, os acontecimentos vêm & vão. os acontecimentos nos chegam, e os acontecimentos nos passam. a vida é um “ir & vir”, infinito. a vida vem em ondas, como o mar.
 
a vida vem em ondas: o corpo coberto por ela (pela onda), não sabe das outras que virão. o corpo só conhece, só percebe, só sabe, aquela que, sobre ele, se desfaz.
 
(o futuro ao futuro pertence.)
 
o corpo só sabe a onda do momento.
 
os acontecimentos vêm & vão, vão & vêm, como as ondas do mar: num “ir & vir”, infinito.
 
na vida, a gente tem que entender que, horas, a gente nasce para chorar, e que, outras, a gente nasce para sorrir.
 
assim também o poema: em algumas horas, o poema é reservado, é quieto, cabisbaixo, em algumas horas o poema é de um olhar triste, duma tristeza quieta, quase suave.
 
pode o poema, ainda em horas outras, ser um poema sem janela, isto é, ser um poema sem ventilação, não arejado, abafado, um poema onde o ar não transite, um poema que sufoque: um poema-caixão, onde os versos, ao contrário de construtores que criam matéria nova, os versos edificam a sua própria cova.
 
o poema sem janela: na dor só dor almeja, incapaz de perceber: felicidade.
 
porém, mesmo o poema sem janela permite a vinda duma brisa que sopre realidade mais bela, ainda que bela não seja a realidade.
 
que a realidade seja bela ainda que a ausência das pessoas que já não existem preencha espaço descomunal, isto é, ainda que a ausência preencha espaço incomum, espaço diferenciado, assim como preencha espaço gigantesco, espaço colossal, imenso.
 
o espaço que preenchem as pessoas que já não existem é “veemente” feito algo “impossível”, e “urgente” feito a urgência do advérbio “afinal”, sinônimo de “finalmente”.   
 
(as ausências nos causam tristezas…)
 
mesmo assim, até o poema sem janela, poema que na dor só dor almeja, poema que não percebe: felicidade, até o poema sem janela permite a vinda de brisa; mesmo uma vida com tristezas, há, nela, na existência, algo de bom para contar — palavras belas, um gesto, um jeito, um tom, um alguém para amar…
 
tudo passa. tudo, sempre, passará.
 
a vida vem em ondas, como o mar, num “ir & vir” infinito.
 
a mim me deve bastar o que me tenha acontecido.
 
a fim de que baste o que me tenha acontecido, é preciso lutar, lutar por dias melhores, por dias confortáveis; dias que se bastem felizes, ainda que não evitemos acontecimentos infelizes, pois a vida trata de nos ensinar que determinados acontecimentos infelizes são impossíveis de serem detidos, são impossíveis de serem evitados.
 
(cá entre nós: viver bem é bem melhor.)
 
(cá entre nós: como (bem) versejou o meu querido amigo antonio cicero no seu poema nênia: bom não é viver, mas viver bem.)
 
beijo todos!
paulo sabino. 
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(do livro: Vívido. autor: Pedro Amaral. editora: Sette Letras.)
 
 
 
Sair à rua após parir poemas
 
                              “Não sei bem como escrevo…”
 
                                                                    A. Strindberg
 
 
Sair à rua após parir poemas,
Haver escrito o quanto havia para:
Está mais claro o que ao redor se encena?
Em não fazer poemas se apagara?
 
Retornado à rua,
Retornando à vida
De sempre: gestos, fala;
Adivinhar o gosto da bebida,
Cores e odores que a gente exala.
 
Está mais claro o que ao redor se encena…
Aos poucos tudo se dilui e esparsa,
Até a vez do próximo poema.
 
 
 
Onda
 
“A vida vem em ondas, como o mar”
 
                                      Vinicius de Moraes
 
 
O corpo coberto por ela
Não sabe das outras atrás —
Somente que conhece aquela
Que sobre ele se desfaz.
 
 
 
[Poema reservado]
 
 
Sim, o meu olhar é triste:
Você bem vê, bem disse.
No entanto, é de uma tristeza
 
Quieta, e quase suave;
Não é tristeza hasteada,
Exasperada, em riste.
 
É uma tristeza sem adornos,
Sem enfeite de lágrima, choro:
Até tem riso, e canto.
 
É tristeza (assim seja)
De alguém que viu
… E não deteve o espanto.
 
 
 
Poema sem janela
 
 
Derrogo o poema sem janela,
Este, o soturno que ora escrevo
(Poema onde a dor vem em relevo).
Derrogo-o, poema-só-dor,
 
Pois não pode ser que se proceda
Como um construtor
Que como tal há de criar matéria nova
E no entanto edifica sua cova.
 
Derrogo, portanto, o poema
Sem janela, que na dor só dor almeja
(incapaz de perceber: felicidade),
 
Deixo vir a brisa que acena
Insinuando que a realidade
Há que ser bela, ainda que não seja.
 
 
 
Ausência
 
 
As pessoas que já não existem
Preenchem espaço descomunal;
Feito a veemência de um impossível,
Feito a urgência de um afinal.
 
 
 
Entre nós
 
 
Há algo de tão bom
Entre nós, algumas
Palavras tão belas…
Que agora nem quero
Lembrar que muitas delas
Se vão como se não
Houvessem existido.
 
Há algo de tão bom
Entre nós,
Um gesto, um jeito, um tom…
Que no mais nem quero pensar:
A mim me deve bastar
Que me tenhas acontecido.

VIVÊNCIAS À FLOR DA PALAVRA
27 de janeiro de 2010

pessoas,
 
desde que o conheci, melhor, desde que conheci os seus poemas, percebi afinidades. o autor da seleção que segue tem quase a mesma idade que a minha — somos da mesma geração —, e, coincidentemente, estudou filosofia no mesmo instituto onde estudei história.
 
aprecio deveras a sua delicadeza e sabedoria; sabedoria de traçar as suas linhas com uma clareza que denota simplicidade, porém uma simplicidade imbuída de requinte, de cuidado, de máximo esmero.
 
o título do livro de onde vieram as poesias, “vívido”, aponta para os temas que tramam a poética do poeta: as constatações, os achados, colhidos aqui e ali, das experiências de vida — experiências com o fazer poético (como nos poemas “inventário”, “medida”, “trânsito” & “poesia”), e experiências existenciais (como nas linhas de “vívido”, “do riso”, “jardim”, “poema sobre a mesa” & “turismo”).
 
as vivências à flor da palavra, à flor da poesia. vivências repaginadas em poéticas vivências de: pedro amaral.
 
vivam-nas também!
 
beijo grande!
paulo sabino / paulinho.
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(do livro: Vívido. autor: Pedro Amaral. editora: Sette Letras.)
 
Inventário
 
É a mesma lição
De novo ecoando,
Da qual sempre me escapa
O enunciado.
 
E, dele esquecido,
Me vejo obrigado
A refazer novamente o inventário
Do que pensava já haver aprendido.
 
 
Medida
 
Não sabia ainda
— E este era o problema
Que estancava o aprendizado:
O quanto, para fazer poemas,
Não fazer poemas é necessário.
 
 
Vívido
(living)
 
Não senhores não se importunem
com essa indisfarçável tristeza,
tristeza por nada, repentina,
que nada aplaca ou anima.
 
Não é amarga, não tem ranço,
não empesta o ar nem arrasa,
é como um pássaro batendo asas
pela casa
adentro, já passa.
 
 
Do riso
 
Me lembro de quando
A leveza do riso
Não me era
Algo
 
Assim tão preciso
 
Como uma janela
Aberta para esta
Sala, ou uma tábua
Para quem navega
E naufraga
 
 
Jardim
 
Nutrir um sentimento
Como quem a uma planta,
Ou algo assim:
Dar-lhe de beber,
Cuidar, podá-lo
E remediá-lo de seu fim.
 
 
Poema sobre a mesa
 
Lia
O poema que ali estava,
O poema sobre a mesa;
E, à medida que lia,
Algo estranho se passava,
Algo, que o testemunhavam
O embargo, os olhos molhados
E o irrefletido exclamado:
Que diabo, que beleza!
 
 
Trânsito
 
Levar ao poema o lema
Do aviso rodoviário
Que diz: fale ao motorista
Somente o indispensável.
Tentar não o perder de vista
Falando ao leitor ao lado:
Falar,
Se calar é inviável.
 
 
Poesia
 
Quando unido a ti em abraço forte,
Que há, que me seja impossível?
Quando unido a ti, até
A morte, mesma: risível.
 
 
Turismo
 
Aonde quer que se vá,
Levar o quanto se é;
Seja qual for o modo
De andar: se ligeiro
Ou pé-ante-pé.
 
(Aonde quer que se vá,
Decidido ou como-quem-não-quer,
Impossível será não levar
Na bagagem o quanto houver.)
 
Mais que isso:
Levar consigo,
Indo determinado ou a esmo,
O que há que faz ser possível
No andar, o andar mesmo.