A PANTERA
24 de fevereiro de 2014

Pantera

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de tanto olhar as grades, seu olhar esmoreceu. agora, seu mundo resume-se a um espaço entre grades, por trás das grades.

de tanto olhar as grades, seu olhar enfraqueceu, perdeu o entusiasmo, e nada mais aferra, nada mais o seu olhar fixa, firma, ataca.

como se houvesse só grades na terra: grades, apenas grades para olhar.

a onda andante & flexível do seu vulto, o gingado do seu caminhar, mostrando a força & a flexibilidade da sua estrutura corpórea, em círculos concêntricos (agora, seu mundo resume-se a um espaço entre grades, por trás das grades), decresce, diminui, e um grande impulso (guardado, certamente, no instinto felino que lhe resta) se arrefece, um grande impulso esfria, desanima, num ponto oculto dentro de si.

seu habitat: a amplidão dos terrenos selvagens.

de repente, bicho negro capturado, bicho negro acorrentado, posto em porão para transporte ultramarino, feito o bicho homem, negro, durante uma época da nossa história.

de repente, seu mundo resume-se a um espaço entre grades, por trás das grades.

de vez em quando, o fecho da pupila — do olhar esmorecido, de tanto olhar as grades — se abre em silêncio. uma imagem, então, na tensa paz dos músculos, na paz muscular em estado de tensão, em estado de alerta, se instila, uma imagem, então, na tensa paz dos músculos, se insinua, se insufla, para, logo em seguida, morrer no coração.

uma imagem (do seu vasto império selvagem quando livre? do seu descanso em árvores? da sua presa fresca? da sua liberdade sem fins?) se instila, para morrer no coração.

ninguém nasceu para uma vida presa entre grades, nem bicho, nem homem.

o bem mais valioso que possuímos — seja bicho, seja homem — é a vida, e, junto à vida, a liberdade para dela dispor.

se desejamos a natureza mais próxima de nós, certo não é prendê-la em aquários, gaiolas ou jaulas. certo é cuidarmos dos espaços naturais, dos espaços onde a natureza jorra, onde a natureza brota, onde a natureza nasce. certo é garantir aos meus irmãos de terra — seja bicho, seja homem — o mesmo direito de vida plena que desejo para mim. certo é termos cuidado para não ferir com a mão esta delicadeza, a coisa mais querida: a glória da vida.

beijo todos!
paulo sabino.
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(do livro: Coisas e anjos de Rilke. autor: Rainer Maria Rilke. tradução: Augusto de Campos. editora: Perspectiva.)

 

 

A PANTERA

No Jardin des Plantes, Paris

De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.

A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.

De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.

AS ROSAS
28 de abril de 2011

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(trecho do prefácio do livro: As rosas. autora do prefácio: Janice Caiafa.)

Nessas duas dúzias de rosas que Rilke reúne numa seqüência, temos uma homenagem atenta e minuciosa a essa flor. Rilke vai espreitar a rosa de perto, onde pétala toca pétala. São as rosas em sua própria constituição, em seu produzir-se — um tornar-se rosa (que por vezes é mesmo um desejo do poeta) — onde a troca com o fora dá ensejo a certas relações. Daí uma espécie de rosa-lugar onde é possível observar essas relações, onde incide o pensamento do poeta.

A rosa é completa e intacta, contudo está em expansão por seu caráter múltiplo — no desdobramento das pétalas e no perfume envolvente que vai longe, para atrair muito além do corpo da rosa. Por isso: rosas, consideradas na sua multiplicação, no plural, sendo que uma só já reflete todas. Nessa abundante perfeição, ela é Narciso realizado (“Narcise exaucé”), um Narciso que não está perdido em si mesmo, mas que se realiza no mundo.

A rosa é vida, fresca e clara, e vem da terra dos mortos — atravessa a terra e irrompe pelo ar onde faz circular seu perfume. Aí também ela parece lugar de cruzamento, limiar. Espaço harmonioso do dentro e do fora, dos extremos da existência, de limites.
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(do livro: As rosas. autor: Rainer Maria Rilke. tradução: Janice Caiafa. editora: 7Letras.)

I.

Se teu frescor por vezes tanto surpreende,
radiosa rosa,
é que em ti mesma, por entre,
pétala contra pétala, tu te repousas.

Todo desperto, cujo meio
dorme, enquanto inúmeras se tocam
as carícias quietas desse coração cheio
que terminam na extrema boca.

II.

Vejo-te, rosa, livro à metade
aberto que contém tantas páginas
de detalhada felicidade
que jamais serão lidas. Livro-mago,

que se abre ao vento e cuja leitura
se pode fazer de olhos fechados…,
de lá as borboletas voam confusas
pelas mesmas idéias lhes terem inspirado.

III.

Rosa, tu, oh coisa por excelência completa
infinitamente contida em si
e que se estende infinitamente, oh cabeça
de um corpo que por demasiada doçura se ausenta,

nada se iguala a ti, essência suprema
desse frágil lugar;
desse espaço de amor onde teu perfume
envolve-nos mal se entra.

V.

Abandono cercado de abandono,
delícia tocando delícias…
É o teu meio que sem cessar
se acaricia, dir-se-ia;

se acaricia em si mesmo,
de seu próprio reflexo iluminado.
Assim inventas o tema
do Narciso realizado.

IX.

Rosa, toda ardente e clara todavia,
que deveria se chamar relicário
de Santa-Rosa…, rosa que irradia
esse cheiro perturbador de santa nua.

Rosa nunca mais tentada, desconcertante
por sua paz interna; derradeira amante
tão longe de Eva, de seu primeiro alerta —
rosa que contém a queda infinitamente.

XI.

Sinto tanto e tão fundo teu
ser, rosa completa,
que ao te receber te confundo
com meu próprio ser em festa.

Eu te respiro como se tu fosses,
rosa, toda a vida
e me sinto o amigo perfeito
de uma tal amiga.


XII.

Contra quem, rosa,
a senhora adotou
esses espinhos?
Sua alegria tão delicada
forçou-a, quem sabe,
a se tornar essa coisa
armada?

Mas de quem a protege
essa armada exagerada?
Já de tantos inimigos
a tenho livrado
que não temiam nada.
Ao contrário, de verão a outono,
a senhora é que fere
os afagos que recebe.

XIV.

Verão: ser por alguns dias
o contemporâneo das rosas;
respirar o que paira em volta
de suas almas abertas.

Fazer de cada uma que morre
uma confidente,
e sobreviver a essa irmã
em outras rosas ausente.

XVIII.

Em tudo o que nos comove tu estás presente.
Mas aquilo que te ocorre nós não sabemos.
Só sendo cem borboletas para podermos
ler todas as tuas páginas.

Algumas de vocês são como dicionários;
aqueles que as colhem
querem encadernar todas as folhas.
Já eu prefiro as rosas epistolares.

XX.

Conta-me como pode, rosa,
que a este espaço em prosa
tua lenta essência imponha,
contida em ti mesma,
todos esses transportes aéreos?

Quantas vezes esse ar
tenta mostrar que o penetram
ou se lamenta,
amuado.
Enquanto que à sua volta,
rosa, ele se ostenta.

XXI.

Tanta volta que tens que dar
girar para fazer-se rosa redonda:
não ficas tonta nesses momentos?
Mas quando teu movimento te inunda

tu te esqueces em teu botão.
É um mundo que gira em ronda
para que seu calmo centro ouse
o redondo repouso da rosa redonda.

XXII.

Você de novo, você brota
da terra dos mortos,
rosa, você que porta
para um dia todo em ouro

essa felicidade convicta.
E eles deixam, esses
cujo crânio vazio
nunca soube tanto?

XXIV.

Rosa, foi preciso te deixar lá fora
estranha querida?
Que faz uma rosa aqui onde a sorte
se esgota sobre a nossa lida?

Sem retorno. Tu ficas
e compartilhas
conosco, perdidamente, esta vida, esta vida
a que não pertences.

CONFISSÃO
24 de setembro de 2010

a vocês,
 
belíssima confissão poética, onde o meu (talentosíssimo) poeta das alagoas, adriano nunes, mostra que as diferenças podem & devem ser complementárias, inda mais se tratando de poesia.
 
uma coisa que não canso de proferir (digo & repito aos quatro ventos) é que:
 
belezas não nasceram para exclusão, nasceram para complementaridade
 
sinto que a poesia, os poetas e os leitores só têm a ganhar com as singularidades de cada voz poética.
 
percebo que me torno melhor sendo o eco de tantas vozes divergentes; acumulo saberes.
 
detesto enquadramentos. 
abomino rótulos.
não suporto classificações. 
 
sinto-me fora de tudo: fora de esquadro, fora de foco, fora do centro. o trabalho que desempenho não tem nome, não pede enquadramento, rótulo ou classificação.
 
por isso absorvo tantos vates, sem pré-conceitos. acima de tudo, o que busco é autenticidade. e a autenticidade, senhores, pode ser encontrada em qualquer livro-ambiente. basta o ser: autêntico. 
 
essa “libertinagem literária” (rs), que apoio inquestionavelmente, está presente nas linhas que seguem.
 
nos versos, o poeta revela ao leitor algumas importantes influências literárias suas, as mais díspares (e eu ADORO!):
 
engole ferreira gullar, dorme com carlos drummond, e, tamanha “libertinagem” (rs), é uma pessoa ligada em pessoa (no fernando) e, como o bardo português, repleto de pessoas na pessoa.
 
e continua poemafora:
 
andando a pé (o pé com a dor), pecador de ofício, segue dando bandeira ao lado do manuel. na visão, dois campos (o augusto e o haroldo). na razão, os mil anjos de rilke. às quintas, mário quintana & sua companhia.
 
(uma pausa para verificações: que sabe mais o poeta de si se tudo o que de si sabe está envolto em poesia?) 
 
prossegue, fazendo um divertido jogo poético com a gênese que resultou no que hoje denominamos “brasil”: citação ao descobridor do país, pedro álvares cabral, que, nos versos, acaba por ser descoberto (rs), ao responsável pelo primeiro texto literário de que se tem notícia em terras brasileiras, que é a carta de pero vaz de caminha (famoso escrivão da esquadra de pedro álvares cabral), na qual descreve o seu deslumbramento ante o mundo novo que se descortinava ao seu olhar, e citação ao padre antônio vieira, jesuíta que viveu no brasil no século 17, famoso por seus satíricos sermões contra determinadas práticas da sua época, sermões de suma relevância para a literatura barroca brasileira & portuguesa. 
 
de repente as linhas dão um salto para os modernos: e waly sailormoon?, onde está o navegante luarento? e adélia, será que junto ao seu: prado? e piva, o roberto, o poeta de paranóias da paulicéia desvairada, cadê?
 
são tantos os responsáveis pelo emaranhado de versos… a quem dedicá-los? a circe, a “feiticeira das odisséias”?, ou a cecília, a “poeta das canções”?   
 
ao final, a constatação de que ficam muitos (tantos & tantos & tantos outros) poetas apenas no pensamento e na intenção, à margem desta confissão, e a ressalva, confessando ao último mestre citado, o grande paulo leminski, que lamenta por todos os outros não citados.
 
toda homenagem é um tanto “desfalcada”, um tanto “incompleta”, deixa sempre algo de fora. porém, o fato de deixar, sempre, algo de fora não a torna menos bonita, delicada & inspiradora.  
 
deliciem-se com esta belíssima confissão, ventada das alagoas e devidamente pousada neste espaço!
 
beijo em todos!
um outro, especialíssimo, no meu querido poeta adriano nunes!   
 
o preto,
paulo sabino / paulinho. 
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(do blogue: QUEFAÇOCOMOQUENÃOFAÇO. de: Adriano Nunes.)
 
 
CONFISSÃO  (autor: Adriano Nunes)
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engulo gullar
durmo com drummond
sou uma pessoa
ando muito a pé
pecador de ofício
dou tanta bandeira
na visão, dois campos
na razão, mil anjos
às quintas, quintana
que sei mais de mim?
descubro cabral
conto pra caminha
confesso a vieira
onde está waly?
no ar? nos túneis? nada!
eu, nunca? nem ela,
minha piva, adélia.
pra circe ou cecília?
os outros, os outros…
lamento, leminski!

A MONTANHA & O LEITOR
20 de setembro de 2010

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através da beleza mágica, beleza imponente, da montanha (de perfil perfeito), o pintor quis entender o vulcão que ele trazia no peito. quis o pintor, feliz, fascinado, mesmerizado, tentando escrever a montanha & o mistério da sua lindeza (trinta e seis vezes e mais outras cem tentativas), compreender a força da lava que corria dentro de si. 
 
porém, as tentativas lhe foram inúteis, pois a montanha não quis revelar sua magia. e não o quis porque é da natureza da montanha a quietude, a imobilidade, o silêncio absoluto.
 
a montanha só sabe ser: sendo.
 
a montanha doa-se, a cada dia, do ar de cada dia, e abandona, como sem valia, toda e qualquer noite que atravesse. a montanha sabe acontecer, a montanha sabe simplesmente ser (atrás de cada fresta, atrás de cada lasca de rocha que a compõe), assim como o ato da visão: ato realizado pela percepção sensorial das radiações luminosas, ato que sabe realizar-se sem consentimento ou aval, ato que sabe produzir-se do: nada.
 
a montanha inerte, mágica na beleza & na grandeza, a nada atende. a montanha é indiferente, é distante, é alheia, a qualquer tipo de apelo. portanto, como entendê-la? como sabê-la?
 
indo mais além: há, em sua estrutura, algo a ser entendido ou sabido?
 
e o leitor, esta outra incógnita: quem pode conhecer o rosto daquele que mergulha, de si mesmo, em outras vidas?
 
(a própria mãe não reconheceria o filho-leitor, que, entregue às leituras, se torna diversovariadosortido, tantos os mundos lançados ao seu mundo.)
 
como saber o que significa o impacto das linhas na vida do leitor? como quantificar o choque, a perplexidade, o assombro, que lhe resta?
 
como auferir o que contém o olhar do leitor quando soerguido da leitura?
 
(o olhar aguçado de um leitor contravém, isto é, desobedece, desaceita, qualquer tipo de mundo que se anuncie já completo e acabado — como crianças que brincam sozinhas e descobrem, súbito, algo a esmo —. afinal, como aceitar um mundo já completo e acabado se as coisas que compõem o mundo estão em constante transformação? como obedecer um mundo completo e acabado se o meio ambiente vive constantes renovações, se nós & o entorno somos organismos eternamente inconclusos, organismos eternamente inacabados? e o leitor, espantado, maravilhado, feito criança que súbito descobre novidade, o leitor nunca é o mesmo, pois as linhas dum livro, tudo o que elas lhe dizem, refazem as linhas do seu rosto. com o recebido das linhas dum livro, há o amadurecimento do olhar do leitor, há a modificação dos seus traços.) 
 
(a montanha & o leitor: estruturas em permanente metamorfose, estruturas que nunca mais serão as mesmas.)
 
beijo grande em todos!
paulo sabino / paulinho. 
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(do livro: Coisas e anjos de Rilke. autor: Rainer Maria Rilke. tradução: Augusto de Campos. editora: Perspectiva.)
 
 
A MONTANHA
 
Trinta e seis vezes e mais outras cem
o pintor escreveu essa montanha,
devotado, sem êxito, à façanha
(trinta e seis vezes e mais outras cem)
 
de entender o vulcão que ele trazia,
feliz, mesmerizado, no seu peito,
mas a montanha de perfil perfeito
não lhe quis revelar sua magia:
 
doando-se do ar de cada dia,
mil vezes, cada noite cintilante
abandonando, como sem valia;
cada imagem imersa num instante,
em cada forma a forma transformada,
indiferente, distante, modesta —,
sabendo, como uma visão, do nada,
acontecer atrás de cada fresta. 
 
 
O LEITOR
 
Quem pode conhecer esse que o rosto
mergulha de si mesmo em outras vidas,
que só o folhear das páginas corridas
alguma vez atalha a contragosto?
 
A própria mãe já não veria o seu
filho nesse diverso ele que agora,
servo da sombra, lê. Presos à hora,
como sabermos quanto se perdeu
 
antes que ele soerga o olhar pesado
de tudo o que no livro se contém,
com olhos, que, doando, contravêm
o mundo já completo e acabado:
como crianças que brincam sozinhas
e súbito descobrem algo a esmo;
mas o rosto, refeito em suas linhas,
nunca mais será o mesmo.